As receitas de Eliana Calmon

Embora pudesse se beneficiar de projeto que lhe daria mais 5 anos de magistratura, a ministra defende a aposentadoria aos 70: “Que o Judiciário remova seus dinossauros”

Ministra deixará o CNJ em setembro (Fotos Gláucio Dettmar/Agência CNJ)

Consta que certos magistrados incomodados com a atuação de Eliana Calmon à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) teriam uma vida mais sossegada se a ministra restringisse seus talentos à paixão pelo fogão. Eliana, desde a adolescência, é exímia cozinheira, apaixonada pela gastronomia de sua Bahia e – para quem duvidar – tem um livro: Resp – Receitas Especiais.  

O título brinca com a unidade do Judiciário na qual atua desde 1999, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), última instância de julgamento de recursos, por isso chamados de “Recursos Especiais” (Resp). Na obra, ensina a prepararf 457 pratos. 

Depois de fazer muito sucesso presenteando amigos, a magistrada resolveu vender o livro, hoje na nona edição e encontrado em livrarias por R$ 30. O dinheiro arrecadado vai todo para uma creche, Vovó Zoraide, de Uberaba (MG). Segundo ela, cozinhar une as pessoas e muda o humor. 

Mas nem só de melhorar o humor de seus convidados e familiares vive Eliana Calmon. No meio jurídico, aliás, houve humores muito alterados, para pior, desde que a ministra assumiu em, 2010 o comando do CNJ, órgão criado em 2004 com a finalidade de fiscalizar a gestão dos tribunais e supervisionar juízes quanto ao cumprimento de seus deveres. 

Por isso, alguns queriam o poder do CNJ diminuído, mas uma decisão apertada do Supremo Tribunal Federal assegurou suas atribuições, incluindo investigar denúncias não observadas pelos tribunais de primeira instância. 

Azar dos “bandidos de toga”, título atribuído por ela aos profissionais de má índole que mancham a imagem da magistratura e provocam um descompasso entre o sistema judiciário brasileiro e os avanços democráticos alcançados pelo país.

Eliana Calmon não veio mesmo ao mundo para ser “boazinha”. Em entrevista recente, contou ter sido uma adolescente ardida, especializada em contrariar as expectativas dos pais, como deixar a vaidade em segundo plano ou ir a um acampamento de escoteiros na véspera do aniversário de 15 anos e voltar torrada e cheia de picadas para a “festa da minha mãe, não minha”. O único homem do planeta que a faz baixar a guarda é o neto de 2 anos, que pode tudo quando está com ela. 

Barulhenta

Fã de Milton Nascimento, ela não tem lá um estilo muito mineiro de lidar com a política. Em vez de agir discretamente, não se faz de rogada quando precisa fazer barulho. Ainda que o ruído seja para admitir publicamente os vícios do sistema judiciário do país.

A punição para juízes corruptos é branda porque a legislação é uma vergonha. Não faz jus a um país que se democratiza. Mas eu acho que uma nova lei orgânica da magistratura que pode corrigir isso virá dentro de uns dois, três anos

Sua esperança é que uma renovação gradual e progressiva da carreira atraia novos quadros para dar continuidade à modernização do Judiciário. Aos 68 anos e em muito boa forma, a ministra tem admiradores torcendo pela aprovação da proposta de emenda constitucional que amplia para 75 anos a idade de aposentadoria dos juízes. Assim, torcem, teria fôlego até para chegar à presidência do STF. Eliana rechaça. Prefere ver mantido o retiro compulsório aos 70 e a remoção mais rápida dos “dinossauros que andam fazendo estragos”. 

A corregedora não se ilude quanto a possibilidades de o CNJ dispor de mecanismos que assegurem um funcionamento independente, rigoroso e implacável no combate às mazelas do sistema, qualquer que seja seu comandante de turno. “Ainda dependemos muito da iniciativa pessoal de quem estiver no comando”, admite. 

Enquanto esteve lá, cumprindo um ciclo de dois anos de gestão, fez sua parte. Aliás, ainda está fazendo. Perguntada se há alguma investigação importante em curso ou alguma revelação para as próximas semanas, a ministra não nega: “Muitas. E antes de eu sair, no dia 6 de setembro, ainda teremos algumas sessões para fazer algumas coisas”.

