Saúde

Sociedade, ciência e governo se unem para enfrentar o zika

Elo entre vírus transmitido pelo Aedes aegypti e avanço global dos casos de microcefalia põem o mundo em alerta, unem governos e cientistas e invocam responsabilidade cidadã no combate ao mosquito

GABRIEL JABUR/AGÊNCIA BRASÍLIA

Com apoio de Exército, Marinha e Aeronáutica, cada local que pode ser um potencial criadouro das larvas do Aedes aegipty é vasculhado

A operação é de guerra. Na noite de 3 de fevereiro, em cadeia nacional, a presidenta Dilma Rousseff conclamou o povo brasileiro a se unir contra o mosquito Aedes aegipty. Não bastasse carregar os vírus da dengue e da febre chikungunya, transmite ainda o zika – que passou de pesadelo distante a ameaça real pelas fortes evidências de causar microcefalia, anomalia até então rara, caracterizada pelo tamanho da cabeça e do cérebro menor que o normal para a idade e sexo do bebê. Entre as consequências, estão problemas neurológicos, musculares e cognitivos.

Estudos realizados no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa identificaram a presença do vírus no cérebro de bebês que nasceram com microcefalia, bem como na placenta. Foi um órgão público, o Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde, o primeiro a encontrar a presença de zika em amostras de tecidos e sangue de um bebê morto minutos após o nascimento, com microcefalia, no Ceará. A descoberta evidenciou o elo, observado depois em outros estudos.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), do governo dos Estados Unidos, analisou amostras de tecidos de bebês que morreram horas depois de nascer, com a mesma anomalia. Os pesquisadores encontraram anticorpos para zika em amostras de tecidos do cérebro e também na placenta. O mesmo Instituto Evandro Chagas constatou que o vírus causou a morte de um homem de 35 anos em 2015, sugerindo as possibilidades de alcance do zika.

Com a ajuda de estados, o Ministério da Saúde investiga 3.670 casos suspeitos de microcefalia – 76,7% das notificações. Desse total, 404 são mesmo de microcefalia e/ou outras alterações cerebrais, apenas 17 relacionados ao vírus. Ao todo, 4.783 suspeitas de microcefalia foram notificadas até 30 de janeiro. Em meio às fortes evidências dessa relação, ressurgiu o debate sobre a inclusão da anomalia entre os critérios para o aborto legal – medida recomendada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Como ainda não existe uma vacina ou tratamento específico que anule os sérios efeitos dessa infecção às gestantes, a prevenção é o melhor remédio. E, nesse caso, prevenir significa combater o mosquito transmissor, que já havia sido erradicado na década de 1950 e que voltou 30 anos depois para tirar o sossego de governos, autoridades de saúde e populações. “O único jeito é não deixar o mosquito nascer”, reforçou a presidenta.

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Diante do que pode ser um surto, a ONU recomenda inclusão da microcefalia como critério para o aborto legal
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No ano passado, a Oxitec soltou – com alarde – o Aedes geneticamente modificado em Piracicaba (SP) sem aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária

Ambiente favorável

“Estamos num país tropical muito favorável à proliferação desse mosquito e à consequente circulação desses vírus. Para complicar, 80% dos focos estão dentro das residências”, diz o presidente do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Junqueira. Gestor municipal na prefeitura de São Lourenço (MG), Junqueira chama a atenção para o aspecto “democrático” do inseto, que não escolhe suas vítimas conforme sexo, raça, idade, profissão ou classe social. Tampouco o padrão das residências e os bairros, pobres ou ricos, onde as fêmeas encontram as condições ideais para colocar seus ovos.

“A fêmea gosta de água parada. Antes, preferia água limpa. Agora, está aproveitando até água suja. Então, onde tiver água parada, terá mosquito depositando ovos: piscinas, utensílios que acumulam água, o lixo comum e até garrafas de bebidas, normalmente acumuladas em finais de semana, depois de festas em famílias de todas as classes sociais”, completa Junqueira.

Para ele, esse aspecto aumenta o desafio. “O mosquito gosta de gente, seja da classe que for. A população precisa se conscientizar da gravidade do zika e de sua responsabilidade nessa luta de combate ao transmissor. Temos de manter vigília constante, não deixar nenhum criadouro prosperar. E entender que uma possível vacina contra a dengue, ainda em estudos, não substitui o combate ao vetor.”

Na guerra ao Aedes, o governo colocou, em 13 de fevereiro, 220 mil militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica – 60% do efetivo – em ruas, residências, escolas e outros estabelecimentos de 356 municípios, das capitais e de outras 115 cidades consideradas endêmicas, distribuindo material informativo e conscientizando a população para a necessidade de eliminar potenciais criadouros do mosquito. Até o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, e o chefe da Controladoria-Geral da União, Carlos Higino, estiveram entre os mais de 30 ministros e autoridades escalados para compor a força-tarefa em diferentes municípios.

