Metalúrgicos norte-americanos denunciam violação de direitos em montadoras

Sindicalistas afirmam em visita ao Brasil que 'vozes populares estão abafadas' nos EUA

Bob King: montadoras culpam trabalhadores por acidentes de trabalho para aumentar lucros (Foto: Rafael Messias Guerra/UAW)

São Paulo – O empobrecimento da população norte-americana está diretamente relacionado à queda na sindicalização dos trabalhadores nos Estados Unidos. A ação do empresariado estadunidense, ao longo de décadas, para “solapar” a densidade sindical que garantia direitos sociais e trabalhistas está causando a deterioração da classe trabalhadora, disse o presidente da International Union, United Automobile, Aerospace and Agricultural Implement Workers of America (UAW – Sindicato dos Trabalhadores do Setor Automobilístico, Aéreo e da Agricultura dos Estados Unidos), Bob King, em visita ao Brasil. O sindicato representa 390 mil trabalhadores e 600 mil aposentados.

Nos Estados Unidos, direitos como férias, licença-maternidade, 13º salário e FGTS precisam ser negociados pelos sindicatos com as empresas. “Já há amplos estudos demonstrando que uma sociedade onde a taxa de sindicalização está subindo, os trabalhadores sindicalizados, ou não, passam a ter uma renda melhor, mais acesso a seguro-saúde e pensões de aposentadoria com valores dignos”, disse o presidente da UAW, que é metalúrgico da Ford.

Na semana passada, King, o diretor da UAW Robert Lawson e um trabalhador metalúrgico norte-americano estiveram no Brasil para participar do 11º Congresso Nacional da CUT (Concut), na capital paulista. Na ocasião, King alertou os brasileiros sobre a conduta das montadoras de veículos que atuam naquele país e no Brasil. Segundo ele, as empresas violam direitos humanos e cometem práticas antissindicais.

Saúde em risco

Em entrevista à Rede Brasil Atual, o trabalhador metalúrgico norte-americano – cuja identidade será mantida em sigilo – que esteve no Brasil com os sindicalistas denunciou a negligência das montadoras com a saúde dos trabalhadores, desigualdade salarial entre unidades industriais de uma mesma empresa, baixos salários e ameaças a pessoas consideradas “pró-sindicato”. 

Ele também criticou a precariedade e a insegurança dos locais de trabalho. “Uma coisa chocante em fábricas não sindicalizadas é que, se o funcionário procura o serviço médico interno da empresa, só por entrar na clínica da fábrica a empresa deduz US$ 45 de seu salário. Mesmo que ele procure o local devido a um acidente de trabalho ou por um resfriado”, denunciou o trabalhador. 

De acordo com os sindicalistas da UAW, os principais problemas ocorrem em fábricas não sindicalizadas, em geral, de origem asiática, como Nissan, Toyota, Honda, Hyundai e Kia. “A questão não é porque são todas asiáticas, é porque são empresas onde a gente não consegue vislumbrar uma mudança significativa de comportamento”, apontou King. Segundo ele, montadoras alemãs estão começando a corrigir suas condutas, por pressão dos sindicatos e comissões de fábrica alemãs.

Enfrentamento global

O sindicato está criando um escritório no Brasil para enfrentar de forma global as más condutas das montadoras. O enfrentamento deve ocorrer em vários países, principalmente nos emergentes, conhecidos como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). “É nesses países que as montadoras têm estratégia de crescimento”, disse o sindicalista. “Nós já tivemos discussões muito produtivas e apoio político na Inglaterra, França, Alemanha e Austrália.”

A UAW pretende contar com o auxílio de sindicatos de todo o mundo para divulgar os problemas nas montadoras não sindicalizadas nos Estados Unidos e sensibilizar os consumidores. “Eles gastam bilhões cuidando das suas marcas, convencendo o consumidor que eles produzem veículos bons. Uma vez que não nos deixam atuar na defesa dos direitos dos trabalhadores, vamos tentar rotulá-los, em âmbito global, como violadores de direitos humanos dos trabalhadores”, anunciou King.

Confira a entrevista, da qual também participaram Robert Lawson, da UAW, e um metalúrgico de uma montadora com planta industrial nos EUA.

Qual a situação da classe trabalhadora nos Estados Unidos?

