HISTÓRIA

A formação do pensamento de Celso Furtado

Obra detalha os primeiros passos de um dos principais pensadores do Brasil nos estudos e no jornalismo. E dá pistas do futuro economista

Adi Leite/Folhapress/1992

livro-celso.jpgParaibano de Pombal, no sertão, Celso Furtado havia deixado a capital João Pessoa para, não muito longe dali, fazer um curso pré-jurídico em Recife. Era 1938, e em 17 de outubro o rapaz de 18 anos participava de um júri simulado em que apresentou um trabalho intitulado Liberalismo Econômico. Conseguiu repercussão, elogios, e em carta à mãe confessou-se atordoado. “Todos pensam que eu sou filósofo e eu tenho medo de dizer uma besteira…”, escreveu.

Para a jornalista e tradutora Rosa Freire d´Aguiar, viúva de Celso Furtado – que morreu há dez anos –, o texto, com pitadas de “retórica juvenil”, resume a jovem personalidade do autor e sintetiza sua intenção ao publicar um livro que trata justamente dos primeiros passos intelectuais e na vida do futuro economista, pensador e presidente da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), autor do plano trienal de desenvolvimento, apresentado no governo João Goulart, no final de 1962.

“Carta e trabalho trazem em gestão o gosto pela pesquisa intelectual, a visão interdisciplinar, o interesse pelas questões internacionais, e mesmo o recurso ao método comparativo”, diz Rosa na abertura do livro Anos de Formação 1938-1948 – O Jornalismo, o Serviço Público, a Guerra, o Doutorado. Ali, por meio de textos jornalísticos, ensaios e cartas, se percorre a trajetória de Celso Furtado pelo Rio e pela Europa, durante a guerra, na reconstrução da economia mundial. Pelo mundo e seus contrastes.

Em artigo publicado em dezembro de 1948 na Revista da Semana, ele conta quando convidou “um homem do povo” para passear em Paris. Essa pessoa lhe diz que nunca tinha àquele local (o Jardim de Luxemburgo, um dos cartões-postais da capital francesa). Isso provoca uma reflexão sobre o fato de muitos parisienses não conhecerem lugares que o mundo inteiro conhecia. Ao falar da necessidade de a França se “expandir dentro dela”, Furtado observa que a reconstrução do país tem de atingir os alicerces. Um comentário que pode servir para praticamente todas as nações e povos.

Homem social

Em 1946, Celso Furtado havia lido os cinco volumes de O Capital (Karl Marx), os quatro de Economia e Sociedade (Max Weber) e os dois de História do Pensamento Social (Howard Becker e Harry Barnes). Apesar de ainda novo, já estavam longe os tempos em que, com menos de 20 anos, passou por 15 dias de provas escritas e orais para a Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, onde desembarcara no início de 1940 – primeiro numa pensão no Catete e depois na Lapa, em uma rua “onde não passa bonde, portanto, silenciosa”. Já tinha sido um “pobre-diabo” a se encontrar com Villa-Lobos na Cinelândia e confessado sua emoção ao conhecer o pianista Arthur Rubinstein.

O próprio Celso aprendeu um pouco de piano, lembra a ex-mulher. “O que ele desenvolveu mais foi o ouvido e uma memória musical.” Tinha facilidade para diferenciar movimentos, estilos. E costumava trabalhar ouvindo música clássica. “Baixinho”, diz Rosa.

Naquele texto gênese de 1938, o jovem estudante vai afirmar que a ingerência do poder estatal só é concebível “quando se limita à vida do indivíduo em função da coletividade”, ou seja, ao homem social. Critica tanto a Rússia bolchevista como a Itália fascista, onde “o Estado eliminou toda e qualquer iniciativa individual, não só no terreno econômico mas em todos os setores da vida”. Para ele, os grandes estadistas se caracterizam pela profunda intuição da realidade de seu país. “Tais homens procuram compreender o seu povo antes que o povo os compreenda”, escreveu.

Mais tarde, Celso Furtado irá mergulhar no estudo de temas relacionados a administração e planejamento. O Estado terá papel importante na formulação de políticas e diretrizes para o desenvolvimento. “No terceiro ano de faculdade, delineia-se o perfil do técnico de administração, que se desdobrará mais tarde no teórico do planejamento, e no primeiro ministro de Planejamento do país”, escreve Rosa.

Antes disso, ele trabalha como jornalista. É repórter na Revista da Semana e revisor no Correio da Manhã. Anos depois, descobrirá que quem aplicou o teste para “suplente de revisor” foi Antonio Callado, jornalista, escritor e futuro amigo. Em abril de 1942, a revista publica uma reportagem de 12 páginas do enviado especial Celso Furtado sobre a Semana Santa de Ouro Preto, cidade histórica mineira onde ele e o fotógrafo Arnaldo Vieira passam cinco dias. Quem também estava por lá era a equipe do cineasta Orson Welles.

