economia

A mão da massa

Os trabalhadores se movimentam e, mesmo desprezados e criminalizados pelos meios de comunicação, comprovam que a distribuição de renda, mais que melhorar a vida das pessoas, é o principal lastro da economia

Antonio Cruz/ABr

Multidão: marcha das centrais reuniu 50 mil pessoas em Brasília

O operador de prensa Armando Diego dos Santos Melo vai, finalmente, começar a reforma da cozinha de sua casa, em Salto, interior de São Paulo. A assistente de negócios Inês Ogando, que trabalha no Banco do Brasil na capital paulista, vai pagar despesas com dentista e cartão de crédito. A exemplo do que vem ocorrendo nos últimos anos, mais de 90% das categorias profissionais do país estão fechando 2009 com aumento salarial igual ou superior à inflação, além de outros itens econômicos e sociais que compõem seus acordos coletivos de trabalho. Com o dinheiro recebido na primeira parcela da Participação nos Lucros e Resultados, somado ao salário reajustado e ao 13º, Armando e Inês viabilizam planos. 

De acordo com o Sindicato dos Metalúrgicos de Salto, só a PLR de R$ 650 recebida por Armando, empregado da Thermoid, e a de outros 20 mil trabalhadores da mesma base representam um adicional de R$ 3 milhões na economia da cidade, que tem pouco mais de 100 mil habitantes e PIB próximo de R$ 1 bilhão. Já no mais famoso polo metalúrgico do país, a região do ABC, a PLR variou de acordo com o segmento empresarial. Mas, considerado somente o índice salarial de 6,6%, o acréscimo na renda dos 96 mil trabalhadores da região será de R$ 190 milhões em um ano, estima o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Para os químicos do estado de São Paulo, os 6% obtidos no mês passado terão um efeito adicional de R$ 53 milhões. Entre os bancários, uma das poucas categorias cuja convenção coletiva tem abragência nacional e validade para 450 mil pessoas, o impacto do mesmo índice chegará a R$ 1,3 bilhão em 12 meses, entre setembro deste ano e agosto do ano que vem. Os números são dispersos e não fecham exatamente uma estatística. São só bons exemplos de uma tese defendida pelo movimento sindical nas últimas três décadas que, nos últimos anos, as categorias mais organizadas têm conseguido pôr em prática com alguma regularidade: a de que toda pequena parcela de riqueza que deixa de ser contabilizada como lucro e vai para o bolso do trabalhador, longe de atrapalhar a saúde das empresas, ajuda a desconcentrar renda e move a grande roda da economia.

Pena que parcela importante do empresariado resiste a essa tese e ainda faz de tudo para tirar do bolso de seus empregados a gordura de seus dividendos. As campanhas salariais geralmente passam por momentos difíceis, longas e desgastantes negociações, que não raras vezes culminam em protestos, paralisações e, última ferramenta de pressão que os trabalhadores optam por usar, a greve. 

“Se o trabalhador não põe o pé na porta, prevalece a lógica patronal de dar o mínimo”, avalia o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre. Pressionar as empresas é a melhor alternativa? Para o operador de prensa de Salto, não: “A melhor é a empresa reconhecer o valor do trabalhador e remunerá-lo bem”. Mas enquanto esse reconhecimento não vem… o metalúrgico de 21 anos ganha cerca de R$ 1.100 por mês. Tem um filho de 5 anos e sua mulher – que trabalha na área administrativa de outra metalúrgica – recebe R$ 1.000. “Mesmo somando os dois salários, não conseguimos bancar todas as despesas”, diz Armando.

A bancária Inês reclama que, mesmo com o reajuste acima da inflação, o salário da categoria, especialmente nos bancos públicos, ainda tem muitas distorções. Ela ganha cerca de R$ 3.000 e vê como distante a possibilidade de construir sua casa própria. “Comprometeria muito a minha renda.” Inês tem 50 anos, é mãe de uma filha de 21, universitária e ainda sem emprego formal para contribuir com a renda familiar.

O presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Luiz Cláudio Marcolino, avalia que, mesmo com os avanços conquistados ao longo dos anos, o embate entre trabalhadores e empresários ainda é difícil: “Falta muito para o estabelecimento de uma relação mais franca e para o entendimento do papel do trabalhador na economia”, afirma, lembrando que a campanha salarial do ramo consumiu 14 dias de greve dos bancos privados e do Banco do Brasil em todo o país e 28 na Caixa Econômica Federal.

Para Geraldo Melhorine Filho, coordenador-geral da Federação dos Químicos do Estado de São Paulo (Fetquim), da CUT, o empresariado sabe da importância da remuneração dos trabalhadores para o desenvolvimento do país, mas adota a lógica de jogar a negociação “para baixo” nas campanhas salariais. “Parece que eles não querem que os trabalhadores evoluam e possam sonhar em chegar ao patamar de vida que os filhos deles têm”, critica o coordenador da Fetquim.

raquel camargo/Sind. Metalúrgicos ABCGreve
Se o trabalhador não põe o pé na porta, prevalece a lógica patronal de dar o mínimo

Além da crise

Na avaliação de José Silvestre Prado de Oliveira, coordenador de relações sindicais do Dieese, o revés econômico que abalou o mundo pouco ou quase nada afetou as negociações salariais de 2009. “Alguns setores industriais foram atingidos, mas as campanhas salariais foram até melhores que as de 2008. No primeiro semestre deste ano, houve ganhos reais, mas menores que os do segundo semestre, quando a economia teve desempenho superior à expectativa”, destaca Silvestre. 

