O fator Arapiraca

Governo Dilma mostra força nas primeiras votações, mas analistas veem maioria folgada com validade curta, já que em 2012 interesses de parlamentares nas eleições municipais podem falar mais alto

A Paixão de Cristo é encenada em Arapiraca, interior de Alagoas, há 15 anos e incorporou-se à agenda da região. Este ano, ficou ameaçada por uma decisão tomada a centenas de quilômetros, em Brasília.

Uma emenda (no valor de R$ 300 mil) do senador Fernando Collor de Mello (PTB), destinada ao evento, entrou nos cortes orçamentários anunciados pelo governo – e frustrou o organizador, Wagno Godez. “A produção já estava muito bem encaminhada. Mais de 90% vinha dessa emenda”, lamentou.

Emendas parlamentares são “o PAC da Câmara”, na definição do deputado Sandro Mabel (PR-GO). E o governo, logo em seu início, aplicou uma terapia de choque ao anunciar os cortes, que atingiram 72% dos R$ 25 bilhões apresentados pelo Legislativo. Mais ainda, deixou algumas nomeações de segundo escalão para depois de seu primeiro grande teste: a votação do salário mínimo. Ganhou com folga, confirmando a maioria que tem no Congresso. Mas o tamanho dessa maioria ainda deixa dúvidas, principalmente a partir de 2012.

Para observadores, o governo precisava de uma demonstração de força e um teste de fidelidade, ainda mais em uma votação simbólica como a do salário mínimo – nada como um voto impopular para isso.

Também pairava sobre o Executivo certa desconfiança do chamado mercado – para o qual o governo parece querer dar sinais de “bom comportamento” – em relação à sua capacidade de controlar os gastos públicos. Todos esses fatores confluíram para a aprovação de um salário mínimo abaixo das expectativas das centrais sindicais, causando os primeiros arranhões na relação com o Planalto.

“Dilma conta com uma maioria nominal bastante confortável. O problema é que os partidos nem sempre têm controle sobre suas bancadas”, observa o professor Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília (UnB). Isso acaba fazendo com que o Planalto, na expressão do cientista político, tenha de descer à planície, para discutir individualmente com os parlamentares – no varejo, como se diz. Como o governo é novo, Barreto acredita que as bancadas estejam testando a capacidade da presidenta.

O diretor do site Congresso em Foco, Sylvio Costa, crê que pelo menos neste primeiro ano o governo terá sucesso mesmo em matérias impopulares. “Não havia outro tema tão complicado para o PT como o salário mínimo”, diz o jornalista, destacando o simbolismo do assunto. “A maioria formal se mostrou uma maioria de fato. É uma indicação de que o governo vai ter um conforto razoável.” Esse conforto já deve diminuir a partir do ano que vem, quando haverá eleições municipais – e cada parlamentar passa a cobrar mais caro pelo apoio ou a colocar seu interesse eleitoral à frente de sua jura de fidelidade.

Segundo escalão

Para Costa, o Executivo agiu de forma inteligente ao levar o salário mínimo à votação antes de concluir a formação do segundo escalão. Mas, em seguida à aprovação do tema na Câmara dos Deputados, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Luiz Sérgio, garantiu: “Não existe nenhuma relação entre votação e nomeação”. O PMDB, certamente, discorda. A bancada do partido na Câmara garantiu 100% de seus votos para o governo. “O PMDB é governo e teve na Câmara uma atitude que expressa aquilo que já esperávamos”, comenta Luiz Sérgio.

Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o vice-presidente da República, Michel Temer, presidente licenciado do PMDB, também negou relação entre os temas: “Nem se discute a questão do segundo escalão. Nem vai se tocar nesse assunto. Essa é uma decisão da presidenta Dilma”. Ao mesmo tempo, disse que o desgaste político causado pela pressão por cargos ajudou no voto unitário peemedebista: “E falo isso mais como membro do governo do que do partido. O PMDB sentiu que deveria fazer aquilo que sempre fez: debater os grandes temas nacionais”. Para um analista, Temer havia “queimado o filme” por causa do apetite do partido por cargos, mas mostrou serviço na votação do mínimo, o que deveria fazer com que PT e PMDB entrassem em uma fase mais tranquila.

Integrante do diretório nacional do PMDB e presidente da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), Antônio Neto lamentou o que chama de falta de diá­logo do Executivo. “Sinto muito que o governo tenha testado sua maioria no Congresso com o valor do salário mínimo. É claro que ou você está no governo, ou fora do governo, mas tem coisas que você precisa sentar para conversar antes de ir para o Congresso”, afirma Neto.

Em relação ao PMDB, ele avalia que o partido acertou, até pelo que representa para o governo, com a Vice-Presidência e seis ministérios. “Base é base. Seria enfraquecer o governo Dilma (votar contra).”

