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A vida em volta das águas da Lagoa Mirim, no Rio Grande

Histórias de pescador passam de avô para neto e preservam cultura e hábitos ribeirinhos na imensa bacia de água doce, de pé atrás com os arrozais, no sul do Rio Grande do Sul

Ana Mendes

Gauchinho exibe traíra: “Sem convicção não se tira peixe”

Depois que o padre foi assassinado na porta da igreja, a vida nunca mais foi a mesma em Santa Isabel. “Fomos amaldiçoados”, dizem. O vilarejo de mais de 200 anos viveu tempos áureos, visíveis ainda em casarões e ruínas de arquitetura açoriana. Uma visita de dom Pedro II no século 19, quando as fachadas eram ornamentadas a ouro, denota a importância histórica do local. A vila que tem origens portuguesas fica no município de Arroio Grande, às margens da Lagoa Mirim, no Rio Grande do Sul, e foi uma das sedes econômicas da região, que vivia do charque. Hoje a maior parte da sua população, cerca de 900 habitantes, se ocupa da pesca artesanal na lagoa e banhados aos arredores.

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A vila de Santa Isabel fica no município de Arroio Grande
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A pescadora Liane e o filho, em Santa Vitória do Palmar

A equipe de pesquisa e restauração encontrou uma ossada no assoalho da igreja – supostamente pertencente ao padre. O achado marca o início do inventário encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) para o tombamento da estrutura construída em 1861 com madeiras nobres e azulejos importados. A igreja chama atenção pelo seu tamanho. São quase 10 metros de altura, em contrastante imponência ao lado das casinhas de alvenaria dos pescadores.

O Rio Grande do Sul é o quarto estado mais importante na atividade da pesca artesanal no país. São cerca de 12 mil pescadores licenciados pelo Ministério da Pesca e Aquicultura. A maioria herdou a profissão dos pais e familiares, cresceu entre redes, barcos e histórias. Esses mitos e lendas contadas de avô para neto há centenas de anos é que garantem a existência da cultura ribeirinha. A maldição do padre explica, em alguma medida, a escassez de peixe e as alagações sofridas todos os anos na região.

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Os pescadores mais antigos garantem que em algumas décadas foram extintas pelo menos cinco espécies de peixe

Os homens das águas têm fé. “Quem pesca sem convicção não tira peixe”, diz Gauchinho, com seu barco cheio de traíras. Eles respeitam a lagoa ondulosa do mês de julho e não saem para pescar antes da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia 2 de fevereiro. Na construção de uma relação entre seres humanos, divindades e natureza por vezes se fazem necessárias certas analogias. O pescador Chicão, ao lamentar a degradação ambiental, compara a lagoa a uma mãe: “Já pensou o dia em que as mulheres deixarem de ter filhos? Pois vai ter um dia que essa lagoa vai deixar de ter peixe”.

A Mirim é a maior lagoa de água doce do país e a segunda maior da América Latina. Os pescadores mais antigos garantem que em algumas décadas foram extintas pelo menos cinco espécies de peixe. Isso ocorre principalmente porque em 1977 foi criada a Barragem de São Gonçalo, entre a Lagoa dos Patos e a Lagoa Mirim, impedindo o escoamento de água salgada para ela. São as lavouras de arroz que se beneficiam com a dessalinização das águas, consumindo anualmente cerca de 12 milhões de litros por hectare plantado. “Quase todo mundo planta com a água da Mirim. Muito banhado foi reduzido a arroz. De 15 anos pra cá, terminaram os mananciais”, conta Gauchinho.

aves.jpgcruz.jpgFrente a essas transformações socioambientais, o que ainda contribui, então, para manter as comunidades na atividade pesqueira? Além do sentimento de afeto ligado à profissão, o principal motivo é a autonomia para gerir horários e folgas. A maioria deles faz biscates ou já experimentou trabalhar como “granjeiro”, mas é na pesca que ganham melhor e vivem com maior liberdade. Porque se por um lado o trabalho na água é árduo, por outro a organização dos pescadores em cooperativas e os benefícios conquistados permitem que vislumbrem um futuro.

A Lagoa Mirim é cercada por quatro municípios brasileiros – Rio Grande, Arroio Grande, Jaguarão e Santa Vitória do Palmar –, além de outros três em território uruguaio. Em Santa Vitória está Vila do Porto, a Colônia de Pescadores Z16, no extremo sul. Para chegar lá, saindo de Porto Alegre, atravessa-se a Estação Ecológica do Taim, onde de um lado e de outro da pista é possível ver capivaras e jacarés em eterno banho de sol.

A unidade de conservação ganhou o título de Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e é conhecida como ponto de pouso e nidificação – formação de ninhos – de aves migratórias vindas da região ártica ou da Antártida. Localizada em uma estreita faixa de terra, entre o oceano Atlântico e a Lagoa Mirim, a estação é conhecida como viveiro natural de espécies animais e vegetais.

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A igreja chama atenção pelo seu tamanho. São quase 10 metros de altura
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A Mirim é a maior lagoa de água doce do país e a segunda maior da América Latina

As espécies mais comuns de peixe na Vila do Porto – e na lagoa como um todo – são o jundiá, o pintado, o trairão, a viola, a corvina, o cascudo e o peixe-rei. Mas um peixe de aproximadamente 40 centímetros é o mais desejado pelos pescadores da região. “A traíra é o ouro da Mirim”, dizem. Dela tiram os miúdos, considerados caras iguarias. A bochecha é comercializada pela cooperativa de pescadores para as cidades ao redor, mas não chega ao interior do estado ou à capital. Um dos pratos típicos da culinária local é o estrogonofe de bochecha de traíra, feito com molho de tomate e creme de leite e servido quente com arroz e batatas.

A pesca, base da subsistência dos ribeirinhos na fronteira do Brasil com o Uruguai, é também símbolo dessa identidade cultural singular que, em certa medida, confronta o estereótipo do gaúcho pampeano. Entre banhado, praias e dunas vivem essas pessoas que configuram a dimensão humana de um complexo sistema ecológico.

Atividade protegida, área nem tanto

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Durante a época do defeso, também conhecido como piracema ou desova de peixes, os pescadores devem suspender as atividades de pesca. Na Lagoa Mirim dura três meses, de 1º de novembro a 31 de janeiro. Como contrapartida, eles recebem o benefício do seguro-desemprego no valor de um salário mínimo em cada mês que deixam de pescar em respeito ao período reprodutivo. Para isso, devem se cadastrar no Ministério da Pesca e Aquicultura e se inscrever no INSS como contribuinte especial.

Apesar da longa espera, no caso da Lagoa Mirim os pescadores adiam em três dias o retorno às atividades, somente depois das festividades de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia 2 de fevereiro. A categoria pode também recorrer ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e ter acesso a crédito para compra de artefatos de pesca, motores e embarcações.

O alcance de algumas políticas públicas é um reconhecimento importante à cultura das comunidades ribeirinhas e retribui com uma proteção social mínima uma prática essencial para a proteção do bioma. O problema ambiental ali, portanto, não é a extensão do defeso, mas a extensão dos arrozais.