Futuro estilhaçado

Nem-nem ou sem-sem? Pobres e mulheres negras são maioria entre os que não estudam, nem trabalham

Ao mapear pela primeira vez faixa de renda dos chamados jovens “nem-nem”, IBGE revela um grupo “sem direito à educação e sem direito ao trabalho”, avalia parlamentar. Afazeres domésticos e cuidados de parentes mantém, por exemplo, as mulheres jovens fora da força de trabalho

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil
"O resultado revela que, na realidade, esses jovens são 'sem-sem': sem direito à educação e sem direito ao trabalho", observou Luna Zarattini

São Paulo – O Brasil registrou, em 2022, mais de 10,9 milhões de jovens ‘nem-nem’ – homens e mulheres de 15 a 29 anos, que não estudam e nem trabalham. O grupo fora da escola e sem perspectiva de colocação no mercado de trabalho representa 22,3% da população brasileira. E indica que uma a cada cinco pessoas dessa faixa etária não estudou nem trabalhou ao longo do ano passado. As informações fazem parte da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgada nesta semana pelo IBGE.

O objetivo da série é sistematizar e apresentar um conjunto de informações relacionadas à realidade social do país, a partir de temas estruturais. Nesta edição, o IBGE também realizou um detalhamento por renda entre os chamados jovens nem-nem, e constatou que mais da metade deles, 61,2%, eram pobres. Na classificação, o instituto considerou aqueles que vivem com uma renda domiciliar per capita inferior a US$ 2,15 por dia, de acordo com as linhas de pobreza do Banco Mundial.

O dado, de acordo com a pesquisa, também chama atenção para a condição dos jovens pretos ou pardos. Quase a metade dos nem-nem pobres é formada por mulheres negras (47,8%), que são ainda 44,7% dos jovens extremamente pobres. O grupo é seguido por homens pretos e pardos, dos quais 33,3% estavam na pobreza e 26,6%, na extrema pobreza.

‘Jovens sem-sem’: os sem-direito

Desse total de “nem-nem”, 4,7 milhões, aponta o IBGE, não tomaram nenhuma providência ao longo do ano passado para conseguir um emprego e nem gostariam de trabalhar. Os motivos estão relacionados aos cuidados de parentes e com os afazeres domésticos para 2,0 milhões de mulheres. Para 420 mil homens, destaca-se o motivo por problema de saúde. Ambos os sexos também abordam o estudo por conta própria como um dos motivos para não querer trabalhar. Por outro lado, 2,4 milhões de jovens confirmaram que gostariam de trabalhar.

No entanto, para 553 mil mulheres, os afazeres domésticos e o trabalho de cuidado de parentes também se destacaram como principais motivos para manter o grupo fora da força de trabalho. O fato de não haver emprego na localidade dessas pessoas também atingiu ambos os sexos, chegando a mais de 800 mil jovens nesta situação – 356 mil homens e 484 mil mulheres. “O resultado revela que, na realidade, esses jovens são ‘sem-sem’: sem direito à educação e sem direito ao trabalho”, observou a vereadora paulistana Luna Zarattini (PT) na rede X, antigo Twitter.

“Há quem faça uma leitura rasa desse dado e diga que é ‘vagabundagem’. Mas será que não ter oportunidades é uma questão de escolha? Fica ainda mais claro de que se trata de um problema maior do que simplesmente a vontade das pessoas quando vemos que são principalmente as mulheres jovens negras que se encontram nessa situação. O trabalho de cuidado recai sobre as mulheres, e isso fica especialmente escancarado em situações de maior vulnerabilidade. Cuidar dos filhos, da casa, de parentes doentes, tudo isso tira as mulheres da sala de aula e do mercado de trabalho”, acrescentou a parlamentar.

Vulnerabilidade

Diferente do senso comum que atribui a esses jovens a responsabilidade pela falta de perspectiva, o sociólogo Adalberto Cardoso, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), adverte desde 2020, no artigo Juventude, trabalho e desenvolvimento: elementos para uma agenda de investigação, que o fenômeno dos chamados nem-nem deve levar em conta diferentes variáveis. Entre elas, a oferta de emprego nas cidades, o perfil familiar e o acesso à educação.

Ao recortar por nível de instrução, o IBGE identificou que entre os jovens fora da escola e do mercado de trabalho com até o ensino fundamental incompleto, 23,0% eram extremamente pobres e 77,1% pobres. Entre os que tinham ensino fundamental completo ou médio incompleto, eram 19,1% e 72,5%, respectivamente. O que torna o problema complexo, conforme Cardoso.

“Em 2000, famílias entre as 10% mais pobres tinham 233% mais chances de ter um ‘nem nem’ entre os seus do que famílias entre os 10% mais ricos. Em 2010, esse valor havia aumentado para quase 800%. Isto é, a disponibilidade de recursos familiares, tal como expressa pela renda enquanto capacidade de aquisição de bens como saúde e educação para seus membros, por exemplo, confere um caráter de classe às mudanças ocorridas no período, com aumento da vulnerabilidade dos mais pobres”, diz um trecho do artigo.

Geração comprometida

Na comparação com 2021, o número de jovens nem-nem caiu em quase 2 milhões. Apesar da queda, os levantamentos também registraram as mulheres negras como as mais atingidas pela falta de perspectiva em emprego e estudo.

A analista do IBGE Denise Guichard alerta que o dado mostra uma “medida mais rigorosa de vulnerabilidade juvenil do que a taxa de desocupação, pois abrange aqueles que não estavam ganhando experiência laboral nem qualificação, possivelmente comprometendo suas possibilidades ocupacionais futuras”. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, lançada em março de 2022, mostrou que a desocupação total na juventude, fase fundamental para definir a carreira, pode deixar marcas permanentes na trajetória de ascensão social de toda uma geração.


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