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Qual é o futuro das polícias brasileiras?

Sociedade debate mudanças no paradigma autoritário, que está em xeque. PEC que reforma polícias estaduais está na fila de votação do Senado

Bruno Terribas

“Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar.” Desde as jornadas de junho, quando jovens (majoritariamente) saíram às ruas de todo o Brasil para barrar o reajuste das tarifas do transporte público e foram duramente reprimidos pela Polícia Militar, é comum ouvir essas palavras de ordem nas manifestações, tangenciando as pautas originais.

Em São Paulo, no primeiro grande ato de rua deste ano (com aproximadamente 4 mil pessoas) – que contestava a realização da Copa do Mundo no Brasil diante da remoção de comunidades nas redondezas dos estádios, da morte de operários e do poderio da Fifa no país –, o estoquista Fabrício Proteus Nunes, de 22 anos, foi alvejado no tórax e na virilha pelas balas de três policiais enquanto tentava fugir da manifestação novamente reprimida pela PM, após caos generalizado no Centro da capital paulista.

A redemocratização do país assegurou as liberdades democráticas, o restabelecimento dos partidos políticos, o direito à livre organização sindical, entre outras garantias. Porém, trouxe consigo uma polícia carregada de métodos autoritários, que se utiliza dos mesmos expedientes repressivos da ditadura civil-militar: chacinas, desaparecimento de pessoas, truculência, em suma, observa e trata o cidadão como um potencial inimigo.

Movimentos sociais

A tensão e a revolta com a Polícia Militar não são exclusividade dos manifestantes de junho. Os movimentos sociais sempre denunciaram as ações irregulares da PM contra os trabalhadores e estudantes, com especial atenção às periferias dos grandes centros urbanos.

Para o dirigente da Central dos Movimentos Populares (CMP) Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, o tratamento dado pela polícia aos movimentos sociais e aos pobres sempre foi coerente ao tratamento dado pelo Estado: “com violência”. “A PM não protege a sociedade, ela persegue as pessoas, ameaça, reprime”, explica.

Muitas vezes o militante foi perseguido devido a suas atividades políticas. Além das ameaças de morte, Gegê chegou a ser preso em 2004, quando o Estado lhe imputou um homicídio em uma ocupação disputada por traficantes e trabalhadores sem-teto no centro de São Paulo (em 2011, após quase oito anos de cárcere à espera de julgamento, Gegê foi inocentado por falta de provas).

“Quando a laranja tá podre, não tem mais jeito. Não é uma aula de Direitos Humanos que vai mudar a PM. Para o policial, a farda é sinônimo de poder, não é apenas para ganhar o pão. Os caras assaltam e matam. O governador diz uma coisa e eles fazem outra”, conta Gegê, pouco crédulo em uma reforma das polícias: “Pode até amenizar [a violência policial] por um período, mas nos momentos críticos ela vai voltar às mesmas práticas de sempre”.

Divergências internas nas PMs

Há um acirramento de posições dentro das polícias militares quanto à desmilitarização da instituição. Segundo o tenente Cesário – que comanda 400 policiais no batalhão de área da região central de São Paulo –, não existe consenso entre os praças (soldados e militares de baixa patente), que em sua maioria defendem internamente a desmilitarização, e o oficialato da PM paulista, contrário à proposta – tal divisão é própria do militarismo.

“Eu perguntei para os homens que eu comando e vi que aproximadamente 70% são a favor da desmilitarização. A carreira única seria positiva para a sociedade. Seria muito melhor que o policial que chegasse a comandar a instituição tivesse passado por todas as posições. Sou favorável à unificação das polícias porque existe até um terrorismo interno na cultura militar. As posições diferentes daquelas centralizadas sofrem sanções administrativas, como transferências. Eu mesmo fiquei quase um ano trabalhando a 650 quilômetros da capital, sendo que a minha esposa trabalha na cidade, porque tive divergências com o alto comando”, explica o oficial.

Já o vereador paulistano e ex-capitão das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), Roberval Conte Lopes, se diz favorável à desmilitarização, mas não acredita nessa reforma. “Eu duvido que alguém tenha coragem de desmilitarizar a PM, porque é ela que é chamada para acabar com as invasões dos alunos na reitoria da USP, ou com as greves, como aquelas que o Lula fazia nos anos 1970.”

Para o policial reformado, contraditoriamente, a estrutura militar é a forma de manter a disciplina nos quartéis da polícia. “Se não for hierarquizada, qual é o policial que vai obedecer ao comando? A desmilitarização não funcionaria porque se eles pudessem decidir ninguém iria acordar cedo para fazer essas reintegrações. Os policiais têm que atender ao comando.”

