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Produção nacional

Conheça a história dos vinhos brasileiros produzidos nas alturas

Numa das regiões mais frias e lindas do Brasil, a Serra Catarinense, brotam uvas a mais de mil metros de altitude. Delas, nascem vinhos para lá de especiais

Adriana Cardoso
Adriana Cardoso
Nos vinhedos da Villa Francioni são fabricados alguns dos melhores vinhos brasileiros de altitude

São Paulo – Quando eu ainda era estudante de enologia, em 2018, fiz uma viagem de carro pelo Sul do Brasil, mais especificamente Paraná e Santa Catarina. Meu companheiro, o Beto, tinha o sonho de subir a Serra do Rio do Rastro, que fica em Bom Jardim da Serra, na Serra Catarinense.

Estávamos hospedados em Urubici e eu queria muito conhecer ao menos uma vinícola daquela região, famosa por seus Vinhos de Altitude. O dono do hotel onde ficamos sugeriu a Villa Francioni, a maior vinícola da serra. Produz cerca de 100 mil garrafas por ano desses vinhos das alturas e está sediada em São Joaquim, um dos municípios mais frios do Brasil. Fomos e, de cara, eu me apaixonei pelo lugar! (Há outras vinícolas bem bacanas por lá, como a Thera, a Leoni de Venezia, a Pericó, a Abreu Garcia. Enfim, é só googlar).

Descobri que o Nei Geraldo Rasera, 36 anos, era o enólogo responsável e, no último ano da graduação, em 2019, eu fiquei em contato com ele por uns três meses até que me desse a oportunidade de um estágio, um dos requisitos para que eu tirasse o diploma de enóloga.

Adriana Cardoso

Fiquei cerca de três meses fazendo o estágio, em plena safra da uva, no primeiro semestre deste ano. Trabalhei duro ao lado dele e do Edson Andrade, o outro enólogo que foi o meu orientador de estágio. Aprendi demais com eles!

Como o Nei sabe muito e mais um pouco sobre o mercado de vinho, eu o convidei para esta entrevista, feita por Skype. Falamos de história, os impactos da pandemia no mercado, preço. Sobre os vinhos das alturas e como um vinho da Villa conquistou o paladar da diva pop Madonna. “Essa história ocorreu entre 2009-2010, quando ela esteve no Brasil, e foi jantar no restaurante Fasano, em São Paulo”, contou.    

Entrevista

Confira abaixo uma parte da entrevista. Você poderá ouvi-la na íntegra no meu podcast Taninos e Afins, cujo link está no final do texto.

Como começou a produção de vinho na Serra Catarinense, conhecida como de Vinhos de Altitude? E como a Villa Francioni se insere nesse contexto?

A região é bastante recente, tem 20 anos de história. Iniciou por meio da pesquisa da Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), que tinha um trabalho em todas as regiões de Santa Catarina, com plantio de uvas viníferas (uvas para vinificação de vinhos finos) e buscava a diversificação da produção agrícola nessas diferentes regiões. Por intermédio desses vinhedos experimentais, viu-se que São Joaquim tinha um potencial bastante interessante para a produção de uvas finas. Isso foi no final dos anos 1990, e a Epagri começou a divulgar isso.

No ano 2000, teve início o plantio dos vinhedos comerciais aqui em São Joaquim. E a Villa Francioni, já nessa época, o seu Dilor de Freitas (Manoel Dilor de Freitas, o fundador da Villa) já tinha esse projeto em andamento. Não em São Joaquim, mas em Bom Retiro inicialmente. Logo em seguida, ele adquiriu a área em São Joaquim e iniciou o plantio dos vinhedos, isso em 2000-2002. Foi tudo muito rápido entre o vou fazer e o fazer. Então, a Villa Francioni não foi a pioneira como vinícola (no plantio de vinhedo). Teve alguns plantios de vinhedos alguns anos antes em São Joaquim. Mas, como vinícola (na produção de vinho), foi a pioneira. E o próprio Dilor acabou sendo um incentivador para que outras pessoas investissem no plantio e na elaboração de vinhos. Pelo porte do empreendimento da Villa Francioni, algumas pessoas se sentiram entusiasmadas, dizendo ‘se o Dilor está fazendo isso é porque é bom’.

Viva seu Dilor

O seu Dilor era empresário de outro ramo, o de cerâmica. Por que ele decidiu entrar no mercado de vinho? Foi incentivado pela Epagri?