Em outra frente, o governo brasileiro se reuniu com autoridades de saúde dos países vizinhos para reforçar a vigilância, acompanhar o comportamento do vírus e propor medidas de proteção à população. Uma cooperação que envolve os institutos públicos de saúde brasileiros no treinamento de técnicos – para a realização de testes para a detecção do zika – de Paraguai, Peru, Uruguai e Equador, além de protocolos de atendimento às gestantes e bebês com microcefalia e o de estimulação precoce, lançados assim que foi decretada emergência em saúde.

Além de conclamar os brasileiros e pedir “sensibilidade à gravidade da situação” aos parlamentares em pronunciamento na abertura do ano legislativo, Dilma conversou com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Fechou parceria com o governo norte-americano para protocolos de identificação do zika e dos casos de microcefalia, e para pesquisa de vacina. Por aqui, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, visitou institutos públicos para discutir parcerias para o desenvolvimento de um imunizante. No caso do Butantan, vinculado à Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, aproveitou para saber mais sobre os atrasos na vacina contra a dengue – que, mesmo que tudo dê certo, não deverá estar pronta antes de 2021.

Correndo atrás

A resposta do governo brasileiro, elogiada pela ONU e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é reconhecida também no Brasil. “É muito importante avisar a população sobre os riscos”, disse o médico sanitarista Gastão Wagner de Sousa Campos, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A entidade, porém, faz ressalvas ao modelo de combate ao mosquito e defende investimentos imediatos na sustentabilidade das cidades.

Em carta divulgada recentemente, a associação destaca a urgência da articulação entre vigilância sanitária, promoção da saúde, desenvolvimento social e educação popular em saúde no controle do vetor. Em resumo, saneamento básico, esgotamento sanitário, coleta de lixo inclusive nos espaços públicos e particulares e principalmente ao fornecimento de água de maneira apropriada e regular, para que a população não tenha de armazená-la muitas vezes de maneira inadequada, multiplicando os criadouros.

Não é à toa, segundo o documento, que os casos ou suspeitas de microcefalia têm maior incidência nas áreas mais pobres, onde esses problemas se acumulam e se somam à falta de ações de vigilância à saúde pela falta de integração entre municípios, estados e União no financiamento e gestão do SUS. Nessa perspectiva, o controle da infestação do Aedes pela destruição de criadouros se daria pela imediata melhoria, de forma contínua e sistemática, das condições socioambientais urbanas.

Ainda conforme o documento, essas medidas devem ser acompanhadas de cuidado preventivo e atenção à saúde das pessoas expostas ao risco e infectadas, a partir de uma política pública perene, com especial atenção ao pré-natal. E em médio prazo, devem ser apoiadas pesquisas para produção de vacinas, estudos sobre a epidemia, seus modos de transmissão e danos ao sistema nervoso, além de testes clínicos.

O posicionamento da Abrasco encontra respaldo entre os gestores municipais de saúde, muitos dos quais não deram trégua em ações de prevenção durante o carnaval. “Porém, suas recomendações se aplicam no longo prazo, com planejamento e vontade política”, opina Mauro Junqueira, do Conasems. “Infelizmente não se muda a estrutura de um dia para o outro. Temos de iniciar lá na educação. O primeiro passo é envolver a comunidade, formar pessoas com outra mentalidade, preparar a classe política para esse enfrentamento. É um processo de construção para que a gente não siga apagando incêndio, como fazemos, enxugando gelo”, diz.

“O que é possível fazer neste momento é seguir mobilizando a população porque o risco é muito grande. E precisamos de respostas rápidas. São mais de 4 mil casos suspeitos de microcefalia, 10% confirmados. E os 90%? O que são? Estamos demorando um pouco. É tudo muito novo. Estamos demorando para desenvolver kits para fechar o diagnóstico. Com a parceria e o dinheiro dos Estados Unidos vamos acelerar a pesquisa”, acredita o presidente do Conasems.

Dúvidas não faltam

Epidemia da vez, a infecção pelo zika tem repercussão mundial comparável ao surto de H1N1, em 2009. Assim como a gripe suína, ocupa as manchetes e desafia o poder público desde que o Instituto Evandro Chagas confirmou a relação entre o vírus e o surto de microcefalia na região Nordeste, no final de novembro. O achado, até então inédito na pesquisa científica mundial, chegou a alimentar especulações a respeito da fabricação do zika em laboratório, com interesses econômicos.