Conte Lopes ainda propõe a valorização da Rota (tropa de elite da PM paulista, conhecida por muitas execuções e pouco diálogo) como uma solução para a segurança pública. “É a única polícia em que eu confio no Brasil. E eu já falei para o governador que ele deveria ampliá-la e expandi-la para todo o Estado de São Paulo.”

A reforma da polícia (para além da desmilitarização)

Ao final de 2013, entidades promoveram a aula pública “Que polícia queremos?”, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Lá, o pesquisador Renato Sérgio de Lima, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembrou que uma polícia forte é diferente de uma polícia violenta. “No Brasil, a estrutura autoritária da polícia não é herdeira apenas da ditadura militar. Desde o período colonial, a polícia está a serviço do Estado e não da sociedade.”

A estrutura e a morosidade do Poder Judiciário, assim como as legislações criminais arcaicas, também agravam as arbitrariedades das polícias, como se observa na grande quantidade de presos provisórios à espera de um julgamento. “Existe um padrão operacional anacrônico. Com base na Lei de Acesso à Informação, percebe-se que a polícia mata muito e morre muito. O evento ‘morte’ é esperado pelo policial”, complementa.

Lima acentua a urgência de o Congresso Nacional ampliar esse debate de forma menos corporativa. “Nas manifestações de junho, os governos e as polícias adotaram táticas do Exército para reprimir a população. Esse sistema é falido. As evidências também estão nas mortes dos jovens negros nas periferias. Debater segurança pública não é algo exclusivo das polícias. O debate político é diferente do debate técnico. É preciso gerar uma nova doutrina.”

A existência de duas polícias em cada estado proporciona uma falha no trabalho da segurança pública, já que a Polícia Militar tem por atribuição fazer o patrulhamento ostensivo, enquanto a Polícia Civil cuida da investigação. No entanto, as duas instituições pouco dialogam e apresentam divergências entre si. Uma das consequências é a incapacidade de resolução dos crimes. “Mais do que desmilitarizar a polícia, é preciso refundá-la. Nós temos o ciclo incompleto. Já temos a Polícia Civil, que não é militar, e está longe de ser eficiente. Prova disso é que apenas 8% dos homicídios são esclarecidos por ela”, afirmou Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz.

PEC 51/2013

Está em trâmite no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 51/2013, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que prevê uma reforma profunda na segurança pública brasileira, com a formação de polícias municipais, estaduais e federal desmilitarizadas, de ciclo único (patrulhamento ostensivo e investigação) e a criação de ouvidorias externas e independentes são algumas das medidas.

“Acreditamos oferecer uma solução de profunda reestruturação de nosso sistema de segurança pública, para a transformação radical de nossas polícias. A partir da desmilitarização da Polícia Militar e da repactuação das responsabilidades federativas na área, bem como da garantia do ciclo policial completo e da exigência de carreira única por instituição policial, pretende-se criar condições para que a provisão da segurança pública se dê de forma mais humanizada e mais isonômica em relação a todos os cidadãos, rompendo, assim, com o quadro dramático da segurança pública no país”, justifica o documento.

A PEC está na Comissão Temporária de Segurança, e vai seguir para a Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A expectativa da assessoria do senador Lindbergh é que a matéria vá ao plenário ainda neste ano.  Caso seja aprovada, a União, os estados e os municípios têm até seis anos para fazer a readequação ao novo modelo.

Protestos contra Copa podem impulsionar mudanças

O professor de Gestão de Políticas Públicas da USP Pablo Ortellado acredita que o contexto das manifestações contra a realização da Copa do Mundo é propício para dar início à transformação das polícias brasileiras. “Para esses protestos, não há mais demandas atendíveis, pois as remoções, a Lei da Copa e os estádios já foram feitos. Mas uma reforma da polícia pode mitigar o antagonismo crescente entre manifestantes e governos.”

Para o acadêmico, que enfatiza não ser especialista em segurança pública, algumas providências podem ser tomadas imediatamente: acabar com os “autos de resistência”, expressão usada nos boletins de ocorrência após mortes ou lesões em decorrência da intervenção policial; a criação de corregedorias com o controle da sociedade civil; a regulamentação das armas menos letais (bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha, spray de pimenta) por meio de um protocolo disciplinar do governo federal, que oriente as polícias estaduais.

“Não houve reação por parte da presidenta Dilma Rousseff (PT) ou dos governadores Geraldo Alckmin (PSDB) e Sérgio Cabral (PMDB) a essa reivindicação, que aparecia como transversal em junho. Atendê-la sinalizaria boa vontade por parte dos governos, uma nova disposição em tratar os movimentos sociais e da periferia, que sempre denunciaram o genocídio dos jovens negros e pobres. Representaria o diálogo”, disse Ortellado.

O professor complementou: “Mas isso também implicaria o governo arriscar seu único instrumento de garantia da ordem: uma polícia violenta e assassina”. Em 2014, uma resposta a esse imbróglio deve começar a ser esboçada.