Ecos de Realengo

Após tragédia, governo espera mais adesões em campanha de desarmamento

Exatamente um mês após o assassinato de 12 crianças por um atirador em uma escola no bairro carioca de Realengo, o poder público deu início a uma nova tentativa de desarmar a população. Lançada no começo de maio pelo Ministério da Justiça, um mês antes do previsto, a terceira Campanha Nacional do Desarmamento receberá até 31 de dezembro, em postos de coleta espalhados por todo o país, doações de armas em troca de indenizações que variam entre R$ 100 e R$ 300. A atual campanha conta com alguns trunfos para conquistar maior adesão popular e ser mais bem-sucedida do que as duas anteriores, realizadas em 2004-2005 e 2008-2009.

A principal diferença diz respeito ao anonimato de quem vai entregar as armas nos postos de recebimento. Antes, apesar de estar teoricamente garantida a preservação da identidade do doador, era exigido o CPF da pessoa para que pudesse receber a indenização, o que era uma contradição. Desta vez existe somente um recibo, com um selo de segurança bancária, no qual consta apenas a identificação da arma. No documento não aparece o nome da pessoa, em respeito ao anonimato do doador.

Outro item que deve aumentar o sucesso desta terceira edição é a maior facilidade de acesso às indenizações. O tempo de demora para pagá-las era de pelo menos três meses. Agora, com o recibo, em até 72 horas o doador poderá sacar o valor em qualquer agência do Banco do Brasil: “O governo está ousando ao garantir o anonimato e temos orçamento de R$ 10 milhões para indenizar as pessoas que entregarem suas armas. Espero que até o fim do ano falte dinheiro”, diz o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Além da garantia de sigilo e da rapidez do pagamento, espera-se que a atual campanha seja impulsionada por uma maior mobilização das entidades da sociedade civil. Coordenador do programa de Controle de Armas da ONG Viva Rio, Antonio Rangel Bandeira já vê sinais claros nessa direção: “Esperamos participação maciça da sociedade civil. Não serão mais somente algumas igrejas ou ONGs. A maçonaria O Grande Oriente do Brasil, por exemplo, pôs à disposição suas 2.000 lojas no país. O presidente da OAB mobiliza as 4.000 seções da entidade em todo o Brasil. As igrejas estão se movimentando fortemente, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic)”.

A entrada em cena de grandes redes, segundo Rangel, é muito importante: “Tem gente que não quer entregar a arma à polícia. Isso é muito comum, principalmente nos lugares onde a polícia não goza de boa reputação, ou seja, na maioria dos estados brasileiros. Essa é a grande razão para que a sociedade civil possa receber essas armas, sobretudo em um território neutro como são as igrejas, as ONGs, a maçonaria. São todas instituições filantrópicas, que trabalham para o bem comum, e por isso têm muita legitimidade e idoneidade”, avalia.

Outro fator apontado como trunfo para aumentar a adesão popular é a garantia de que as armas serão inutilizadas no ato da entrega. Nas vezes anteriores, isso ocorria apenas nas ONGs e igrejas que abriram postos de recebimento. Na frente do doador, a arma era colocada em uma base metálica e, com uma marreta, inutilizada. Esse processo agora será adotado por todos os postos de recolhimento, inclusive na polícia.

“Isso é essencial por duas razões. Primeiro porque evita o desvio de armas. Em 2004, foram constatados casos em algumas delegacias do Brasil e também por parte de elementos corruptos do Exército em Brasília. As armas, depois de recebidas, eram entregues ao Exército para ser destruídas. Com esse novo método, viram ferro-velho na hora. A segunda razão é dar segurança aos postos de recebimento civis. Foi do medo dos padres e pastores que guardavam armas perto de áreas de risco que nasceu nossa ideia de marretá-las”, conta Rangel.

Convencimento

Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) especializado em segurança pública, o sociólogo Ignacio­ Cano afirma que a campanha tem de persistir nos argumentos tradicionais. “Primeiro, mostrar às pessoas que a ideia de que existem armas para se proteger e armas para combater crimes é ilusória, porque a transferência entre o circuito legal e ilegal é muito grande. Segundo, que são um fator de risco, e não de proteção. As pessoas que se armam para se proteger, os estudos demonstram, estão se expondo a um risco maior. Por fim, aproveitar a tragédia de Realengo para frisar que o livre acesso às armas é extremamente perigoso para a sociedade.”

Segundo observa o Viva Rio, o massacre tem servido como incentivo para que as pessoas entreguem as armas: “No dia seguinte, antes mesmo de qualquer anúncio sobre campanha de desarmamento, nosso telefone não parava de tocar. O homem de bem sempre tende a ver a arma como um instrumento de defesa do seu lar, dos seus bens, da sua vida, mas um episódio como esse mostra que a arma também pode se voltar contra as pessoas de bem”, diz Rangel.

