Começa no berço

Dever das prefeituras, as creches e pré-escolas são pilares do desenvolvimento das crianças e seu sucesso escolar. Mas uma minoria tem acesso ao serviço

Os prefeitos de todos os municípios brasileiros que tomarão posse em 1º de janeiro de 2013 terão pela frente muitos desafios. Entre os principais, ampliar a rede de creches e pré-escolas. Esses segmentos constituem a chamada educação infantil, serviço a que toda criança com menos de 6 anos tem direito e as prefeituras são obrigadas a oferecer por determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), de 1996. 

No bairro de Jandina, personagem da capa desta edição, na falta de transporte e de creche, ela caminha 40 minutos para levar o filho a uma. Prejuízo para a mulher, a criança e para o futuro do país. Foto: Danilo Ramos/RBA 

O Censo Escolar do Ministério da Educação (MEC) mostra que o acesso tem aumentado nos últimos anos e, em 2011, estavam matriculadas 2.298.707 crianças até 3 anos e 4.681.345 na faixa entre 4 e 5 anos.

Os dados confirmam que o desafio dos gestores é mesmo imenso. Pelas contas do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), que defende políticas públicas para o fortalecimento dessa etapa da educação, os números correspondem a 18%, em média, do total da procura por vagas em creches na maioria das cidades brasileiras. Tamanha empreitada é também urgente: pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009, termina em 2016 o prazo para colocar na sala de aula todas as crianças de 4 e 5 anos de idade.

Primeira etapa da educação básica – a segunda é o ensino fundamental, que inclui crianças a partir dos 6 anos, e a terceira, o ensino médio –, o segmento infantil deixou de ser meramente um espaço exclusivo para o cuidado da criança pequena enquanto a mãe trabalha fora. Com a LDB, a assistência foi substituída por um papel fundamental na trajetória escolar de toda criança, até mesmo daquela que ainda não aprendeu a andar ou dizer as primeiras palavras.

“A infância é importante no desenvolvimento, na aprendizagem de valores, costumes, atitudes, na consolidação da personalidade, da identidade e do caráter”, afirma a educadora Maria Stela Santos Graciani, coordenadora do Núcleo de Trabalhos Comunitários da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “Em cada momento, a criança desenvolve uma habilidade específica, como a motricidade, a sociabilidade, comportamentos. Enfim, constrói sua visão do mundo, de si própria e do outro.”

Como ela destaca, é no âmbito da educação infantil que a criança desenvolve a destreza motora, aprende a articular ideias frente a figuras, desenhos, jogos e brincadeiras, é preparada para enfrentar desafios e ainda aprende com o relacionamento com os colegas. Assim, aquela que está excluída dessa etapa é prejudicada.

“Provavelmente terá defasagem na aprendizagem e problemas que só serão resolvidos futuramente. Sem contar os prejuízos irrecuperáveis, como a timidez e a falta de coragem para enfrentar desafios e situações novas”, diz Maria Stela. Além disso, estudos mostram que o sucesso escolar do aluno que passou pela creche é maior, com melhor desempenho e menor risco de abandonar os estudos.

Improbidade

Mesmo assim, o serviço ainda é para poucos. Em São Paulo, cidade brasileira mais rica, apenas 26% das crianças estão matriculadas em creches. E há 174 mil em listas de espera. O prefeito Gilberto Kassab (PSD) está sendo responsabilizado pelo Ministério Público estadual por improbidade administrativa ao não atender a essa demanda e também por direcionar recursos do setor para outras áreas, o que é comum em muitos municípios. Como também acontece na maioria deles, a escassez é maior nos bairros mais pobres e distantes, nos quais as mães são obrigadas a matricular os filhos em outras localidades.

É o caso de Jandina de Sá. Todos os dias, com o filho de 1 ano e 5 meses no colo, ela atravessa o Jardim Gaivotas, onde mora, no extremo sul da capital paulista. Com sol ou chuva, caminha por 40 minutos até o Jardim Cocaia, onde conseguiu vaga. “Faz muita falta uma creche no bairro. O tempo que levo caminhando poderia usar para procurar emprego”, conta.

Com a omissão do poder público, uma alternativa das mães no Jardim Gaivotas e de tantas outras localidades é recorrer ao serviço de cuidadoras autônomas, como Josefina Chagas, que fica diariamente com uma menina de 3 anos. “Comigo ela só fica em casa vendo TV. Não tem contato com outras crianças”, conta. Há projeto de construção de um estabelecimento ali, fruto da mobilização da comunidade. O terreno, porém, ainda nem começou a ser preparado para a obra.

As poucas crianças que conseguem vaga, em geral, estudam em espaços superlotados, inadequados. Segundo o Fórum Paulista de Educação Infantil (FPEI), outro problema, típico de São Paulo, é a opção política pela entrega de prédios públicos a entidades privadas ou religiosas – as chamadas creches conveniadas.

“Defendemos a verba pública para escola pública, a educação infantil de qualidade como direito das crianças e das famílias e um sistema público de ensino laico”, diz a especialista Waldete Tristão Farias Oliveira, do grupo gestor do FPEI.