Na verdade, ele estava em busca de uma aposentadoria saudável, retirando-se da gerência da Cecrisa Portinari na época. Só que ele era uma pessoa inquieta, estava buscando algo em que investir, e gostava muito da Serra Catarinense. A primeira esposa dele era natural de Painel, uma cidade próxima a São Joaquim. Ele teve acesso às pesquisas da Epagri, já gostava de vinhos e disse ‘então vou me aventurar no mundo do vinho’.  

O seu Dilor fez a Villa Francioni, mas aí ele morreu e não pôde ver o seu projeto concretizado.

Exato. Foi tudo muito rápido. Entre 2000 e 2002 foi o plantio dos vinhedos; entre 2002 e 2004, a construção da vinícola. Uma arquitetura ímpar, em menos de dois anos, estava finalizada. Em 2004, foi a primeira colheita para os primeiros vinhos, só que ele veio a falecer em agosto de 2004. Então, os filhos acabaram dando prosseguimento ao projeto e já estava tudo pronto. Mais de 40 hectares de vinhedos plantados, a vinícola toda pronta, com a parte de rótulos encaminhados para lançamento… Não tinha muito o que não fazer, digamos assim. Um amigo disse uma vez: ‘o seu Dilor fez algo irreversível’. Não tinha como não dar continuidade.

São Joaquim

Depois que ele faleceu, vieram outras vinícolas na esteira? Como foi esse processo?

Na verdade, a região hoje conta com 20 empreendimentos vitivinícolas. Isso em São Joaquim, fora as outras regiões consideradas de altitude em Santa Catarina, as quais envolvem o meio-oeste do estado e cidades próximas daqui também. Na verdade, ele foi um grande incentivador de vinícolas e, também, de outros projetos que iniciaram antes o plantio do vinhedo. Mas a maioria deles, até hoje, ainda não tem a estrutura de vinificação. Então, a Villa Francioni foi um suporte no início para essas empresas elaborarem os seus vinhos. Mas outras vinícolas também foram entrando ao longo do tempo. Até hoje há empreendimentos novos surgindo, uma porque a região ainda é muito nova no mundo do vinho. São 20 anos de história e (se produz) um volume bastante pequeno para o mundo do vinho. Hoje, se fala em 500 mil garrafas por ano.

Adriana Cardoso
Vinhos de Altitude da Villa Francioni: 20 anos de história na Serra Catarinense (Adriana Cardoso)

Você acha que as pessoas estão começando a entender mais a complexidade desse mercado? E a dar mais valor para o tipo de vinho que vocês produzem?

Eu acredito que sim, porque dificilmente os nossos vinhos vão ser a porta de entrada do mundo do vinho. Mas a partir do momento em que ele (consumidor) começa a conhecer o mundo do vinho, a conhecer todo o processo de elaboração, os diferenciais que se tem durante a elaboração, ele começa a entender que, se quiser algo diferenciado, vai ter de pagar mais por isso. No início deste mês (agosto), a gente lançou um vinho da safra 2011…

É o Cabernet Franc?

Não, o Michelli (saiba mais sobre este vinho no podcast). É um vinho que demorou nove anos para ir para o mercado. Então, toda a produção dele envolve um custo e acaba sendo repassado esse custo.

Os brasileiros

Ainda há um certo preconceito com o vinho brasileiro. Na hora de comprar, o consumidor acaba fazendo um comparativo com o vinho chileno ou com o argentino, que chegam mais barato por acordos com o Mercosul, por exemplo. Você acha que dá para fazer essa comparação?

A questão é que você tem de comparar vinhos na mesma faixa de preço. O grande volume de vinhos que vem do Chile e da Argentina é de vinhos que muitas vezes daria para se comparar com o vinho de mesa nacional (vinho feito com outro tipo de uva, a americana), feito com a uva Isabel. Porque são grandes fermentações, em tanques com 100, 200 mil litros. Terminou de fermentar, já começa a estabilização, já engarrafa, bota um açúcar e vende. A maior parte dos vinhos reservados (saiba mais na coluna Entendendo Rótulos) acaba sendo demi-sec, que é o paladar da grande maioria do consumidor brasileiro, o vinho mais doce.

Vinhos das alturas

Falando um pouco dos vinhos produzidos aí, o que são Vinhos de Altitude? Que tipo de vinho é o carro-chefe na Serra Catarinense?

