Na rádio

Sistema ultrapassado e insegurança sem fim

Tendência de crescimento das taxas de violência expõe fracasso da política de segurança no estado de São Paulo e a necessidade de reformas urgentes, como unificação das polícias e desmilitarização

Gerardo Lazzari/RBA

Calu: para reprimir movimentos sociais não falta policiamento

Era um domingo, por volta das 11h. Rumo a uma estação do metrô, a produtora cultural paulistana Calu Baroncelli caminhava tranquilamente nu­ma passarela nas proximidades do Terminal Bandeira, no centro de São Paulo. Até que foi surpreendida por um assaltante. Como sua bolsa estava bem presa ao corpo, com a alça cruzando seu tronco, ele passou a puxá-la violentamente. Na tentativa de impedir o roubo, segurou-a o mais forte que pôde, mas, quando se deu conta, estava no chão, sendo arrastada pelo ladrão, que logo conseguiu se desvencilhar e correr com a bolsa na mão.

Apesar da cena e dos gritos, as pessoas que passavam por ali não esboçaram a menor reação e seguiram seu caminho, como se nada estivesse acontecendo. “E ainda fui xingada por ele quando tentei dialogar, pedindo que não levasse meus documentos”, lembrou Calu, que chegou a andar pelas ruas das imediações, em vão, à procura de policiais. Algum tempo depois, longe dali, encontrou agentes da Guarda Civil Metropolitana. Mas já era tarde. Nunca mais ela recuperou o que foi roubado.

“Moro em frente à Câmara Municipal e me lembro de muitas viaturas da PM e da Tropa de Choque quando movimentos por moradia estavam acampados ali, durante a votação do Plano Diretor. Para reprimir os movimentos sociais há sempre policiamento, mas não para proteger a população quando está em perigo”, disse ela à repórter Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual. A produtora, aliás, já havia sido assaltada duas outras vezes: na primeira, dentro de um ônibus, por ladrão armado, e na segunda, no Viaduto 9 de Julho, na mesma região central, em uma noite quando voltava da faculdade para casa.

Outra vítima é a jornalista Tatiana ­Vitta. Numa tarde, quando voltava do trabalho de carro, com os vidros fechados, foi abordada por dois ladrões ao parar em um semáforo próximo a um acesso à avenida Vereador José Diniz, no Campo Belo, bairro da zona sul da capital. “Chamou a atenção o barulho das pedras batendo no vidro do lado do passageiro. Logo em seguida, o vidro do meu lado foi quebrado. Levaram celular, bolsa e algumas coisas no console e saíram correndo”, contou Tatiana. Ela relatou a ocorrência à polícia, mas nunca recuperou o que levaram.

Em Santos, litoral paulista, a dona de casa Maria Helena Calo Lema foi assaltada perto de casa, no bairro Campo Grande, às 19h de um sábado. Contou que quando voltava de uma farmácia, caminhando, um homem de bicicleta subiu na calçada, parou à sua frente e sacou da arma. “Nossa senhora! É horrível. A gente fica tremendo, não sabe o que faz, dá medo do que ele vai fazer”, disse. Maria Helena ficou com medo durante muitos dias, desconfiando de todas as pessoas na rua, olhando para todos os lados. Não deixou mais a filha adolescente, de 14 anos, sair sozinha. “A gente fica com medo, mas os adolescentes não. E muitos deles estão sendo assaltados na região.”

Arte-RBA.jpgAs histórias são algumas entre milhares que engrossam as estatísticas que apontam para o crescimento dos roubos no estado de São Paulo. Dados do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) indicam uma tendência de retorno aos índices de 2000, os maiores da série histórica. Naquele ano, foram registrados 170 mil roubos só na capital paulista – e 333 mil em todo o estado. “Mantida a tendência, é possível que ultrapassemos os picos históricos tanto em números absolutos como relativos, como já aconteceu em 2013”, destaca o pesquisador Marcelo Nery, do NEV. Entre as várias ocorrências em crescimento estão os roubos de veículos. No estado, 68,5 mil em 2010 e 98 mil em 2013.

Números abaixo do real

“A gente observa desde 2000 uma evolução no número absoluto de roubos de carros tanto na capital como no estado como um todo, uma tendência crescente”, diz Nery. Porém, de acordo com o pesquisador, a situação pode ser bem pior. Isso porque os números, considerados altos, não refletem a realidade. “Há subnotificação de alguns tipos de roubos, como no caso de celulares, que as pessoas não registram. Ou mesmo roubos a transeuntes, em que as pessoas que tiveram a bolsa roubada preferem não registrar a ocorrência por considerar que o trabalho não vale a pena em função do valor baixo do que foi roubado”, observa Nery, para quem é fundamental o acesso a informações de qualidade.