Segundo o prefeito Kassab chegou a alegar, faltam recursos e terrenos para a construção, mas ele não convenceu a todos. “Por que não foi buscar verbas do governo federal?”, questiona Maria Stela Graciani, que participou do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Os recursos a que ela se refere estão previstos para São Paulo pelo Proinfância, do MEC. Há verba o bastante para construir 172 novos prédios, que a prefeitura desprezou. Criado em 2007, o programa destina recursos ao Distrito Federal e aos municípios mediante assinatura de convênios para a construção e compra de equipamentos e mobiliário para essas escolas. A meta é construir 6.427 estabelecimentos até 2014, para os quais há R$ 7,6 bilhões vinculados ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A contrapartida das prefeituras é a cessão do terreno.

Acompanhar a demanda

Ao contrário da prefeitura paulistana, a de Araraquara, no interior de São Paulo, não tem déficit de creches, o que é confirmado pelo Conselho Tutelar. As 40 unidades são mantidas diretamente pela gestão pública, que em 2010 chegou a investir 31,25% da arrecadação total em educação, acima dos 25% que a lei determina. Com recursos próprios e dos convênios assinados com o estado e a União, como o Proinfância, a prefeitura construiu quatro creches de três anos para cá, duas delas para atender ao aumento da procura de vagas decorrente da entrega de casas populares. Outras três estão em construção.

“A boa cobertura se deve principalmente aos planos municipais, que contemplam a ampliação da oferta de vagas e a expansão da rede conforme estudo de demanda”, afirma a educadora Viviane Cereda, responsável pela gerência de Educação Infantil da cidade. Segundo ela, todo ano é feita uma pré-inscrição para as vagas. A partir dela, os gestores abrem novas salas onde há maior demanda e fecham onde há ociosidade. É claro que aparecem crianças ao longo do ano letivo. Quando é impossível encaixá-las nas vagas que surgem, são contabilizadas para o seguinte.

Na avaliação do presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM)Paulo Ziulkoski, o auxílio externo para construção é sempre bem-vindo, mas o custeio das unidades pesa nas contas internas. Segundo ele, o Fundo de Manutenção

e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) repassa às creches, em média, um valor menor que o de outras etapas, embora esses alunos só não custem mais que os do ensino superior.

“O custo médio de cada criança é de R$ 650, 37% maior que o do ensino médio, quando seu peso na ponderação dos cálculos para repasse do Fundeb é em média 25% menor”, afirma. Com isso, as prefeituras têm de destinar mais verbas. Em 2009, segundo a CNM, foram gastos no setor R$ 180 bilhões, dos quais 41% pelos estados e 39% pelos municípios, que arrecadam menos. “A saída é a União, a que mais arrecada, aumentar a sua contribuição”, diz Ziulkoski.

O déficit de creches e pré-escolas é histórico. Até a promulgação da LDB, o serviço geralmente era oferecido por entidades assistenciais. De lá para cá, mesmo com sua inclusão no rol das políticas educacionais, não avançou por limitações orçamentárias. A prioridade dos gestores era a universalização do acesso ao ensino fundamental, que na maioria dos casos é compartilhado entre municípios e estados.

Mais tarde, quando o então Fundef, que financiava o ensino fundamental, foi ampliado para Fundeb, para toda a educação básica, ainda deixava de fora as creches. Entre 2005 e 2007, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, articulação que reúne mais de 200 movimentos sociais, sindicatos, fundações e entidades de todo o país na defesa da educação pública de qualidade, desencadeou um movimento chamado Fundeb pra Valer, para incluí-las no fundo. A mobilização, vitoriosa, é destacada pelo documento Direitos desde o Princípio – Educação e Cuidados na Primeira Infância, da Campanha Global pela Educação, lançada recentemente em todo o mundo.

Cálculo subestimado

São da Campanha pelo Direito à Educação, aliás, cálculos como o Custo-Aluno Qualidade inicial (CAQi), indicador que prevê que o total anual a ser gasto por aluno na creche, cerca de R$ 7,5 mil, é quase duas vezes maior que o utilizado pelo MEC. “A aplicação do CAQi estimularia as prefeituras, já que aumentaria o repasse”, afirma o coordenador da ONG Ação Educativa e integrante da campanha Salomão Ximenes. 

Mariéte Félix Rosa, educadora de Campo Grande (MS) e integrante do comitê diretivo do Mieib, lembra que há ainda muitos desafios, além da ampliação do atendimento: melhoria da qualidade dos serviços, efetiva integração aos sistemas de ensino, direcionamento dos recursos financeiros e exigência de formação adequada de profissionais.

Ela entende que, antes, os prefeitos deveriam se organizar para cumprir suas obrigações e prazos e oferecer ensino de qualidade. “Eles ainda têm três anos para isso, sem contar que a emenda 59 é de 2009.”

Presidenta da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) para a Região Sudeste, Célia Vilela Tavares, secretária de Educação de Cariacica (ES), lembra que os prefeitos que vão assumir devem estar atentos ainda às metas do Plano Nacional de Educação.

O PNE estabelece 20 metas educacionais a serem alcançadas pelo país em dez anos. Entre elas, aumento gradual nos investimentos em educação pública e na remuneração dos profissionais, ampliação das vagas em creches, erradicação do analfabetismo e a oferta do ensino em tempo integral em pelo menos 50% das escolas públicas. “Cada governante será responsabilizado em caso de descumprimento da sua etapa”, afirma Célia.

Além disso, segundo ela, tramita no Congresso o projeto da Lei de Responsabilidade Educacional, que poderá punir os gestores. Pela proposta, o descumprimento de regras como jornada escolar em tempo integral será considerado crime de responsabilidade, infração político-administrativa e ato de improbidade, até mesmo com suspensão das transferências da União ao estado ou ao município.

Colaborou Sarah Fernandes