cidadania

Sim pela vida

Transplantes no Brasil costumam ser bem-sucedidos, o que o país precisa é melhorar o número de doadores. Concordar com a doação de um órgão de um familiar que já se foi não custa nada. E milhares de brasileiros precisam desse gesto para continuar vivendo

Rodrigo Zanatto

Maria Antônia salvou a vida do irmão Rosivaldo, que estava com os dois rins comprometidos

Coração, pulmão, pâncreas, fígado, rim, córnea. Não são muitos os órgãos humanos possíveis de transplantar. Há muitos brasileiros precisando deles e, infelizmente, o ano passado foi o terceiro de queda consecutiva da taxa de doadores: em 2004, a média era de 7,3 doadores por milhão de habitantes; em 2005 caiu para 6,4 por milhão; em 2006, para 6; e, no primeiro semestre de 2007, estava em 5,4. Na Europa, a média é de 20; na Espanha, recordista mundial, há 35 doadores por milhão de habitantes. A matemática é simples e cruel: se o número de doadores diminui, a lista de espera cresce. Existem no país quase 72 mil pessoas aguardando transplante, fila que cresce em mil por ano. Muitos não suportam a espera.

Não é difícil entender o que separa o Brasil, gigante e populoso, dos países que mais realizam transplantes de órgãos. O sistema público de saúde passa por maus bocados – embora o sistema privado também. Para agravar, a população pouco entende do assunto. Há um índice de cerca de 30% de recusa dos familiares no momento propício à doação, que é quando o paciente apresenta morte encefálica. Somente nesses casos, de comprovada falência do cérebro, com paralisia total do funcionamento do órgão, a pessoa se torna “candidata” à doação. “Quando é o coração que pára de funcionar, por exemplo, o fluxo sanguíneo é alterado e todos os demais órgãos são afetados, não podendo ser transferidos para outro ser humano”, explica o médico Paulo Massarollo, chefe do serviço de Transplantes da Santa Casa de São Paulo e secretário-geral da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

De acordo com Massarollo, as dificuldades, que começam já na captação do órgão, devido à carência de infra-estrutura, poderiam ser minimizadas com uma mudança de postura. “Se conseguíssemos diminuir a recusa familiar, aumentaríamos em 30% o número de doadores”, observa. Mas esse não é o único desafio a ser vencido. É necessário haver mais hospitais e equipes capacitadas para esse tipo de operação.

Apesar de 90% das cirurgias serem realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), os transplantes concentram-se em algumas regiões do Brasil. Hoje, há equipes e centros médicos preparados nas regiões Sul e Sudeste e alguns poucos na Nordeste. Já na Centro-Oeste e na Norte, são praticamente inexistentes. Isso quer dizer que, se há um paciente precisando de transplante em Rondônia, por exemplo, ele terá de se mudar para outro estado e entrar na fila local, se quiser ter alguma chance. Da mesma forma, é impossível contar com doadores daquela área.

“Se em todas as capitais houvesse equipes e hospitais preparados – como já existem, hoje, as Centrais Estaduais de Transplante, cada uma com listagem única e organizada –, as estatísticas melhorariam imediatamente. Toda a população ganharia atendimento de melhor qualidade”, torce Massarollo, que há 22 anos faz transplantes de fígado.

A maior fila de espera é por rins, uma vez que, com a diálise, pacientes conseguem resistir por mais tempo, mesmo com a qualidade de vida comprometida. Mas para quem precisa de órgãos que requerem cirurgias urgentes e complicadas, como o fígado – a segunda maior espera, com 7 mil pessoas listadas no país –, há pouca alternativa de retardar o transplante, que muitas vezes precisa ser feito tão logo a doença é constatada. Em 2006, a lei passou a definir que a distribuição do fígado deve seguir o critério da gravidade do estado do paciente, e não a ordem de adesão à lista. É um critério mais lógico, mas a fila continua. Apenas 10% dos pacientes em espera conquistam o transplante.

Nova vida

Há casos que acabam bem, algumas vezes resultados de pura sorte, como o da assistente administrativa Sueli de Almeida Lima Ribeiro. No começo de 2006, aos 40 anos, ela começou a apresentar sintomas como vômitos e inchaços. Após exames, idas e vindas do hospital, foi afinal internada e a Central Estadual de Transplantes acionada: Sueli precisava de um novo fígado com urgência. Entrou na lista de espera, mas seu quadro já avançado de cirrose biliar secundária, provavelmente resultante de uma cirurgia anterior, piorava rápido. “Meu médico já havia até convocado minha família para uma conversa, pois minha situação era muito grave.” Em outubro do mesmo ano conseguiu fazer o transplante.