No final de janeiro, circularam nas redes sociais materiais divulgados por sites estrangeiros associando o epicentro do surgimento da epidemia de microcefalia, no Nordeste, à proximidade com as cidades de Jacobina (PE) e Juazeiro (BA), onde a empresa de origem britânica Oxitec fez os testes com os Aedes transgênicos. Os insetos geneticamente modificados para cruzar com fêmeas e gerar filhos com uma proteína que vai matá-los antes da fase adulta, foram soltos ano passado em Piracicaba (SP), mesmo sem a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “Isso é até possível, mas ainda não há estudos que possam comprovar a relação entre as experiências e o surgimento do zika”, diz o professor José Maria Gusman Ferraz, da Pós-Graduação em Agroecologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Ainda não se sabe como o vírus atua no organismo e o período de maior vulnerabilidade para a gestante. Apesar das evidências da sua participação na malformação, os especialistas são cautelosos. A começar pela diretora-geral da OMS, Margaret Chan, sem repetir o tom alarmista da epidemia de H1N1, que acabou marcada por suspeitas de conflitos de interesse entre diretores da agência e a indústria de vacinas.

A união de forças nessa guerra afinou o discurso de gestores de bandeiras e ideologias opostas. Os infectologistas David Uip, secretário da Saúde de Geraldo Alckmin (PSDB), e Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde e atual secretário de Saúde do prefeito paulistano, Fernando Haddad (PT), reconhecem as fartas evidências, mas recomendam toda cautela.

“Ainda não temos exames para comprovar a relação. Estamos como no tempo em que surgiu a aids. Por anos e anos ficamos sem saber se era vírus e qual a forma de transmissão. Precisamos ser cuidadosos”, diz Uip, destacando outras causas infecciosas da microcefalia, como sífilis congênita, que está aumentando no país, rubéola, citomegalovírus, treponema, toxoplasmose, e as não-infecciosas, como as síndromes e intoxicações por excesso de álcool, tabaco e drogas. “Todas as evidências reforçam claramente a relação, algo que nunca tinha sido visto. Mas é importante buscar outras causas, dar conta dos desafios, obter testes mais apropriados”, afirma Padilha.

Epidemia questionada

Especialista em epidemiologia de malformações, a professora Ieda Maria Orioli, do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), questiona a explosão no número de registros de microcefalia. Ao analisar dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos e do Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas – estes coletados desde 1967 –, ela é categórica ao afirmar que a notificação dos casos está acima do real.

Em Pernambuco, segundo Ieda, eram esperados 45 casos, mas foram registrados 26 vezes mais. A média histórica da prevalência de microcefalia no Brasil é de 2 casos a cada 10 mil nascimentos. O número de registros além do esperado em seis dos nove estados do Nordeste pode ser explicado pela busca ativa de todo e qualquer caso de microcefalia após o início do rumor, à imprecisão na definição de microcefalia, agora mais ampla que o usual, erros de medição e possível aumento de um ou de vários fatores causais para a anomalia, como prematuridade, infecções virais, parasitárias, bacterianas e uso de álcool durante o primeiro trimestre da gestação.

“Deveríamos ter tido 90% das gestantes expostas ao vírus para explicar 45 casos por essa causa”, diz a professora. “O exercício de calcular o número de casos esperados de microcefalia neste momento, no Brasil, perde a utilidade quando existem evidências de um excessivo número de casos diagnosticados que não correspondem à realidade.”

 

Quando o povo aprende, não esquece

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Água Branca, no Piauí, envolveu a população na luta contra o Aedes

A 350 quilômetros da capital paulista, na região de Ribeirão Preto, a pequena Cássia dos Coqueiros, com 2.700 habitantes, é referência para o Ministério da Saúde no combate ao Aedes. Não tem nenhum caso confirmado de dengue ou outras viroses associadas ao mosquito.

O tema está nas ruas, nas escolas, nas conversas entre vizinhos. Ainda assim, agentes de saúde visitam as casas e distribuem panfletos. “A cidade comprova que quando o povo aprende, jamais esquece”, afirma o professor José Carvalheiro, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).

Nos anos 1960, ele especializou-se em epidemiologia ao estudar o impacto econômico da Doença de Chagas e auxiliou seu orientador, José Lima Pedreira de Freitas (1917-1966), no desenvolvimento de um método para acabar com o barbeiro, inseto transmissor do protozoário causador do mal, em Cássia.

“O método chamado ‘expurgo seletivo’ inovou também ao ensinar a população a usar os inseticidas de maneira seletiva, somente nos lugares de infestação”, conta o professor. “Até então, o uso era generalizado, afetando a saúde da população e meio ambiente com venenos tóxicos.”

Nos anos 1980, a prática tornou-se padrão no país, inspirando outros governos latino-americanos.

No Piauí, Água Branca, a 97 quilômetros de Teresina, transformou em lei municipal um projeto contra a dengue. Com isso, a prevenção passa a ser obrigação na cidade.

A iniciativa, apresentada ao Ministério da Saúde, consiste em visitas sistemáticas às residências para identificar possíveis focos de desenvolvimento do mosquito. Um selo verde, para casas livres de criadouros, virou alvo de disputa entre vizinhos. A população acabou se esmerando para mudar a cor de seu selo até que todas obtiveram o verde – a cidade reduziu o número de casos de dengue e ainda previne o vírus zika e a chikungunya.