Para estimar o quanto as pessoas estão expostas à violência, em 2010 e 2013 o NEV perguntou às pessoas se elas ou algum familiar tinha sido assaltado ou se tinha visto alguém sendo assaltado. A maioria disse que sim. “Quanto maior a declaração de terem sido assaltadas ou terem familiares assaltados, maior é a tendência de que as pessoas daquele grupo pesquisado estejam sendo vítima desse tipo de violência”, explica Nery.

Ainda segundo o pesquisador, outro aspecto importante, além da subnotificação, é que as ocorrências são pouco investigadas e criminosos ficam impunes. Outra pesquisa do NEV, coordenada pelo sociólogo e professor Sérgio Adorno, observou o fluxo de ocorrências policiais no sistema de Justiça criminal na cidade de São Paulo entre 1991 e 1997. Foram 344.767 boletins de ocorrência registrados em 16 delegacias situadas na região noroeste da capital, referentes a crimes violentos (homicídio, roubo, roubo seguido de morte, estupro e tráfico de drogas) e não violentos (furto, furto qualificado e consumo de drogas). Apenas 8% dos roubos tiveram algum tipo de punição.

“Em São Paulo, a impunidade é muito grande para todos os crimes. É pequena a chance de um indivíduo passar pelo trâmite legal, sendo preso, julgado e punido com a justa pena”, avalia Nery. De acordo com ele, a investigação e punição estão diretamente associadas ao conhecimento da autoria. “Se numa ocorrência se sabe quem é o autor, há uma prisão em flagrante, por exemplo, a chance de ser preso e condenado é muito grande. Tirando isso, a chance é muito pequena.”

Para o coronel da reserva da PM José Vicente da Silva Filho, membro do Fórum Nacional de Segurança Pública, a polícia deveria investigar mais. “Apenas 1% dos roubos de carros é esclarecido, o que é muito pouco. Há muita desculpa, mas a população não quer desculpas”, salientou. Ele criticou também a inércia da polícia em relação ao roubo de celulares, cada vez mais comun devido à valorização desses aparelhos no mercado paralelo e também pela facilidade encontrada pelos ladrões – “as pessoas vivem distraídas, com os aparelhos nas mãos, sem o menor cuidado”.

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Para chegar a essas quadrilhas, segundo José Vicente, a Polícia Civil deveria rastrear os celulares roubados e monitorar anúncios de venda de aparelhos a preços convidativos. “Antes eram as feiras de troca de toca-fitas. Agora, são os celulares.”

Na opinião de analistas, reduzir as taxas de roubos e assaltos – e a sensação de insegurança e medo da população – depende de vontade política e da desmilitarização, reforma e unificação das polícias. “A segurança deveria ser prioridade da agenda dos candidatos nessas eleições”, defendeu o ativista da Conectas Direitos Humanos Marcos Fuchs. Além disso, segundo ele, é preciso unificar as polícias e investir nessa nova polícia para torná-la mais eficiente, investigativa e que trabalhe em prol da população. “Temos de pensar numa polícia mais cidadã, mais próxima da comunidade, nos moldes da polícia comunitária americana, que conhece a população, seus hábitos, suas necessidades e que também seja bem remunerada, bem equipada.”

Novas responsabilidades

A analista sênior Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz, defende a redefinição das responsabilidades de cada ente quanto à segurança, além de informações de qualidade, com dados padronizados e consistentes para respaldar políticas públicas para o setor: “Hoje, nosso modelo policial não é eficiente. Cada polícia faz uma parte e não há integração entre elas. Precisamos ter instituição de um ciclo completo na polícia para daí então discutir a modernização penitenciária”.

No final de julho, especialistas e organizações, entre as quais o Sou da Paz, lançaram uma agenda prioritária de segurança pública, com propostas concretas e ­urgentes para o país. O documento reforça a necessidade de priorização do tema pela União e aponta áreas consideradas importantes para a melhoria da segurança pública, como um novo pacto federativo. Pelo atual, a responsabilidade principal pela segurança é dos estados por meio das polícias Civil e Militar, deixando muito ampla e vaga a definição das competências da união e municípios na matéria, inclusive em relação ao financiamento.

Isso favorece o permanente jogo de empurra entre os poderes. Um segundo ponto é o aperfeiçoamento da capacidade de difusão e gestão das informações de segurança pública, produção e o uso de informação de qualidade para que políticas para o setor tenham sucesso – o que é considerado hoje um gargalo considerável. A redução nas taxas de homicídios aparece no documento porque, segundo um estudo global da Organização das Nações Unidas, o Brasil está em 12º no ranking de desses crimes por 100 mil habitantes, perdendo apenas para países como Honduras, Venezuela, África do Sul e Colômbia. O dado é considerado inaceitável pelos especialistas, em um país que tem melhorado a economia e reduzido a desigualdade social e que mesmo assim convive com o altíssimo índice, que compromete o desenvolvimento do país.

