Pioneiros da luta antirracismo avaliam que discriminação continua
Advogado e vice-presidente de instituto dedicado à mulher negra apontam avanços no judiciário e na saúde, e enumeram o que é preciso melhorar
Publicado 19/11/2009 - 17h19
A polícia, desconfiada, resolve seguir o homem. No endereço de sua casa, descobre outros dois carros novos e nota uma movimentação supostamente estranha. Não há dúvidas: o homem deve ser “abordado”, como manda o jargão policial, e levado à delegacia. No Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), é submetido a uma sessão de tortura, da qual é salvo por seu advogado.
A polícia, desconfiada, resolve seguir o homem. No endereço de sua casa, descobre outros dois carros novos e nota uma movimentação supostamente estranha. Não há dúvidas: o homem deve ser “abordado”, como manda o jargão policial, e levado à delegacia. No Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), é submetido a uma sessão de tortura, da qual é salvo por seu advogado.
O homem “suspeito” é um fiscal do INSS, órgão da Previdência Social que na época, fim dos anos 80, nem levava esse nome. O conteúdo de sua pasta preta não era fruto de roubo, mas papéis coletados em ações de fiscalização. A movimentação suspeita em sua casa nada mais era que dois irmãos que estavam abrindo uma empresa.
O rapaz, de 39 anos, tenta se livrar como pode dos seguranças de um supermercado que, não se sabe muito bem por quais evidências, definiram que ele roubou o veículo. Depois de uma sessão de torturas de 20 minutos em que “neguinho” foi palavra comum, chegam os policiais.
Os espancamentos param, mas não o interrogatório. Na cabeça dos envolvidos, não é possível que um negro tenha um carro novo. E mais: que não tenha nenhuma “passagem” pela polícia. Desde que comprou o veículo, o funcionário de uma universidade pública é parado com frequência para “abordagens”, mas nunca imaginou que se pudesse chegar a esse ponto. É agosto de 2009.
Os dois fatos acima, com vinte anos de intervalo entre si, evidenciam duas coisas: a primeira é a existência do racismo. A segunda é a persistência do problema. Ainda que vários integrantes de movimentos antirracistas indiquem a melhoria nos últimos anos, o consenso é de que a discriminação racial continua.
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Antônio Carlos Arruda, advogado especialista em políticas públicas, foi quem socorreu o fiscal do INSS no fim da década de 80. Ele avalia que a grande diferença é que, de alguma maneira, o Estado passou a assumir o papel que lhe cabe, e com isso há um número muito maior de ações contra a discriminação. Na época, conta, o Ministério Público era resistente a processos do gênero, situação que hoje está bastante transformada, com promotores e procuradores especializados no tema.
“O mais importante hoje é informar a população sobre seus direitos. E as formas de ação”, afirma.
Antônio Carlos Arruda foi um dos primeiros integrantes do Instituto Geledés (pronuncia-se Gueledés), que desde 1988 atua nas questões relacionadas ao racismo com foco na mulher negra.
As fundadoras do Geledés militavam nos movimentos feminista e antirracismo, e logo se deram conta de como era difícil juntar os dois assuntos. Sônia Maria Nascimento, vice-presidente do instituto, conta que as mulheres não queriam debater a questão de raça, e os negros não queriam debater a questão de gênero.
Na ocasião, Antônio Carlos Arruda buscou, com a análise de alguns casos, mostrar como o racismo estava presente nas decisões do Judiciário. Com isso foi possível pedir mais efetividade nas ações do Ministério Público e mostrar a importância de que a Defensoria Pública focasse nos casos de negros.
Hoje, se na sociedade como um todo a perfeição está distante, há ao menos a compreensão de boa parte dos integrantes da Justiça de que é preciso punir os casos de racismo. E há a articulação de órgãos de governo na tentativa de extinguir a desigualdade racial.
Sônia Maria Nascimento comemora os avanços na área de saúde, com o reconhecimento da rede pública de que era preciso dar atenção especial aos casos em que os negros estão mais suscetíveis a desenvolver problemas, como hipertensão e anemia falciforme.
A vice-presidente do Geledés vê muitos avanços na questão do racismo nos últimos anos, como a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a elaboração de políticas públicas específicas. “Queremos sair da invisibilidade. Todos sabemos os efeitos maléficos do racismo e é preciso combater mesmo. Sofremos isso há 300 anos”, afirma.
Uma das mudanças para reverter o quadro, na avaliação dos especialistas, é a criação de políticas afirmativas na área de educação, em especial as cotas raciais. Sônia Maria Nascimento lembra que a exclusão dos negros da sala de aula foi reconhecida por emenda à Constituição de 1824. Ou seja, se a exclusão foi institucional, a reparação dos erros também deve ser.
“No Brasil, se você tem cor, não interessa a competência. Você conta nos dedos das mãos as exceções. E quando tem alguém, fazem questão de invisibilizar a raça, a cor da pessoa. Não deixam nossa comunidade ter heróis”, declara a vice-presidente do Geledés.
Antônio Carlos Arruda, que deixou o instituto na década de 90, estudou no exterior e depois que retornou foi convidado para presidir o Conselho Estadual da Comunidade Negra de São Paulo, entende que é fundamental responsabilizar os que promovem o racismo: “O Poder Judiciário, que é aquele que deve deter as decisões nesses conflitos, precisa ser provocado tanto na esfera penal quanto na jurídica, a reparação moral e a reparação material. Agora mesmo, há menos de dois meses, ganhei uma causa em uma ação parecida de violência policial”, finaliza.