Mas, para o sindicalista, o governo cometeu um erro grave no episódio: “O que fez o Brasil crescer foi baixar juros, ampliar os investimentos e aumentar salários, exatamente o contrário do que aconteceu agora”.

A constatação reforça a tese dos que veem, dentro do governo, o poder abaixo de Dilma ir se concentrando nas mãos do chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, chamado de “primeiro-ministro”. Não por acaso, um decreto presidencial de 17 de fevereiro transferiu para a Secretaria Geral da Presidência, do ministro Gilberto Carvalho, as secretarias de Administração e de Controle Interno. Com menos afazeres administrativos, a Casa Civil reforça seu viés político.

Atitude além do Congresso

Cut2-AugustoO PDT, também da base governista, saiu chamuscado. O partido decidiu liberar a bancada (26 deputados) na votação do mínimo, o que causou desgastes a seu principal articulador no governo, o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, também presidente da Força Sindical, e ao ministro do Trabalho, Carlos Lupi. “Estamos avaliando os caminhos que o governo Dilma está tomando”, disse Paulinho dois dias após a votação. “Se for o início, tudo bem. Esse caminho não terá nosso apoio”, acrescentou.

O deputado e sindicalista também lança dúvidas sobre o comportamento do Parlamento daqui em diante. “É normal (vitória do governo em início de mandato). Lá atrás, Collor sequestrou a poupança do povo e o Congresso apoiou. Na hora que for para valer, não segura a bronca”, comentou. Sobre Lupi, Paulinho afirmou que não há tratamento ruim por parte do governo. “O que tem é notinha na imprensa.”

O líder do PSB no Senado, Antonio Carlos Valadares (SE), espera um clima menos tenso entre Executivo e Legislativo. “A relação tende a ser mais calma, mais consultiva e construtiva do que na legislatura passada”, diz. Ele interpreta o resultado na questão do salário mínimo como uma manifestação de confiança dos partidos no governo. Mas, para que isso se repita em outras ocasiões, é preciso que a política econômica e social continue tendo êxito. De qualquer forma, o senador avalia que pelo menos em seu primeiro ano Dilma “tem tudo para ter apoio sem atropelo”.

Para Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), os três últimos governos mostraram semelhanças em seu início: “Fernando Henrique começou quebrando a categoria dos petroleiros, numa atitude injusta até. Lula começou reformando a Previdência. E Dilma começou de forma dura”.

Ele acredita que falta uma atitude mais política à presidenta. “Ela precisa falar para além dos partidos e da base de apoio, porque o Congresso é difícil de domar. Estou sentindo que falta na Dilma essa presença. Ela não está dizendo para a sociedade o que quer do Brasil”, observa Janine, pedindo uma postura mais ativa publicamente. “Ela tem tudo para ser uma grande gestora. Mas a gestão precisa ter um componente político visível.”

Também é preciso que haja uma definição da agenda de possíveis reformas, segundo o professor, alertando que há um “descontentamento social com a chamada classe política”.

AtritosPresidente da Cut-Augusto Coelho

A briga pelo aumento do salário mínimo causou atritos entre as centrais, particularmente entre as duas maiores, CUT e Força Sindical. Embora o valor obtido (R$ 545) tenha provocado frustração, o presidente nacional da CUT, Artur Henrique, destacou a importância de conquistar uma política legal de valorização do mínimo até 2015, conforme­ prevê o projeto aprovado no Congresso. “A CUT é protagonista da maior campanha salarial do mundo”, destacou o dirigente­, ao mesmo tempo em que descartou “ações de marketing ou pirotecnias” de outros dirigentes, em referência velada, ou nem tanto, à Força. Presidente da Força e também do diretório do PDT em São Paulo, Paulinho tentou negociar um valor intermediário para o mínimo, de R$ 560. “Não dá para comemorar vitória de R$ 545.”

Artur Henrique, da CUT, garantiu que em momento algum a central abriu mão da reivindicação de R$ 580. Em sua opinião, o valor alternativo poderia ser considerado­ desde que houvesse alguma sinalização nesse sentido do governo ou da base aliada – sem isso, seria ingenuidade. Ele lembrou ainda que os aumentos reais no período­ recente­ deram ao mínimo o maior poder­ de compra em duas décadas, com um acumulado­ de 53% nos últimos oito anos.

Para Antônio Neto, presidente da CGTB, o movimento sindical teve uma vitória parcial, ao conseguir a política de valorização do salário mínimo e, na sequência, a correção da tabela do Imposto de Renda. “E o episódio mostrou que, ao contrário do que se diz, as centrais não estão atreladas ao governo. Esse vai ser o processo que vamos enfrentar, entre monetarismo e desenvolvimentismo­.”