Outro texto daquele ano citará o diretor de Cidadão Kane (1941) em um episódio trágico ocorrido no Rio. Em setembro de 1941, quatro jangadeiros viajaram pelo mar desde o Ceará para tentar se encontrar com o então presidente Getúlio Vargas e reivindicar direitos à categoria. O episódio rendeu reportagem na revista Time. Welles decidiu filmar uma reconstituição da saga dos jangadeiros, mas o trabalho terminou de forma trágica: uma onda na Barra da Tijuca atingiu a embarcação e Manuel Olimpio Meira, o Jacaré, morreu afogado. Rosa lembra, no livro, que durante a adolescência Celso construíra jangadas com amigos, “e a reportagem não assinada que fez com os três sobreviventes perpassa uma indisfarçável emoção”.

Com a declaração de guerra do Brasil ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão), Celso embarca, como oficial, com a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Era possivelmente o que faltava para abrir de vez o interesse do jovem para o mundo. O período 1945-1946 é um das divisões do livro organizado por Rosa Freire, que será complementado pela capítulo Os Ares do Mundo Europeu, que trata dos dois anos seguintes. Período difícil para o mundo, mas rico em reflexões e iniciativas. Celso estuda ciências políticas na famosa Sciences Po (o Instituto de Estudos Políticos) e economia na Universidade de Paris, onde faria doutorado.

Nova ordem

Na volta ao Brasil, reassume a função no DSP, mas por pouco tempo. Vai ser pesquisador econômico na Fundação Getúlio Vargas. Na esteira da criação das Nações Unidas e na reorganização do mundo do pós-guerra, surge, em 1948, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). É para lá que segue Celso, no início de 1949, seis meses depois do retorno à Europa. Começam os anos de afirmação, conforme a definição de Rosa. Celso Furtado vai se tornar, talvez, o principal pensador dos problemas brasileiros e formulador de caminhos para a superação do subdesenvolvimento, com visão de longo prazo, histórica, apontando as desigualdades estruturais do país.

Nesse caminho, não faltou quem apontasse o dedo da crítica, às vezes pouco qualificada, como ocorreu recentemente, no calor da campanha eleitoral. Sem contar a perseguição política. Rosa conta que Celso não gostava de falar do período da guerra. Talvez por ter sido punido, em 1964, com cassação de direitos, por um governo militar e presidido por um herói da FEB, o marechal Castello Branco – justo ele, que havia retornado da Europa com duas medalhas. Rosa diz que na volta ao Brasil, já em meados dos anos 1980, Celso foi normalizando sua relação com o passado. “E em nossas idas a Florença, percorrendo a beira do Arno se lembraria da guerra e do blackout, com a cidade noturna sem luz, em sua feição primitiva, ‘como Dante a percorrera’”.

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Entrevista: Rosa Freire d’Aguiar

‘Ele sempre viu economia como ciência social’rosa-freire.jpg

Mas eles vão por o quê no lugar do nacional-desenvolvimentismo? O que foi mais para o beleléu do que o neoliberalismo? Hoje em dia alguém ia querer voltar ao neoliberalismo, depois do que deu? Esta é uma época de vazio teórico

Para Rosa Freire d´Aguiar, quase tudo fica dos chamados anos de formação de Celso Furtado, delimitados até 1948. Tudo correu muito rápido, conforme sua descrição no livro: “Em 1940, era o rapazinho chegado do Norte para estudar direito e que, como tantos de sua geração, quis ser jornalista, sonhou em ser crítico de música e romancista. Em 1945, estava naturalmente mudado pela experiência da guerra; era bacharel de Direito, trabalhava com administração e organização, mas ainda vivia a incerteza das tentativas e tentações”.

Em 1948, prestes a completar 28 anos, Celso desembarca mais uma vez no Rio, como lembra Rosa, trazendo na bagagem uma tese de doutoramento, 400 livros e muita preocupação com a administração do país. Uma demonstração de seu zelo com os problemas nacionais após respirar durante anos “os ares do mundo”, conforme expressão do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez que posteriormente seria utilizada pelo economista.

Rosa destaca exatamente a visão global de Celso, mas lembra também de sua ênfase na necessidade de se cuidar do planejamento, desde que vinculado ao processo democrático. E acredita que, sem a sua formação humanista, talvez nem houvesse Sudene. “Celso sempre viu economia como ciência social.”

O que ficou dos anos de formação para a fase de afirmação?

Mais fácil seria dizer o que não ficou. Por exemplo, o lado romancista. Essa tentativa literária – ele tinha um jeito bonito de escrever. Ele achou que poderia escrever ficção, mas isso não ficou, assim como a música. Ali já tem vários eixos da visão do mundo. Estava ali o método comparativo, que é uma marca da obra do Celso. Ele já está acompanhando o noticiário internacional. Para mim, já estão alguns eixos que o Celso vai continuar. É uma obra de juventude, tem de ser lida em si e por si. No caso do Celso, acho que desde aquele primeiro artigo (Liberalismo Econômico, escrito em 1938, aos 18 anos) tem algumas pistas. Ele foi depurando os textos cada vez mais.