“Na própria Santa Casa, em São Paulo, onde eu estava internada, havia pessoas esperando órgãos há meses ou anos. Nem acreditei quando a enfermeira entrou e disse que ia me preparar para a cirurgia”, conta Sueli, então no 64º lugar da listagem de São Paulo. “A única coisa que sei é que o órgão veio de São José do Rio Preto.” Na época, Sueli pesava 39 quilos e havia determinado aos familiares que seus dois filhos não deveriam vê-la naquele estado. “Depois da operação, passados nove meses, obtive liberação para voltar ao trabalho. Ainda tomo remédios para evitar rejeição, mas levo uma vida normal. Nem me lembro que sofri um transplante.”

Além da rapidez com que o órgão precisa ser substituído, o procedimento exige alto grau de compatibilidade do sistema imunológico. Já existem avanços no que diz respeito ao fígado: cerca de 20% dos transplantes feitos atualmente no Brasil são de doadores vivos, uma vez que é necessária apenas a extração de uma parte do órgão, capaz de se auto-regenerar. No Rio Grande do Sul já são realizados transplantes com segmentos de pulmões. Rins também podem ser doados em vida, uma vez que o ser humano saudável não precisa de dois para sobreviver. Mais da metade dos transplantes de rim no Brasil é feita com órgãos de doadores vivos.

Maria Antônia Ferreira, gerente administrativa de 55 anos, submeteu-se à doação há quatro anos. “Foi em 15 de março de 2003, impossível esquecer. O que eu esqueço é que estou sem um dos rins. Realmente, não me faz falta”, conta. Ela ofereceu o rim esquerdo para um irmão. Rosivaldo Ferreira não teve muito tempo entre os primeiros sintomas e a notícia de que estava com os dois rins comprometidos. “Imediatamente comecei a diálise, três sessões por semana durante oito meses, e entrei na fila de transplantes”, conta ele, vendedor autônomo em Santa Bárbara d’Oeste (SP).

A própria Maria Antônia organizou o encontro entre os irmãos que poderiam ser doadores, ou seja, os que tivessem menos de 60 anos – quatro, de um total de oito. “Nem me surpreendi quando me ligaram do hospital dizendo que havia sido ‘premiada’”, conta ela, que no primeiro teste apresentou 100% de compatibilidade com o irmão e, a partir daí, teve de percorrer uma maratona de 43 exames, em diferentes hospitais e cidades. Os dois passaram a véspera da cirurgia juntos, conversando, no Hospital de Base de São José do Rio Preto. “Torço todos os dias para que ela não sofra nenhuma conseqüência por causa disso”, diz Rosivaldo.

“É uma situação muito difícil. Pedir a alguém um órgão sadio é bem diferente do que pedir, por exemplo, dinheiro emprestado”, confessa o irmão, que hoje leva vida normal, melhorada pelas caminhadas diárias e alimentação mais cuidadosa. “Você passa a ver e valorizar o que nem percebia existir antes”, conclui ele. “Agora Rosivaldo tem três rins e eu só um”, brinca Maria Antônia – nesse tipo de operação, algumas vezes o órgão do paciente não precisa ser retirado.

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No hospital, aguardando o milagre de um novo fígado, Sueli já não queria ser vista pelos filhos quando, finalmente, conseguiu o transplante: “Nem acreditei quando a enfermeira entrou e disse que ia me preparar para a cirurgia”

Pode melhorar

“Cerca de 80% dos receptores, antes condenados à morte, têm sucesso com o tratamento”, comemora o médico Paulo Massarollo. No caso da operação intervivos, ela é feita simultaneamente no doador e no receptor. “Quando estavam no meio da minha operação, iniciaram a do meu irmão”, lembra Maria Antônia. “E nenhum dos dois sofreu nem mesmo uma febre. Quinze dias depois, eu já estava trabalhando.”

Para ampliar os transplantes é preciso esforços de governos e da população. Desde o ano passado o Ministério da Saúde passou a reunir especialistas de Câmaras Técnicas de Transplante de todo o país para elaborar estratégias; por exemplo, criar equipes hospitalares, formadas por psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais, com a missão de detectar previamente possíveis doadores – um dos maiores obstáculos é a falta de notificação às centrais de pacientes com morte encefálica. Valores envolvidos também estão sendo discutidos. Equipes médicas e hospitais reclamam da baixa remuneração do SUS.

A população também precisa colaborar. A doação de órgão não fará com que o familiar falecido sofra alguma perda, mas ajudará várias outras pessoas a sobreviver.