Informação e democracia

‘Com esse tipo de governo, nós sempre vamos ser um alvo’, afirma a jornalista Patrícia Campos Mello

Mulheres profissionais da comunicação dão depoimentos sobre ameaças e ataques sofridos nos últimos anos. Agressões se multiplicaram. Mas elas falam em resistência

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Bianca Santana e Patrícia Campos Mello estão entre as várias profissionais da comunicação atacadas neste governo, inclusive pelo próprio presidente

São Paulo – A violência contra jornalistas, especialmente mulheres, atinge não apenas o exercício da atividade, mas a própria democracia, reiteram várias profissionais que participaram de evento na noite desta terça-feira (27). Realizado na sede da Pontifícia Universidade Católica (PUC), no bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo, o ato foi promovido por 16 entidades. E colheu vários testemunhos de jornalistas que vêm sofrendo ataques e ameaças nos últimos anos.

Entre diversos casos, um dos mais conhecidos atingiu Patrícia Campos Mello, repórter especial da Folha de S.Paulo e comentarista da TV Cultura. Matérias sobre disparos de mensagens em massa e fake news nas redes, que levaram inclusive à publicação do livro A Máquina do Ódio (Companhia das Letras, 2020), tornaram a profissional um alvo permanente de ataques. Em depoimento gravado para o evento, Patrícia falou em um “universo paralelo de uma campanha de assassinato de reputação”. Ela, inclusive, sofreu ofensas de cunho sexual do próprio presidente.

Transformadas em alvo

“Sou repórter há quase 30 anos e tive a oportunidade de fazer coberturas muito bacanas e difíceis, cobrindo conflitos (Síria, Líbia, Iraque, Afeganistão, entre outros países). Em todas essas coberturas, eu, como muitas de vocês a gente sempre tenta retratar a vida dos outros da melhor forma possível, sempre é um recorte. É sempre uma posição de observador e uma posição privilegiada. Então, é muito estranho que nós, jornalistas, repórteres, tenhamos nos transformado em alvo. Num país supostamente democrático. Principalmente as jornalistas mulheres”, afirmou.

Assim, chegou um momento em que a jornalista sequer podia sair de casa. Era abordada na rua, e chegou a andar com segurança. “Isso é muito absurdo. Nunca tive segurança, guarda-costas. Aquilo foi um prenúncio de tudo que a gente ia viver”, lembrou a repórter, citando ainda outras profissionais que atuam em veículos de menor visibilidade e suporte. “E muitas que não estão na grande mídia, em cidades pequenas, esse tipo de desrespeito, de ataque, serve como um sinal verde.”

Sistema eleitoral sob ameaça

E não se tratam de críticas ao trabalho profissional das jornalistas, mas agressões veladas ou explícitas. Patrícia conta que recebeu centenas de mensagens de teor pornográfico. “Até hoje, quando eu faço uma matéria, vêm esses comentários, voltam com a história ou pegam alguma outra coisa. Pior com jornalistas negras, trans. E se não fosse a ação de entidades como as que estão organizando o ato hoje, também a sororidade das jornalistas que se ajudaram…”

Este é um momento crucial, com o sistema eleitoral sob ameaça, lembrou ainda a jornalista. “A gente tem que continuar fazendo nosso trabalho e resistir. Esse tipo de ataque, intimidação, de violência contra os jornalistas, infelizmente veio para ficar. Com esse tipo de governo, a gente sempre vai ser um alvo.”

Presidente condenado

Outro depoimento foi da professora e pesquisadora Bianca Santana, que chegou a ser acusado pelo presidente de produzir fake news. Em ação judicial, Bolsonaro foi condenado, em primeira e segunda instância, ao pagamento de indenização por danos morais. Ele também já foi condenado em ação movida pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. O ataque contra Bianca, que também integra a Coalizão Negra por Direitos, ocorreu na semana que a colunista do portal UOL escreveu artigo sobre a família e amigos de Bolsonaro com acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. .

Vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Paulo Zocchi lembrou que a violência e as agressões a jornalistas se multiplicaram sob o atual governo. Passaram de 135, em 2018, para 430 no ano passado. “Jornalismo não poderia ser uma profissão de riso. Portanto, não podemos naturalizar uma situação infame como esta”, afirmou.

Zocchi observou ainda que Jair Bolsonaro já sofreu três condenações por sua violência contra jornalistas. “O motivo (dos ataques) é simples: o atual presidente não tolera minimamente a circulação de informações na sociedade, que é o papel essencial da imprensa.” Apenas neste ano, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo já registrou 70 casos de agressões a mulheres jornalistas.

Depoimentos

O ato na PUC exibiu ainda vários depoimentos de jornalistas, mulheres, sobre ataques sofridos no período recente. Foram exibidos depoimentos de Carla Vilhena (“Ataques vis. Não são ataques contra a informação que nós trazemos, são ataques à pessoa”), Flávia Oliveira (“No caso das mulheres negras, muitas ofensas, ataques, xingamentos de cunha racista. Não são suficientes para nos intimidar”), Josi Gonçalves (“Fui chamada de prostituta numa cidade de 100 mil habitantes. Ganhei todos os processos, mas também ganhei cicatrizes que sangram até hoje”), Amanda Audi (“Já me chamaram de puta, de vagabunda e de coisas que prefiro nem falar”), Tatiana Dias, Tai Nalon, Juliana Dal Piva.

Também participaram do ato, pela PUC, o diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes, Fabio Cypriano, o coordenador do curso de Jornalismo, Diogo de Hollanda, e a vice-presidenta do Centro Acadêmico, Maria Clara Alcântara. Além deles, Ana Amélia Camargo, do grupo jurídico Prerrogativas, Ariel de Castro Alves, do Grupo Tortura Nunca Mais, e Daniela Christovão, da Comissão de Liberdade de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo.

O ato foi convocado pelas seguintes entidades: Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, Federação Nacional dos Jornalistas, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Repórteres sem Fronteiras (RSF), Instituto Vladimir Herzog, Associação Profissão Jornalista (ApJor), Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, Intervozes, Fotógrafas e Fotógrafos pela Democracia, Associação Paulista dos Jornalistas Veteranos, Centro Acadêmico Vladimir Herzog e Centro Acadêmico Benevides Paixão.

No final, foi lido manifesto em defesa do jornalismo livre e da democracia. Assista aqui.