Para nós, Villa Francioni, hoje o vinho mais vendido é o rosé VF. Vem numa garrafa bem diferenciada, elaborado com oito variedades de uvas tintas – Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc, Malbec, Syrah, San Giovese, Petit Verdot e Pinot Noir. Mas, de maneira geral, a região está sendo bastante pulverizada. Como tudo é muito novo, todo mundo está tentando pesquisar variedades novas, cada vinícola tem uma filosofia de trabalho também.

Uma variedade que mesmo as empresas que trabalham com (varietais) italianas acabam mantendo e que está tendo um apelo diante do consumidor é a Sauvignon Blanc, uma variedade de uva branca. Das tintas, a Cabernet Sauvignon e a Merlot foram as variedades mais plantadas, porque isso foi lá no início dos anos 2000. Eram as variedades mais consumidas e ainda são as mais consumidas no Brasil e no mundo. Foi um pouco pela questão comercial e, também, porque a Cabernet Sauvignon foi a variedade pesquisada pela Epagri. Então, havia esse suporte técnico de que essa variedade dá certo.

Sabe-se que a região tem potencial para trabalhar com vinhos de guarda – vinhos mais longevos –, pois se consegue manter uma acidez bastante interessante nos vinhos. Isso favorece o envelhecimento e traz um frescor bastante diferenciado.

Turismo na pandemia

Como a pandemia impactou o enoturismo?

De meados de março a meados de abril, a loja (da vinícola) ficou fechada, depois reabriu e começou uma procura bastante tímida. Nós estamos trabalhando até hoje com uma redução do número de pessoas por horário para manter o distanciamento. Mas, a partir de junho, percebeu-se uma procura muito grande de turistas.

Enoturismo: durante a pandemia, perfil do visitante da Villa Francioni mudou (Adriana Cardoso)

Mais do que numa época normal?

Não, dentro de uma normalidade. Mas mudou o perfil do visitante. Antes era o turista regional e, agora, há pessoas de lugares mais distantes e com poder aquisitivo bastante alto. Eles acabam vendo na Serra Catarinense um local para se isolar, porque São Joaquim tem uma situação até que bastante tranquila em relação à pandemia. Claro, teve mortos, tem casos novos todos os dias, mas não chegou a 1% da população (São Joaquim tem cerca de 25 mil habitantes. Até 2 de outubro, conforme dados do site do governo do estado, a cidade tinha registrado 337 casos da doença e seis mortes).

Madonna

Você falou que o vinho carro-chefe de vocês é o Villa Francioni rosé. E ele ficou muito conhecido como o ‘vinho da Madonna’. Eu queria que você contasse como foi essa história.

Essa história ocorreu entre 2009-2010, quando ela esteve no Brasil, e foi jantar no restaurante Fasano, em São Paulo. Ela gosta muito dos vinhos da região de Provence, na França (conhecida por produzir os rosés mais famosos do mundo!). Ela pediu a carta de vinhos e pediu um vinho francês. Mas o Manoel Beato, que é o sommelier da casa até hoje, disse que havia um vinho brasileiro muito bom. Ele então abriu a garrafa por conta própria e serviu para a Madonna, que gostou bastante do vinho e o consumiu durante a noite.

O Manoel Beato também tinha um programa de rádio, numa rádio de São Paulo, e começou a divulgar bastante isso na rádio e a vinícola também usou isso como marketing. Assim, o rosé acabou se tornando o vinho da Madonna.

Glossário

Vinho rosé: é um vinho que tem contato de algumas horas com as cascas das uvas tintas, com a finalidade de extrair um pouco de cor. É produzido como o vinho branco, ou seja, as fermentações ocorrem a baixas temperaturas para que não se perca os aromas, o frescor e a acidez. A casca da uva é só para dar uma corzinha nele. Os tons variam de salmão a casca de cebola, como são os vinhos franceses dessa categoria.

Taninos e afins

Ouça a entrevista completa no podcast Taninos e Afins.


Adriana Cardoso é jornalista com mais de 20 anos de estrada, além de enóloga formada pelo Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia de São Paulo, campus São Roque. Fez estágio na Villa Francioni, vinícola localizada na região conhecida como Vinhos de Altitude, na Serra Catarinense, e hoje aventura-se a escrever e falar sobre vinhos, além de dar consultoria em comunicação para vinícolas e outros negócios do vinho. Acompanhe também o podcast Taninos e Afins nas plataformas Anchor, Breakers, Google Podcasts, Pocket Casts, RadioPublic e Spotify.