No dia 24 de julho, a juíza visitou o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, onde foi homegeada. Depois de proferir uma palestra a convite da Escola Judiciária Eleitoral Paulista, recebeu a reportagem da Revista do Brasil para esta entrevista.

Seu antecessor no CNJ, ministro Gilson Dipp, chegou a dizer que em alguns lugares do Brasil a situação do Judiciário era tão complicada que “precisava melhorar muito para ficar ruim”. O Judiciário, afinal, está ficando ruim, ou seja, está melhorando?
Acho que está. Eu posso dizer que já foi o caos. Hoje já está sendo soerguido. Tem muitos tribunais que estão em parceria com o CNJ, estão cumprindo as metas do CNJ, usando as ferramentas do CNJ, e dessa forma podemos ter esperança, as coisas começam a mudar, começa a haver um entendimento. E isso é natural. É um problema de mudança de cultura, e uma cultura arraigada há dois séculos, não é fácil, mas a mudança já começa a ser sentida.

Há algum tempo a senhora usou a expressão “bandidos de toga” para qualificar os que mancham a imagem de toda a magistratura. Por que alguns colegas seus se incomodaram tanto com isso? O Judiciário é blindado? 
Foi o que eu quis dizer. Essa blindagem que se faz ao Poder Judiciário se dá de forma errada, segundo um entendimento de que, como um dos pilares da República, da democracia, não pode ser desmoralizado. Então, blinda-se o Judiciário para não haver desrespeito aos seus magistrados. Só que isso leva a uma situação em que pessoas inescrupulosas ingressam na magistratura para se beneficiar dessa blindagem. E, por serem blindados, começam a fazer o que não devem. A blindagem é necessária, mas o ­sistema não pode ser tão fechado porque isso impede as correções de rumo quando necessário. Quando isso mudar, nós teremos alguns desvios de comportamento, mas não mais bandidos de toga.

Eliana Calmon (Foto: Conselho Nacional de Justiça)No episódio do Pinheirinho, o Judiciário foi rápido e insensível na reintegração de posse, e está devagar na apuração das denúncias de abuso e violência. Esse caso ilustra como a Justiça está mais para século 19 do que 21?
Sem dúvida alguma. Nós não temos ainda experiência suficiente para vencer conflitos plurissubjetivos, que envolvem muitas pessoas, muitas vidas e muitas famílias em meio a situações políticas diversas. Existe ainda a ideia de que nós somos aquele modelo quase napoleônico, no qual tem de prevalecer a letra fria da lei, quando hoje, na realidade, temos de ter muito mais sensibilidade e ativismo político. Ou seja, ser ativos o suficiente para fazer valer a autoridade não da lei, mas do bom senso e da sociedade.

Existe ainda uma ideia de modelo napoleônico, no qual prevalece a letra fria da lei. Temos de ter mais sensibilidade e ativismo político, ser ativos o suficiente para fazer valer a autoridade do bom senso e da sociedade

A senhora disse que ampla maioria da magistratura são pessoas sérias, que trabalham para que a Justiça prevaleça, mas meia dúzia de maus profissionais atrapalha o bom desempenho. Isso suja a imagem da instituição?
O problema é que essa meia dúzia tem um grande poder de ação. Enquanto nós que trabalhamos, que somos do bem, ficamos muito calados, na retaguarda, eles são ousados, afoitos, daí a força do poder de fogo. E se unem a alguns segmentos da sociedade que tiram proveito da inação do Judiciário. Não tenho dúvida de que esse longo período de inação terminou por criar segmentos que se nutrem da continuidade dessa inação. Ninguém tem interesse de que a Justiça volte a funcionar bem porque as elites perderiam um grande filão que dá suporte a elas. Essas pessoas estão dentro do Judiciário fazendo coisas erradas, e ainda dão suporte a outras que servem como inocentes úteis.

Virou até folclore popular que “polícia”, no sentido da aplicação da Justiça, só prende “preto e pobre”. O que faz com que o Judiciário tenha essa imagem de eficiente para os ricos e ineficiente para os pobres?
O sistema que temos foi feito para favorecer as elites políticas e econômicas. Não tenha dúvida disso. Todo o sistema é para essa proteção. Tanto que eu gosto muito de lembrar o filme Tropa de Elite, no qual o capitão Nascimento diz: “A culpa é do sistema, a culpa é do sistema”. A culpa é do sistema. E nós não mudamos de uma hora para outra. Porque, se nós mudarmos o sistema, as elites ficarão desprotegidas. Então nós não mudamos.