A reforma do modelo policial aparece entre as prioridades. De acordo com os autores, o atual modelo estabelece, além da existência das polícias Federal, Rodoviária e Rodoviária Federal, a existência de polícias civis e militares em cada uma das unidades da federação. E em relação a essas polícias, a Militar, força reserva do Exército, faz o policiamento ostensivo e preventivo nas ruas por meio do patrulhamento, e a Polícia Civil investiga os crimes a partir dos boletins de ocorrência que registra nas delegacias. Significa que cada polícia faz metade do trabalho, sem a integração entre ambas.

As entidades defendem ainda a revisão de aspectos da política de drogas. A que está em vigor retirou a pena de prisão para o usuário, mas aumentou o número de pessoas presas por tráfico, sem real impacto nas dinâmicas criminais organizadas. Como a lei não especifica as quantidades de droga necessárias para caracterizar o uso ou o tráfico, fica a cargo do policial e do juiz determinarem se o indivíduo é usuário ou traficante. O que significa que a definição de quem é usuário acaba sendo baseada somente em critérios subjetivos por parte dos operadores do sistema.

“Diante do crescimento da violência e criminalidade, é fundamental proporcionar um debate público com maior qualidade, que fuja das soluções simplistas, além de pressionar para que as propostas sejam incorporadas pelos programas de governo dos candidatos à Presidência”, comenta Carolina Ricardo, do Sou da Paz.

Policiais defendem a unificação e desmilitarização

A maioria dos policiais militares, civis e federais (inclusive rodoviários), além de bombeiros e peritos, é favorável à unificação das polícias, bem como a sua desmilitarização. A tendência foi verificada em consulta realizada pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas (CPJA), da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, com apoio do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça.

Dos participantes do estudo Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública, 83,2% concordam totalmente com a modernização dos regimentos e códigos disciplinares, de modo a se adequar à Constituição de 1988. E 69,3% concordam plenamente com a regulamentação do direito de sindicalização e de greve dos policiais militares, enquanto 58,3% são totalmente favoráveis à retirada de PM e Corpo de Bombeiros do papel de forças auxiliares do Exército. Tais resultados – dados referentes à maioria das opiniões – coincidem com o que pensam os policiais da PM de São Paulo: respectivamente 74%, 60% e 48%.

Do conjunto dos participantes, a maioria (51,2%) discorda totalmente que as atuais carreiras policiais sejam adequadas – apenas 6,9% dos entrevistados consideram que devam ser mantidas. E para 62,1% as polícias deveriam ser organizadas em carreira única, com uma só porta de entrada, com concurso para ingresso. Entre todos os policiais militares ouvidos, 48,6% discordam totalmente da ideia de que as atuais carreiras policiais são adequadas e deveriam ser mantidas. Entre os policiais civis, o percentual é de 44,9%. Também pensam assim a maioria dos policiais federais (82,3%), federais rodoviários (55,7%), bombeiros (37,9%) e científicos/peritos (37,9%). Especificamente em São Paulo, apenas os bombeiros não são maioria quanto a essa opinião, comum entre a maioria dos PMs (39,6%), civis (53,6%), peritos (44,4%) e os federais que atuam no estado (82,3%) e federais rodoviários (43,8%).

Quanto ao modelo mais adequado à realidade brasileira, 27,1% (a maior parte, embora espremida) entendem que o modelo mais adequado à realidade brasileira é uma nova polícia de ciclo completo, de caráter civil, com menos hierarquia e organizada em carreira única. A manutenção do atual modelo é defendida por 13,22%. Para 6,51%, a polícia deve ter ciclo completo de policiamento, atuando cada uma delas conforme os tipos de crime. Entre os PMs paulistas, 23% querem a unificação com os civis, formando polícias estaduais integradas.

Os pesquisadores da FGV enviaram questionários eletrônicos, individuais, com acesso por senha, para
462 mil policiais cadastrados na Rede de Ensino à Distância do Ministério da Justiça, nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, além do Distrito Federal, e para outros 1.790 que manifestaram interesse em responder. Foram devolvidos 21.101 questionários válidos entre 30 de junho e 17 de julho.

Um perfil básico revela que 39,1% têm nível superior completo, 45% têm 30 a 39 anos, 66,2% acreditam que as carreiras policiais não são adequadas da maneira como estão organizadas, 80,9% pensam que as polícias devem ser organizadas em carreira única e 58,3% afirmam que a hierarquia nas polícias e demais forças de segurança provoca desrespeito e injustiças profissionais.

Os pesquisadores Renato Sérgio Lima, Samira Bueno e Thandara Santos ponderam que os resultados não podem ser expandidos para o universo de policiais brasileiros e que a amostra deve ser contextualizada. Entretanto, os dados permitem supor que existe na base das corporações um ambiente favorável a que os formuladores de políticas de segurança pública incentivem a participação desses profissionais na definição dos rumos de suas instituições. E que a construção de uma polícia cidadã pode não ser uma tarefa tão utópica quanto sugerem os que insistem em manter a estrutura autoritária, ultrapassada e ineficaz no combate à violência e na defesa social.

Cida de Oliveira