Ele dá como exemplo o ocorrido em 1996, em Port Arthur (Austrália), quando um homem com várias armas automáticas matou 35 pessoas e feriu 18 em um bar. “Isso provocou uma comoção tão grande no país que os australianos proibiram a venda e fizeram a maior campanha de entrega voluntária de armas do mundo, recolhendo 700 mil, o que baixou os homicídios por arma de fogo em 43%.”

Na primeira semana de coleta, o Viva Rio recebeu 350 armas de diversos tipos. Cerca de 70% são revólveres, seguidos por pistolas (14%) e armas longas de caça (10%). Os dados mais curiosos, entretanto, revelam que existe uma grande predisposição social para a campanha: “A maioria esmagadora dos doadores concluiu que ter arma era mais um risco do que uma proteção e 65% se disseram convencidos pela campanha. Apenas 6% afirmaram que estavam entregando a arma pela indenização. Catorze por cento revelaram que houve uma grande discussão em casa, geralmente com esposa e filhos, para o chefe de família se desfazer da arma”, afirma Rangel.

A determinação da Subcomissão de Armas e Munição da Câmara, segundo seu presidente, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), é começar o trabalho pela “primeira e mais desafiadora etapa”: verificar o cumprimento do Estatuto do Desarmamento. “Vamos analisar item por item, para ver o que já está sendo cumprido e o que ainda não está. Depois, discutir de que maneira aperfeiçoar o estatuto. Por fim, analisaremos os projetos em tramitação no Congresso que digam respeito a posse, porte e propriedade de armas. São esses os três movimentos que vamos fazer na subcomissão e, se formos bem-sucedidos, vai melhorar muito esse problema no Brasil, mesmo sem proibir totalmente a comercialização de armas, como gostaríamos”, aposta.

Informação

Rangel prega a efetiva aplicação do estatuto. “Achamos que o eleitorado votou de forma equivocada no referendo de 2005 porque estava mal-informado, mas perdemos e temos de respeitar isso porque somos democratas. Não se trata de mudar lei. Achamos que o problema é muito mais grave e mais simples, isto é, trata-se de cumprir a lei. A nossa ótima lei, que é o Estatuto do Desarmamento, continua quase toda no papel, foi aplicada em 10%”, lamenta.

O coordenador do Viva Rio cita a falta de colaboração entre as próprias forças de segurança. “A lei prevê o acesso da Polícia Federal ao banco de dados Sigma das Forças Armadas, que tem o registro das armas privadas de todos os militares e policiais brasileiros. São armas que se prestam muito a ser vendidas para terceiros e cair na criminalidade. Existem também as dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), artifício muito usado pelos bandidos para conseguir armas e munições, como o próprio Exército já apurou na Operação Planeta. Mas as Forças Armadas se recusam a cumprir a lei e não dão acesso a esse cadastro à PF, que não pode fazer o rastreamento.”

Ele cita outros exemplos de não cumprimento da lei: “O estatuto também fala em controle irrestrito das lojas de armas, mas ninguém faz isso. As autoridades não fiscalizam sequer o transporte delas, em que há muito desvio. As empresas de segurança privada também não são fiscalizadas e são sabidamente grandes fontes de desvio de armas de fogo para a bandidagem”.

Todos concordam que, naquilo em que o Estatuto do Desarmamento foi de fato aplicado, as coisas melhoraram muito. É o caso das campanhas de entrega voluntária e da proibição de andar com arma na rua: “A combinação de somente essas duas medidas já baixou os homicídios em 11%, o que representou mais de 5.000 vidas salvas em cinco anos. Mas os outros mais de 30 artigos do estatuto estão no papel até hoje. A melhor resposta que podemos dar à tragédia de Realengo é fazer com que as autoridades cumpram a lei”, diz Rangel. 

Novo referendo?

As pessoas mais diretamente envolvidas com a Campanha do Desarmamento se mostram contrárias à realização de um novo plebiscito ou referendo para determinar a proibição da venda de armas no Brasil. Na consulta anterior, realizada em 2005, 64% do eleitorado votou contra a proibição desse tipo de comércio. “Acho que a convocatória do referendo só deveria acontecer depois de assegurados muitos apoios e uma certeza clara de que haveria um avanço. A maior parte dos avanços que tivemos nos últimos anos ocorreu antes e a despeito da derrota no referendo de 2005. Então, não me parece que isso seja uma peça central nesse processo”, opina Ignacio Cano.

O deputado Alessandro Molon também é contra um novo referendo. “Eu estava entre os que defendiam a proibição e perderam, mas defendo que não seja feito um novo plebiscito ou referendo neste momento, porque a população brasileira se manifestou há pouco tempo a esse respeito e não acredito que os dados recentes tenham sido suficientes para mudar majoritariamente a posição que levou ao resultado de 2005”, diz. Mais importante agora, em sua opinião, é garantir que o Estatuto do Desarmamento seja plenamente cumprido.