USP: autonomia seletiva

A universidade só deixará de ser uma ilha quando realmente for pública

A discussão não deve ser o convênio entre USP e PM, mas sim como este se deu (foto: Nelson Antoine/Arena-Folhapress)

Tem sido dito pelos que defendem o convênio entre a USP e a PM que não se pode tratar a Cidade Universitária como algo que está fora da cidade de São Paulo. A própria reitoria tem feito discursos nesse sentido. E é verdade: a USP faz parte do território paulistano, paulista e brasileiro, mesmo sendo uma autarquia. Ter autonomia, afinal, não é o mesmo que ter soberania.

Agora, se a Cidade Universitária está sujeita a todas as leis municipais, estaduais e nacionais e deve ser tratada como qualquer outra parte do território, por que ela se fecha – material e intelectualmente – ao resto da sociedade? Por que a mesma reitoria que agora afirma a não soberania da USP teve o poder, há alguns anos, de vetar a construção de uma estação de metrô dentro do campus? Por que em uma universidade pública, financiada pela sociedade, esta não pode usufruir de seus espaços livremente sem uma carteirinha? 

Na hora em que convém a determinados interesses, há, sim, bastante autonomia para afastar a “gente diferenciada” que viria de metrô para dentro de seus muros. Mas, na hora em que não interessa, a autonomia some e o “campus é
parte da cidade”

A USP virou uma terra de autonomia seletiva. Na hora em que convém a determinados interesses, há, sim, bastante autonomia para afastar a “gente diferenciada” que viria de metrô para dentro de seus muros. Mas, na hora em que não interessa, a autonomia some e o “campus é parte da cidade”. O discurso da segurança serve para defender ora o segregacionismo, ora a integração. Aparentemente estamos condenados a ser eternos reféns das “razões de segurança”.

Seria realmente desejável que os que defendem a integração nesse caso fizessem-no em tudo o mais. Isso porque a Cidade Universitária não deixará de ser uma “ilha” por causa de um convênio com a PM. Deixará de sê-lo no dia em que não for hostil aos que “não possuem carteirinha”, quando a comunidade São Remo, ao lado, deixar de ser vista como antro de criminalidade ou fonte de mão de obra para os serviços terceirizados da universidade e passar a ser vista como uma comunidade que detém o direito sobre aquele espaço, tanto quanto qualquer outro cidadão. Afinal, não é a Cidade Universitária um espaço como qualquer outro dentro da capital paulista?

Acima de tudo, a USP deixará de ser uma “ilha” quando realmente for uma universidade pública, na qual toda a sociedade possa usufruir seu espaço e o conhecimento lá produzido não atenda apenas às demandas do capital privado – o que é legítimo, mas de modo algum suficiente. O papel da universidade deve superar o ensino e a pesquisa. É necessário que haja extensão, isto é, que se trave um diálogo horizontal entre o conhecimento universitário e o restante da sociedade, em um processo que a traga para dentro da universidade, e vice-versa, tanto física quanto intelectualmente.

Mais do que uma questão de espaço e jurisdição, está em debate, portanto, o caráter público da USP. É preciso desvincular as discussões recentes de casos pontuais e associá-las a algo muito maior. No limite, a principal discussão não deve ser o convênio entre USP e PM em si, mas a maneira como este se deu e como são tomadas todas as decisões relevantes da política universitária, entre as quais o convênio é só mais uma.

Este, ao contrário do que afirma a reitoria, não foi decidido por uma “ampla maioria”, simplesmente porque nenhuma decisão importante na USP é tomada de maneira democrática. Novamente reina a autonomia seletiva: a universidade não está acima da lei quando se trata de polícia, mas segue desrespeitanto determinações de leis federais, como a de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no que tange aos seus processos deliberativos. Não à toa, a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital instaurou, neste ano, processo para apurar irregularidades na eleição da reitoria e na disposição dos assentos dos docentes em órgãos colegiados constituintes do colégio eleitoral.

Se o convênio USP-PM encontra suas justificativas no factual problema da segurança, a maneira como foi firmado já o invalida por completo. É a mesma pela qual se permite que processos administrativos sejam usados como forma de repressão e controle político. Advêm da mesma estrutura as iniciativas que ilham o ensino e a pesquisa desenvolvidos dentro da USP, na qual os cursos pagos e os convênios com grandes empresas são as únicas formas de diálogo com a sociedade.

Recentemente, a Congregação da Faculdade de Direito da USP declarou o reitor João Grandino Rodas persona non grata. Reconhecer os problemas da gestão Rodas é, sem dúvida, um passo importante. É fundamental, todavia, entendermos que o reitor que está sob investigação do Ministério Público encontrou na estrutura da própria universidade as possibilidades para assim atuar. Mais do que uma persona non grata, há na USP toda uma estruturanon grata. E, no caso da Cidade Universitária, além da estrutura decisória, a física precisa ser rearquitetada.

 

 

Leonardo Borges Calderoni e Pedro Ferraracio Charbel são estudantes de Relações Internacionais da USP