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Riquezas do Velho Chico inspiram disco de ‘micro-bigband’ sergipana

Coutto Orquestra faz expedição por comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco para captar sons, imagens e histórias para as canções de segundo álbum

Fotos: MELISSA WARWICK

Alisson Coutto: ‘A gente encontra problemas, como o rio seco, que são graves, mas também uma tranquilidade e uma felicidade em um modo de vida que chega até a surpreender’

Luzes e fitas coloridas enfeitavam a embarcação que leva o nome de música brasileira: Bossa Nova. Conduzida pelo septuagenário comandante Seu Bossa,­ a nau foi casa e transporte da banda sergipana Coutto Orchestra durante 20 dias. Entre março e abril, o grupo percorreu 24 comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco, entre Sergipe e Alagoas, em busca de inspiração e de referências sonoras e visuais para a produção de seu segundo disco, Voga (Natura Musical), a ser lançado entre agosto e setembro.

Autointitulado micro-bigband, o grupo formado em 2010 mistura ritmos tradicionais e referências sertanistas, como o maracatu de brejão, a taieira e o forró­, com os gêneros musicais do mundo e elementos eletrônicos.

Segundo o criador da banda, Alisson Coutto, o projeto Voga nasceu como um contraponto ao primeiro disco, Eletro Fun Farra, que apresentava um diálogo das culturas de Sergipe com o mundo.

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“Tem um provérbio que diz: ‘Antes de conquistar o mundo, dê três voltas dentro do seu quarto’. Eu já tinha passado por esses lugares trabalhando com produção cultural ou como músico”, conta Alisson. “Daí, eu apresentei a ideia para a banda, e a gente começou a mapear a quantidade de diversidade e de elementos estéticos que existia à beira do Rio São Francisco para poder trazer esses elementos e ressignificá-los dentro da nossa composição. Não deixa de ter um diálogo com o mundo, mas a gente observou que tinha mais elemento na ‘nossa casa’ do que a gente imaginava. Elementos que vão além do som: são estéticos, visuais, referências para o figurino e para o palco.”

Voga é o movimento ritmado das remadas das embarcações, mas também significa moda nova ou o que está em evidência. É exatamente um Nordeste contemporâneo que a banda quer apresentar ao público. “Resolvemos nos voltar ainda mais para dentro de Sergipe, para um lado B na beira do São Francisco, não muito visto nem muito turístico, para tentar puxar elementos imagéticos para compor”, diz o músico.

“É um Nordeste essencialmente estranho a ele mesmo. Para quem não tem uma vivência tão próxima com a cultura ribeirinha, é um encontro essencialmente estranho. A gente encontra problemas, como o rio seco, que são graves, mas também uma tranquilidade e uma felicidade em um modo de vida que chega até a surpreender”, ressalta.

Riqueza ribeirinha

Composto por Alisson (trombone, controladoras e vocais), Vinícius Bigjohn­ (sanfona e percussão), Rafael Ramos (baixo e piano) e Fabinho Espinhaço (bateria), o grupo passou pelas cidades de Aracaju, Poço Redondo, Porto da Folha, Canindé do São Francisco, Neópolis e Brejo Grande, em Sergipe, e Piranhas e Pão de Açuçar, em Alagoas. A experiência foi vivida intensamente pelas 15 pessoas embarcadas no Bossa Nova, entre elas profissionais de foto, vídeo, áudio, figurino e produtores.

Pelo caminho, o grupo deparou com uma diversidade muito maior do que os integrantes da banda e a tripulação esperavam. “Em Porto da Folha, por exemplo, a gente encontrou uma diversidade étnica gigante. No mesmo local tinha ciganos, vaqueiros, galícios – holandeses com portugueses –, índios e negros, do (quilombo) VelhoChico2.jpgMocambo. Tudo isso em uma região muito próxima e com uma diversidade e uma identidade cultural muito forte”, lembra Alisson.

Nada passava despercebido dos músicos. Os ensinamentos locais, as histórias, as tradições, os ritos, as danças e, é claro, os mais diferentes tipos de música e sons foram registrados e ressignificados no estúdio montado na embarcação: repentes, badalos de bode, canto de lavadeiras, rezadeiras, aboios de vaqueiro. Até o barulho do barco e do vento na vela serviram de inspiração.

“O processo de composição é muito delicado. Tinha a referência do clima, mas também tinha elementos práticos mesmo: pegava o som do motor do barco – pó-pó-pó-pó-pó-pó… – e ia mudando a afinação, ajustando até transformar no contrabaixo da banda. Como é uma banda que não tem baixista, é o motor do barco que vira o baixo em algumas músicas”, conta Alisson.

“Ou então, o barulho do vento, que era transformado em elementos de efeito. Ou ainda as rezas – tinha povoados que a gente encontrou o pessoal rezando ou fazendo cantos em latim… Os instrumentos também. Os tambores das bandas de pífano, a gente gravava um por um, inseria efeitos e elementos. Você não consegue reconhecer que é um tambor de uma banda de pífano e acha que é algo de música eletrônica.”

Quase toda a viagem foi registrada em uma espécie de diário de bordo, disponível no site da Coutto Orquestra e em seu canal no YouTube.

Os vídeos trazem relatos da experiência dos encontros da banda com as comunidades tradicionais, os sentimentos provocados e os bastidores da expedição – que, além do disco, deve virar documentário e exposição fotográfica.