Ele era vigiado desde 1947, foi chamado de “velho bolchevique”, “militante comunista”. Mas, ao falar do Estado, havia apontado um “masoquismo social” na Rússia bolchevista…

Em 1947, o Dutra tinha fechado o PC. Tinha um monte de comunistas (brasileiros) lá. As pessoas confundem alhos com bugalhos. Mas quando fala do Estado, ele não tinha posto o pé na Europa. Ele certamente tinha essa visão de quem está acompanhando a atualidade. Quando ele diz que o planejamento é uma faca de dois gumes, porque evidente que é importantíssimo, sem planejamento não há Exército que ganhe a guerra, mas também dá na degenerescência da sociedade. O que eu acho curioso é ele ter essa noção tão clara de que o planejamento pode ser tão importante, mas tem de ser vigiado por outras instituições democráticas.

Isso era parte do pensamento dele, associar planejamento, crescimento e democracia.

Aí entra o componente democrático. (Rosa lê um trecho do livro, em que Celso Furtado diz que a planificação social não é mais do que uma técnica: “É uma perigosíssima arma de dois gumes. Demonstrando que as técnicas sociais modernas tornam possível dirigir o pensamento do homem, acena para a mais perigosa das armas de opressão”.)

É quando ele fala da necessidade de educação para que o homem escape do “canto da sereia” dos ditadores. Permanece atual, não?

Os perigos estão aí, né? Isso é muito a cabeça do Celso. Ele muito jovem tinha uma visão global. Consegue ver em vários espaços ao mesmo tempo.

Em outro texto, sobre os Estados Unidos (Trajetória da Democracia na América, de 1946), Celso Furtado identifica no capitalismo uma polarização de forças, a dominação da ordem econômica por grupo minoritários, que fariam pressão contra a expansão das forças democráticas. Ele já mostrava consciência de que o poder econômico poderia se sobrepor ao processo democrático?

Certamente, sim. Mas eu acho que seriam quase intuições. A minha ideia ao publicar esses textos era que as pessoas vejam o que ele pensava antes (de se tornar conhecido). Convém notar o peso do poder econômico. Ele mostra que isso também é um perigo, não pode deixar o planejador solto. Se é apenas para pôr um gerente, melhor não. A política é muito mais do que isso.

Ele combinou de maneira equilibrada sua formação intelectual/técnica com a humanista?

Eu acho que sim. Se o Celso fez a obra que fez, tentando dialogar com outras esquinas, é porque tinha essa formação humanista. Se ele tivesse feito o que hoje é um curso de Economia, mergulhado em estatísticas e modelos, talvez fosse um excelente cientista matemático. Ele teve um encontro com Juscelino em 1958. Eles nunca tinham se visto nada. Foi um encontro rápido, no Palácio Rio Negro (em Petrópolis, RJ, foi residência de verão para vários presidentes), para expor o plano do Nordeste. Juscelino compra o plano dele (a Sudene seria criada em 1959) – e sem querer fazer retórica, entrega o destino de uma região. Se ele não tivesse estudado Ciências Políticas na França, Direito, não sei se Juscelino entregaria o destino de uma região no país. Celso tinha a característica de ter uma cultura muito ampla. Ele foi recebido pelo Kennedy. Quando um presidente da Sudene passa uma tarde na Casa Branca? Não existe mais. Celso sempre viu economia como ciência social.

Em um período acirrado como é o eleitoral, nem Celso Furtado escapou. Um economista ligado a uma das candidaturas (Alexandre Rands, do PSB) questionou inclusive se o modelo econômico dele (CF) chegou a fazer sentido em algum momento…

Não foi a primeira vez. Quem tinha de ser interpelada é a candidata (Marina Silva). De certa forma, ela disse, voltando atrás em nome dele. Recebi alguns telefonemas… Ele falou bobagem. Evidente que conhece mal a obra de Celso.

Um colunista chegou a elogiar as declarações de Rands, dizendo que o país está cansado do “nacional-desenvolvimentismo tacanho”.

Mas, escute, eles vão por o quê no lugar? Você quer uma coisa que foi mais para o beleléu do que o neoliberalismo? Hoje em dia alguém ia querer voltar ao neoliberalismo, depois do que deu? Para mim, é uma loucura. Evidentemente, esta é uma época de vazio teórico. Mas não vai ser com essas propostas neoliberais que o mundo vai melhorar.

O país teve certa redução da desigualdade, mas continua tendo grandes desequilíbrios regionais. Está no caminho certo?

Tem um outro debate que está nascendo agora, se o Brasil se desenvolveu ou apenas cresceu. Sem entrar no mérito, tudo isso são discussões que infelizmente não estão na campanha, que está polarizada em temas como independência do Banco Central, reforma política. Se vier uma coisa de desmonte do Estado, a meu ver vai ser um retrocesso. Você vê (na Europa) uma geração inteira sacrificada em termos de emprego para pagar uma dívida… É muito triste. Melhorou (no Brasil). Falta muito. Agora, se for para trás é pior.