Bob King – Houve um plano muito bem executado pelo grande empresariado dos Estados Unidos para aos poucos solapar a densidade sindical e a influência das entidades sindicais. Tudo começou a partir da década de 1970. Houve um processo em que muitos fabricantes de autopeças fecharam fábricas na região da indústria tradicional no meio-oeste, que é a região dos lagos, e o nordeste dos EUA. Essas empresas foram para o sul, nos estados mais pobres, sem tradição sindical. Com renda média muito mais baixa, aonde tinha desemprego e trabalhadores desesperados para arrumar qualquer emprego.

Você vê uma erosão da classe média trabalhadora no país?

Bob King – Já há amplos estudos demonstrando que uma sociedade onde a taxa de sindicalização está subindo, os trabalhadores sindicalizados ou não passam a ter uma renda melhor, mais acesso a seguro-saúde e pensões de aposentadoria com valores dignos. Esses aspectos – sindicalismo e direitos sociais – andam em paralelo. Nas décadas em que a densidade sindical chegava à faixa de 35% a 40%, os cidadãos tinham melhores condições de vida e benefícios sociais. Esses benefícios existiam porque os trabalhadores tinham uma voz coletiva forte na sociedade. Uma diferença interessante entre nossos países é que muitos benefícios que no Brasil estão na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como 13° salário, licença-maternidade, férias remuneradas – coisas básicas que os trabalhadores brasileiros registrados têm acesso –, lá, se você não é sindicalizado é difícil ter.

Como funciona o processo de sindicalização nos Estados Unidos?

Bob King – A sindicalização nos Estados Unidos é por local de trabalho. Há uma votação de todos os trabalhadores de uma empresa, como se fosse um plebiscito – sindicato sim ou não. Mas, é muito difícil chegar à votação. E depois de você conseguir 50% mais 1 tem uma série de obstáculos e manobras legais que as empresas podem fazer e fazem muito para evitar a criação de um sindicato.

E qual o quadro nas montadoras?

Bob King – Há 25 anos, quando começaram os investimentos de montadoras asiáticas nos EUA, as primeiras a chegar foram a Honda e a Toyota. Elas estabeleceram-se em estados sem tradição sindical. A primeira coisa que eles fizeram e mantêm até hoje é manter de 20% a 25% da mão de obra com trabalhadores temporários, que ganhavam metade, às vezes menos, do que os trabalhadores efetivos e caso sofram doenças ocupacionais, são dispensados.

Que problemas os trabalhadores norte-americanos enfrentam nas montadoras não sindicalizadas?

Bob King – Quem pode falar melhor desse assunto é um trabalhador de uma delas, que por receio de demissão não pode ser identificado. Ele vai explicar como funciona.

Trabalhador metalúrgico – Na Nissan, por exemplo, eles colocam todos os técnicos em uma sala e fazem mesas redondas em que os gerentes projetam fábricas fechadas porque seriam sindicalizadas. Esse mesmo problema ocorre em todas as outras empresas não sindicalizadas. Outra coisa muito ilustrativa das mentiras que contam é que se você se sindicalizar e for a uma reunião do sindicato com o seu carro, você não pode ir dirigindo o carro de uma empresa não sindicalizada, porque o sindicato lá na sede vai ter uma câmera para ver se você está dirigindo um carro de uma empresa sindicalizada ou não.

E como são as condições de trabalho?

Trabalhador metalúrgico – Uma coisa chocante em fábricas não sindicalizadas é que se o funcionário procura o serviço médico interno da empresa, só por entrar na clínica da fábrica a empresa deduz US$ 45 de seu salário. Mesmo que ele procure o local devido a um acidente de trabalho ou por um resfriado. Por isso, muita gente trabalha lesionada. Outra prática comum em montadoras não sindicalizadas é que, se o trabalhador se machuca em um determinado procedimento do trabalho, em vez de consertar o mecanismo que causou o ferimento, o gerente chama todo mundo e diz ‘aconteceu assim com fulano e é assim que se faz para não acontecer de novo. Assina aqui um papel de que eu disse isso a você e está ciente de que deve operar assim e não do outro jeito’. O gerente faz isso, mas não conserta o equipamento. Também é bem gritante o fato de as empresas usarem os procedimentos-padrão, que são muito detalhados, para culpar o trabalhador por um acidente. Se o trabalhador passou o pano daqui para lá e não de lá para cá, livram-se dizendo ‘por isso o funcionário teve Lesão por Esforço Repetitivo (LER)’.

Como é a atuação das montadoras em estados mais pobres dos EUA, como o Mississipi?