O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC lembra que, para chegar a esses resultados positivos, as campanhas deste ano começaram no final de 2008. “O movimento sindical, encabeçado pela CUT, conseguiu negociar com o governo mecanismos para reduzir os impactos da crise sobre o emprego e o salário”, recorda, ao referir-se a medidas como a redução do IPI em setores como a indústria automobilística, a construção civil e a chamada linha branca de eletrodomésticos. “Só o setor automotivo é responsável por um terço do PIB do país”, observa.

“A resposta foi rápida e a economia reagiu”, atesta Marilane Teixeira, assessora econômica da Confederação Nacional dos Químicos, da CUT. Marilane lembra que o período de crise mais acentuado foi de novembro de 2008 a janeiro deste ano e que vários setores da economia, como o farmacêutico e o de cosméticos, não tiveram problema em momento algum. 

“O mercado de trabalho foi menos afetado do que se previa”, completa Silvestre, para quem o crescimento do Brasil por cinco anos seguidos foi também fundamental para que a roda da economia girasse em 2009. 

O coordenador do Dieese afirma ainda que os trabalhadores e o movimento sindical tiveram papel preponderante ao pressionar o governo e os empresários para garantir salários melhores e, como consequência, sustentar o crescimento do mercado interno brasileiro. O efeito mais prático disso é que o país termina 2009 com nível de empregos semelhante ao momento pré-crise financeira internacional, quando o PIB crescia ao ritmo de 6% ao ano.

Blindagem 

Melhorine, da Fetquim, reforça que a participação dos trabalhadores trouxe resultados positivos às campanhas salariais. “O trabalhador não deixou o país entrar na crise”, considera. Mas entende que ainda há muito a avançar nas relações com os empresários. “É difícil amolecer o coração do patrão”, diz ele, lembrando que na pauta dos químicos apenas um item fundamental – a redução da jornada para 40 horas semanais, conquistada pelo setor farmacêutico da categoria no primeiro semestre – não foi estendido aos demais segmentos. “A impressão é de que os empresários, pelo menos do ramo químico, só vão aceitá-la quando virar lei”, afirma.

Para ele, com a jornada menor, além da geração de novos empregos, será possível ao trabalhador ter mais tempo até para atender a uma demanda constante das empresas: aprimorar sua qualificação. “Para estudar e se qualificar, é preciso ter tempo livre”, pondera. Armando Diego trabalha 44 horas semanais na Thermoid. E estuda à noite, porque enxerga a necessidade de se aperfeiçoar. “Mas não sobra tempo para eu curtir o meu filho. Ele reclama muito e eu também sinto falta disso”, lamenta o metalúrgico de Salto.

A aprovação de uma emenda à Constituição que institua a jornada semanal máxima de 40 horas tem sido um dos principais embates travados pelas centrais sindicais. A inclusão do projeto na pauta de votações do Congresso antes do encerramento do ano legislativo foi a grande bandeira da marcha que reuniu 50 mil pessoas na capital federal no dia 10 de novembro – a sexta manifestação do gênero desde 2003. A regulamentação do trabalho terceirizado e a efetivação da política de valorização do salário mínimo também foram destaque na agenda do movimento.

Os temas foram objeto de audiências com o presidente Lula e os presidentes da Câmara, Michel Temer, e do Senado, José Sarney. Houve ainda protesto diante do Supremo Tribunal Federal contra o abuso por parte dos patrões no uso de mecanismos de restrição do direito de organização e de greve, como os interditos proibitórios com que tentam manter ativistas sindicais longe dos locais de trabalho.

A redução da jornada permitirá a criação de mais de 2 milhões de novos empregos, sustenta a CUT. E a valorização do salário mínimo, junto com a rede de garantia de renda para os mais pobres, foi decisiva para o fato de a conta não ter recaído sobre a base social da pirâmide, como sempre aconteceu em episódios anteriores de crise. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) apurou que, nas turbulências do início e do final dos anos 1980 e dos anos 1990, o número de pobres aumentou e o país não cresceu. Agora, na derrocada financeira internacional de 2008-2009, não apenas o crescimento brasileiro foi rapidamente retomado como, mesmo durante a crise, o número de pobres continuou diminuindo.

“Mas é preciso que os aumentos reais do mínimo sejam garantidos nas próximas décadas para que continuemos na rota de distribuição de renda e da redução das desigualdades. Vale lembrar que 43 milhões de brasileiros, entre eles 18 milhões de aposentados e pensionistas, ganham salário mínimo”, afirma Artur Henrique dos Santos Silva, presidente da CUT. Ele atribui à ação do movimento sindical, com suas marchas anuais a Brasília, os aumentos reais que nos últimos anos foram conquistados para o salário mínimo. “Queremos que isso se transforme numa política de Estado, e não apenas do governo Lula ou de seus sucessores”, complementa. Para isso, esse mecanismo já negociado com o governo, de garantir ao salário mínimo a reposição da inflação mais um aumento real baseado na evolução do PIB, precisa se transformar em lei.

Segundo Artur, as mobilizações e a abertura do governo ao diálogo – “sem tentar criminalizar o movimento sindical, como os anteriores” – foram cruciais para que milhões de pessoas saíssem das classes C e D. “Estamos avançando, mas é preciso reconhecer que a distribuição de renda ainda é muito injusta”, enfatiza o presidente da CUT.