Apesar de todos esses defeitos do sistema, o CNJ já dispõe de mecanismos para que funcione bem em seu papel de fiscalizar o Judiciário, independentemente de quem venha a ser o corregedor? Ou ainda depende ­muito da iniciativa pessoal de quem estiver no comando?
Ainda depende muito da iniciativa pessoal de quem estiver no comando. Inclusive essas elites podres já descobriram a grande força do CNJ e já tentam providenciar para que o CNJ até não tenha tanta força. 


Mesmo assim a senhora é otimista quanto ao futuro?
Sou extremamente otimista porque acho que a força popular é muito grande, é capaz de paralisar essas elites. E temos grandes provas disso. Uma delas é a Lei da Ficha Limpa, que o Congresso não queria votar, mas a força popular paralisou as elites de tal forma que foi votada. Outro momento foi quando essas mesmas forças populares foram para as redes sociais, foram para os jornais fazendo um movimento efetivamente decisivo para que o CNJ continuasse com a sua competência total.

A de poder “concorrer” com as corregedorias estaduais e poder investigar mesmo denúncias que não tiverem passado pela primeira instância local?
Isso. Então eu acho que essa participação, o alcance disso, a gente só vai ver daqui a alguns anos. Isso é de um alcance extraordinário. E ninguém nunca viu… O povo – o povão, o motorista de táxi, o zelador de edifícios, as empregadas domésticas – começa a falar do Conselho Nacional de Justiça como se fosse uma coisa dele, uma instituição do povo. Isso é uma coisa linda. Isso é capaz de paralisar as elites. Mas é preciso tomar conta de quem se coloca lá. 

Eliana Calmon 2 (Foto: Conselho Nacional de Justiça)Há atualmente em curso alguma investigação de falcatruas no Judiciário que esteja preocupando muita gente e possa estourar a qualquer momento?
Sem dúvida, há muitas. Muitas. E antes de eu sair, no dia 6 de setembro, ainda teremos algumas sessões para fazer algumas coisas, né? (risos).

A senhora vê com simpatia a aprovação da “PEC da Bengala”, que permitiria adiar a sua aposentadoria compulsória dos 70 para os 75 anos de idade?
Não. Eu poderia até ser favorecida por ela, mas acho que o Judiciário, neste momento, precisa remover muitos outros dinossauros que estão por aí fazendo muito estrago.

O mensalão é um momento decisivo para O STF. Não podemos achar que só se sairá bem se condenar ou só se absolver. Se fosse assim, não precisava julgamento. E o povo precisa ser bem informado sobre os argumentos

Falando em dinossauro, a Justiça não é muito branda ao punir juízes infratores? Não são incomuns notícias de que determinado juiz, flagrado em ato de corrupção, foi “punido” com a aposentadoria. Isso é punição?
A legislação é uma vergonha, né? Não faz jus a um país que está se democratizando. E nós não ­conseguimos aprovar uma nova lei orgânica da magistratura em que poderíamos fazer a correção. Mas eu acho que uma nova lei virá dentro de uns dois, três anos. 

Está para começar o julgamento dos envolvidos no chamado mensalão. A senhora acha que será um momento importante para que o Judiciário mostre à sociedade que pode julgar sem pressões políticas, econômicas e outros interesses?
Eu acho que é um momento muito decisivo para o Supremo Tribunal Federal, que poderá se sair bem condenando ou absolvendo conforme os argumentos apresentados. Não podemos achar que só se sairá bem se condenar, ou só se absolver. Isso não existe. Se fosse assim, não precisava julgamento. O povo já teria julgado. Mas o povo precisa ser convencido pelos argumentos a serem usados pelo Supremo, que deverá mostrar por que está absolvendo ou condenando. Aí é que bate o ponto. É aí.

Os meios de comunicação do país vão informar corretamente a população esses argumentos todos?
Não tenho dúvida. Vocês, jornalistas, têm a obrigação de esclarecer a população sobre as coisas ­sérias e sobre as coisas que não são sérias. Isso é fun­damental.