Trabalhador metalúrgico – Existe uma divisão racial, social e política no estado do Mississipi que é um dos mais pobres dos EUA. Lá há uma tendência bastante demarcada de que os negros são mais democratas e os brancos mais republicanos. Há um problema de participação política e educacional e existem diferenciais de educação muito fortes.  Muita gente não sabe o que é uma pensão de aposentadoria complementar porque só existe a partir dos 65 anos. O SUS de lá só se aplica aos idosos com mais de 65 anos. Você pode se aposentar antes dos 65 anos e ficar sem pensão e benefício médico, a não ser que você tenha um sindicato e negocie isso para o trabalhador. No Mississipi, a mesma empresa paga menos que no estado do Tennessee. Mas existe agora também uma nova limitação (na Nissan): a pensão deles foi limitada a US$ 400 por mês. Quem se aposenta, se não tem um plano de pensão individual pela empresa, vai receber esse valor por mês. O que é um quinto do que seria o normal da indústria automotiva. 

Há diferenças entre os efetivos das montadoras sindicalizadas e não sindicalizadas?

Bob King – Décadas atrás, não havia diferença salarial entre trabalhadores efetivos de empresas sindicalizadas e não sindicalizadas. Atualmente, na mesma empresa, os trabalhadores das fábricas mais novas não sindicalizadas, mesmo os efetivos, vão sendo remunerados com valores cada vez menores.

Há alguma reação por parte dos trabalhadores?

Bob King – É preciso explicar: os trabalhadores não estão se sindicalizando porque estão felizes. Eles não estão se sindicalizando porque sofrem muita intimidação, terrorismo mesmo por parte das empresas. ‘Se vocês se sindicalizarem a gente vai fechar a fábrica’ ou ‘a gente vai demitir todos os ativistas’, dizem os gerentes das montadoras. Em três grandes fabricantes de autopeças, onde a empresa assinou acordo de neutralidade, que é quando a empresa se compromete com o sindicato, em âmbito nacional, a não fazer campanha contra a sindicalização, o sindicato conseguiu votação muito expressiva.

Como a UAW pretende enfrentar essas corporações?

Bob King – A nossa estratégia é fazer com que seja mais caro para as montadoras não sindicalizadas brigar com o sindicato do que investir um pouco mais em remuneração e benefícios, saúde e segurança dentro da fábrica. A indústria automotiva gasta bilhões cuidando das suas marcas, convencendo o consumidor que eles produzem veículos bons. Uma vez que não nos deixam atuar na defesa dos direitos dos trabalhadores, vamos tentar rotulá-los, em âmbito global, como violadores de direitos humanos dos trabalhadores. Se pudermos mudar a decisão de apenas 3% ou 4% dos consumidores já representa muita perda para eles.

Como será a atuação sindical da UAW nos Estados Unidos e no Brasil?

Bob King – Nós já tivemos discussões muito produtivas e apoio político na Inglaterra, França, Alemanha e Austrália. Mas na verdade os países onde essa campanha mais estrategicamente será importante serão os emergentes, que formam os chamados Brics.  São nesses países que as montadoras têm estratégia de crescimento e nos quais a gente acha que pode ferir mais essas empresas. Cada país tem legislação e cultura sindical diferentes. A gente quer abordar nossos sindicatos aliados, ouvir as ideias deles para o que seria mais eficaz em cada caso. Sempre com os sindicatos locais.

Quais montadoras estarão no foco de ação da UAW?

Bob King – Serão as montadoras não sindicalizadas. No mês de agosto, vamos escolher uma empesa para focar e dar demonstração às outras de como vai ser custoso e globalmente impactante a escolha de não cooperar e ir pelo caminho da confrontação. As montadoras norte-americanas são todas sindicalizadas. As não sindicalizadas são Nissan, Toyota, Honda, Hyundai e Kia. A questão não é porque são todas asiáticas, é porque são empresas onde a gente não consegue vislumbrar uma mudança significativa de comportamento. Essas cinco são totalmente não sindicalizadas nos EUA. Também temos três empresas alemãs que têm fábricas não sindicalizadas – BMW, Mercedes Benz e Volkswagen – que têm fábricas no sul dos EUA. Entretanto, por pressão dos sindicatos alemães e das comissões de fábrica que têm nos apoiado, as empresas estão começando a ter comportamento ligeiramente mais decente.

As montadoras respeitam os trabalhadores em seus países de origem?

Bob King – Sim. Só a Hyundai tem uma relação de muito confronto com os trabalhadores na Coreia (do Sul). Mas reconhece o sindicato (local).