Análise

Paulo Ganso e a cidadania

O articulado atleta do Santos, além de bom de bola, é parte de uma safra formada no ambiente pós-ditadura. A Constituição de 1988 está para a sua geração como a de 1946 estava para a de Nilton Santos, Didi e Pelé

Quando o jogador Paulo Henrique, o Ganso, se recusou a ser substituído durante a final do Campeonato Paulista de Futebol, ficou claro para todos que ele não estava defendendo os próprios interesses, mas os do time. Era visível que Ganso era o principal articulador da tática de evitar um gol do Santo André que tiraria o título do Santos, e que o técnico do seu time estava fora da realidade. E, se a atitude de Ganso ficou nítida no plano futebolístico, uma outra dimensão sua, relacionada ao conceito e à prática da cidadania, passou despercebida: a postura lembra as atitudes adotadas por grandes jogadores do passado.

Em 1958, na Copa da Suécia, o técnico Vicente Feola tinha escalado Dida pela meia-esquerda e Joel pela ponta-direita. Com todo o respeito, Didi, Nilton Santos e outros jogadores ponderaram a Feola que era melhor escalar Pelé e Garrincha. Feola acabou convencido, e o Brasil se tornou campeão mundial pela primeira vez. Pelé e Garrincha se consagraram como os melhores da Copa.

Em 1970, no México, o técnico Zagallo julgava inviável escalar Pelé e Tostão no ataque, por considerar seus estilos de jogo incompatíveis. De acordo com Zagallo, embora ambos fossem grandes jogadores, juntos, um atrapalharia o outro. Mas Pelé, com o apoio de um grupo de jogadores, exigiu jogar com Tostão. Zagallo acabou se convencendo. E o Brasil conquistou o tricampeonato.

Há outro ponto em comum entre eles e Ganso, além do fato de todos se destacarem pela alta técnica e pela capacidade tática de articular jogadas criativas em momentos decisivos, liderando os companheiros e fazendo-os dar o melhor de si. É que, contrariamente aos jogadores das mais recentes gerações antes da de Ganso, todos eles – Didi, Nilton Santos, Pelé, sem contar Garrincha e Tostão – foram formados por uma escola pública que se dedicava mais a formar cidadãos no pleno sentido da palavra do que a ensinar as chamadas “coisas práticas”.

Essa escola pública aberta e democrática seguia os princípios da Constituição de 1946, que não só consagrou a democracia mais plena como também ajudou a fazer avançar um tanto mais a justiça social. Cidadãos como Didi, Nilton Santos e Pelé, além de Tostão e Garrincha, se tornaram portadores de valores de uma cidadania altiva, orgulhosa e consciente de seus deveres e direitos. Capazes de chamar a atenção de um superior, quando o julgassem equivocado.

Em seguida, vieram gerações de jogadores formados segundo a escola pública eminentemente “prática” e autoritária característica do regime militar. Aprenderam a ser submissos às chefias, e a só as combater por vias tortas e clandestinas, com astúcia e nem sempre com dignidade.

Paulo Henrique Ganso já é parte de uma safra inteiramente formada na escola pública democrática e no ambiente de vida surgido a partir do fim do regime militar e da entrada em vigência da Constituição de 1988 (notando-se que essas características foram se desenvolvendo com o tempo e só desabrocharam plenamente anos depois do fim do regime autoritário).

Ganso sabe que tem deveres, mas sabe também que tem direitos. Mostrou isso não só na partida final como também ao criticar em público as argumentações do técnico Dunga para não convocá-lo entre os 23 previstos para ir à Copa da África do Sul. À alegação de Dunga de que o meia santista não tivera uma boa participação na seleção brasileira sub-20 no Mundial disputado no Egito, no ano passado, o jovem talento disse, com todo o respeito, que o treinador da seleção principal não deve ter acompanhado bem o torneio.

Ganso tem aparecido como um cidadão articulado e honrado. Um cidadão exemplar. É possível que sua franqueza não tenha sido bem digerida.

Afinal, Dunga faz parte de uma geração que se habituou com a submissão aos de cima e ao autoritarismo com os de baixo. De uma geração que não sabe “dizer se a ditadura era boa ou ruim porque não a viveu; e só quem viveu pode dar essa resposta” – como afirmou o técnico da CBF no dia em que anunciou a convocação da seleção, mais carregado de ignorância do que de maldade.