A sabedoria do Jeca

Em sua forma de retratar o homem do campo, Mazzaropi sonhou criar uma indústria para chamar de sua, apanhou da crítica, foi sucesso de público e está na memória nacional

Amácio Mazzaropi realizou 32 filmes e deixou um “Maria Tomba Homem”, incompleto. Em seu tempo, a TV não reinava absoluta dos lares, o Brasil urbano era pouco mais que um projeto e o caipira, um ícone da identidade nacional. Não havia como sua produção cinematográfica passar batido na memória cultural do país. 

Mazzaropi em cena do filme Lamparina,de 1964 (Foto acervo museu Mazzaropi)  

Com filmes como Sai da Frente (1952), Jeca Tatu (1959), Tristeza do Jeca (1961), O Corintiano (1966), O Jeca e aFreira (1967), Mazzaropi foi campeão de bilheterias e deixou como legado o sonho de uma indústria cinematográfica.

“Mazzaropi tinha grande facilidade de comunicação e a capacidade de fazer dinheiro com cinema. Vi, revi e ‘trevi’ todos os filmes dele, e dei muita risada”, relata o historiador e crítico Celso Sabadin, às voltas com a finalização do documentário Mazza.doc, com lançamento esperado para o fim do ano. “Sou um cinquentão. Só que o pessoal da produção e da edição do filme, moçada de 20, 30 anos, também riu muito. Como se explica isso? Mesmo quando a piada não é boa, vinda dele fica uma maravilha.” 

 Filho de imigrante italiano com uma portuguesa, Mazzaropi nasceu em São Paulo em abril de 1912. Mudou-se com 2 anos para Taubaté (SP) e quando retornou à capital, aos 5, o mito do personagem caipira já estava colado à sua personalidade. De centro das atenções nas festas escolares a artista de circo foi um tirinho de espingarda. Aos 14 anos, passou a integrar a equipe do Circo La Paz. Antes de ir parar no cinema teve experiência teatral, com o espetáculo A Herança do Padre João, e passagem de sucesso pelo rádio e pela TV Tupi, com o programa Rancho Alegre.

Bom de marketing

 

A estreia no cinema ocorreu em 1952, com Sai da Frente, realizado pela Vera Cruz. Depois de outros quatro filmes feitos por diversas produtoras, Mazzaropi vendeu sua casa, criou a Produção Amácio Mazzaropi (PAM Filmes) e passou a produzir e distribuir suas obras. Em 1961, começou a construir em Taubaté o estúdio de gravação, que mais tarde ganharia oficina de cenografia e hotel para atores e técnicos. Dali saiu seu primeiro longa em cores, Tristeza do Jeca, no qual o herói vira cabo eleitoral de políticos inescrupulosos.

O recorde de bilheteria foi do filme O Corintiano, de 1966. Nele, o ator vive um barbeiro fanático pelo time do Parque São Jorge, capaz de andar em burro em preto e branco – e não é uma zebra –, fazer promessas malucas ou subornar um juiz. Durante boa parte da carreira, Mazzaropi foi perseguido pela crítica especializada, e para Celso Sabadin não raras vezes a crítica tinha razão. “Acontecia um fenômeno parecido com as chanchadas da Atlântida, que o público amava e a crítica odiava”, avalia. Mesmo assim, influenciou comediantes e ainda hoje há quem o cultue.

O estereótipo criado por Mazzaropi remetia aos moradores do interior de São Paulo, aproximando-se do Jeca Tatu de Monteiro Lobato. “O Jeca de Mazzaropi difere do personagem do Lobato. Aqui falamos no caipira matuto, engenhoso, que não se deixa levar e sempre tem uma resposta para tudo. É autodidata, sobrevive com o que a natureza oferece e com o que pode fazer com as próprias mãos. Herança indígena”, diz a assistente cultural Pâmela Botelho, do Museu Mazzaropi. 

Pâmela destaca o fato de Mazzaropi ter sido também crítico dos poderosos e dos preconceitos sociais, e muito bom de marketing – lançou muitos filmes no aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro. “Ele criou uma indústria de cinema de um homem só, o que continua a parecer algo impossível hoje. A estrutura criada mostra seu lado visionário, ao unir a magia do cinema ao lazer com a PAM Filmes Park Hotel.”

Segundo Sabadin, não depender de ninguém foi fundamental para o sucesso. “Os produtores eram escancaradamente roubados pelas distribuidoras e donos de cinema. E Mazzaropi controlava tudo, do início ao fim do processo, colocando até fiscais particulares nas bilheterias. De caipira ingênuo, ele não tinha nada.” 

Desde 1994, a memória do ator está reunida no Museu Mazzaropi, em Taubaté, onde ele vivia quando morreu, em 1981. O museu começou a funcionar nas dependências de onde era o estúdio e, em 2010, ganhou um novo prédio, com entrada independente e de melhor acesso. Em 2011, foi inaugurada a exposição permanente  interativa Mazzaropi, para a Felicidade do Brasil, que exibe equipamentos de filmagem, objetos cenográficos e figurinos.

Os traços do personagem também são perpetuados por meio do trabalho do ator André Luiz de Toledo, que hoje assume o sobrenome Mazzaropi e se apresenta como “o filho do Jeca”. Em 1968, aos 11 anos, André conheceu o cineasta durante as filmagens de No Paraíso das Solteironas, e a partir de então não desgrudou mais dele, nem mesmo nos momentos em que o ídolo ficou doente.

Juntos, realizaram centenas de apresentações e vários filmes, como Jecão… um Fofoqueiro no Céu (1977), Jeca e Seu Filho Preto (1978) e A Banda das Velhas Virgens (1979). “O povo brasileiro ama o Mazzaropi, com quem tem uma identidade construída com dignidade e coragem, de menino pobre ao Jeca mais rico e famoso do Brasil”, afirma André Luiz, idealizador da ExpoJeca, com a qual pretende percorrer cem cidades do estado de São Paulo até dezembro – encerrando, claro, em Taubaté.