HPV, o inimigo íntimo

Nos homens, o HPV causa verrugas genitais. Nas mulheres, lesões podem virar câncer

Há 35 anos, o médico alemão Harald zur Hausen publicou sua hipótese de que a infecção pelo papilomavírus humano (HPV, do inglês human papillomavirus) causaria câncer de colo do útero. O tempo deu razão a Hausen, e também o Prêmio Nobel de Medicina, em 2008. O conjunto do trabalho é de grande relevância porque esse tipo de câncer é o segundo mais frequente entre as mulheres de todo o mundo e, entre as brasileiras, o quarto mais letal. Dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca) indicam que anualmente morrem 4.800 vítimas e surgem 18.500 novos casos. Estudos mostram que partículas do vírus aparecem em mais de 90% dos registros da doença.

Transmitido sexualmente, ou em casos raros por meio de instrumentos sem esterilização adequada, como equipamentos ginecológicos, o papilomavírus é muito comum. Causa em geral verrugas genitais, tecnicamente chamadas condilomas acuminados, em ambos os sexos. Mas o perigo são as lesões sem sintomas que se desenvolvem nas mulheres, podendo progredir para o câncer de colo uterino caso não sejam tratadas precocemente.

Em menos de um ano, Samara Regina Bettoni, de 32 anos, foi submetida a três grandes cirurgias, em que foram retirados o útero e as trompas. Hoje está curada, mas é acompanhada periodicamente

Segundo o Inca, cerca de 25% das brasileiras estão infectadas com algum tipo de HPV. As mais suscetíveis são as mais jovens, que iniciam a vida sexual cada vez mais cedo, e aquelas na pós-menopausa. Cerca de 80% das mulheres serão infectadas pelo menos uma vez ao longo da vida. Estima-se que em todo o mundo 291 milhões delas carregam algum dos mais de 100 subtipos do vírus e 32% têm os de número 16 ou 18 – os que produzem as lesões com potencial cancerígeno –, ou ambos.

“A possibilidade de regressão dessas lesões é maior que 50%. Ainda não é possível saber, porém, em que casos haverá cura espontânea ou evolução para um tumor maligno”, afirma Mauro Romero Leal Passos, professor de Medicina da Universidade Federal Fluminense, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis e autor do livro HPV, Que Bicho É Esse? “Sabemos que o risco de evolução é maior entre as fumantes, as portadoras de outras infecções no colo do útero, como herpes e clamídia, e do HIV, ou as geneticamente predispostas à malignidade.”

Como estratégia de prevenção, o Ministério da Saúde recomenda rastrear prioritariamente mulheres de 25 a 60 anos, por meio do exame conhecido como papanicolau. Os dois primeiros exames a cada três anos e os seguintes a cada dois. 

Conforme aponta o Plano de Ação para Redução da Incidência e Mortalidade por Câncer do Colo do Útero, do Inca, a oferta de exames pelo SUS seria suficiente para a cobertura necessária desde que não fossem realizados repetidamente, em intervalos menores, o que restringe a cobertura. Além disso, em muitos laboratórios há falhas na coleta e no estudo das amostras ao microscópio. Isso leva ao chamado falso-negativo – quando o teste não revela a doença existente. A intensidade desse problema varia conforme a região. Segundo a Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp), em Fortaleza, por exemplo, é impossível fazer o diagnóstico em 13% das amostras. Em outras localidades, pode chegar a 50%.

Há no Brasil, desde 2002, diretrizes para o atendimento de mulheres com exames alterados. A recomendação é tratar as lesões de alto risco em unidades ambulatoriais, mas isso não é seguido, conforme o documento do Inca. O encaminhamento desnecessário para hospitais pode comprometer o acompanhamento de mulheres com alterações que requeiram maior atenção. E, uma vez prejudicado o rastreamento, eventuais complicações correm o risco de ser detectadas tardiamente.

Novas vacinas

Preocupada com isso, a secretária Samara Regina Rodrigues Bettoni, 32 anos, de Itajubá (MG), vive aconselhando todas as mulheres conhecidas, inclusive as mais jovens, a não faltar às consultas rotineiras com o ginecologista e a fazer exames preventivos. No final de 2009, ela recebeu o diagnóstico de câncer de colo uterino. Em menos de um ano foi submetida a três grandes cirurgias, em que foram retirados o útero e as trompas. Hoje está curada, mas é acompanhada periodicamente no Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. Aos 18 anos, Samara contraiu HPV, se tratou, mas admite ter sido negligente nos últimos anos. “Colocava as preocupações com meu filho, o marido e o trabalho em primeiro lugar e deixava a saúde de lado”, conta.

Pouco se sabe sobre a contaminação na população masculina, embora comecem a surgir indícios de aumento dos casos de câncer de boca e de orofaringe (região atrás da língua, amígdalas e palato, o céu da boca) causados pelo HPV. “O homem é um vetor importante. Tem muita infecção para transmitir e manifesta pouca doença”, afirma Elsa Gay de Pereyra, ginecologista do Hospital das Clínicas de São Paulo. Também é pouco conhecido o comportamento desses vírus entre os homens.

Mas os médicos desconfiam que a resposta esteja na própria anatomia. Enquanto o órgão genital masculino é exposto e recoberto por pele, que o protege, o da mulher é interno. E o colo do útero é formado por tecidos mais suscetíveis a contaminação. Apesar de não evitar totalmente o contágio – o homem pode ter lesões no púbis ou nos testículos –, a camisinha reduz significativamente os riscos. Por isso é recomendada em qualquer tipo de relação sexual, mesmo entre casais estáveis.

A especialista do HC defende a vacinação dos homens contra o vírus. Segundo Elsa, na Austrália houve redução da contaminação feminina com a adoção dessa medida preventiva. No Brasil, a Anvisa acaba de aprovar a vacina para homens de 9 a 26 anos. Até então, estava liberada apenas para a população feminina nessa faixa etária. A imunização não está disponível no sistema público de saúde, apenas em clínicas particulares. Há a bivalente, contra os subtipos 16 e 18; e a quadrivalente, contra os subtipos 6 e 11, causadores das verrugas.

Ambas são igualmente eficazes. Mas ainda não se sabe qual a duração da proteção. Por isso a vacinação não exclui a necessidade de rastreamento. Segundo especialistas, seu impacto na redução da incidência do câncer de colo do útero e na mortalidade por ele só será visível daqui 30 ou 40 anos. Em dez anos, porém, poderão ser percebidos efeitos da ampliação e qualificação do rastreamento e tratamento das lesões. 

Em menos de um ano, Samara Regina Bettoni, de 32 anos, foi submetida a três grandes cirurgias, em que foram retirados o útero e as trompas. Hoje está curada, mas é acompanhada periodicamente