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Ciência médica conectada

Ao interligar vários centros de referência em saúde, programa brasileiro de telessaúde melhora o atendimento, reduz filas e ganha respeito internacional

Atendimento remoto no Hospital Municipal Dr. Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca: São Paulo caminha para se tornar a primeira capital a ter toda a Atenção Básica interligada pelo programa de Telessaúde <span>(MARCIA MINILLO/RBA)</span>Sala de teleconsultoria do Nutes/PE <span>(NUTES/UFPE)</span>Controle da pressão alta Segundo estudo, os pacientes atendidos nas UBS interligadas ao núcleo pernambucano aderem 20% mais ao tratamento do que os atendidos em outras unidades sem vínculo <span>(NUTES/UFPE)</span>Teleconsultoria entre profissionais de saúde <span>(NUTES/UFPE)</span>Em Porto Alegre, especialistas como Roberto Umpierre, que trabalha na Unidade Básica de Saúde Santa Cecília, conseguiram fechar o diagnóstico e encaminhar para tratamento imediato, em unidades próximas de suas casas, 650 pessoas com diabetes, ou 65% da fila para consulta com endocrinologista no serviço público <span>(ANDRÉA GRAIZ/RBA)</span>Pedro Máximo, do Amazonas: “Nosso objetivo é obter mais recursos estaduais para instalar pontos em todos os 62 municípios do estado” <span>(ALBERTO CÉSAR/RBA)</span>

No extremo norte do Brasil, na divisa com a Colômbia e a Venezuela, a 851 quilômetros de Manaus, está São Gabriel da Cachoeira. Para chegar lá, são duas horas de avião partindo da capital amazonense, ou quatro dias de barco pelo Rio Negro. A população, de maioria indígena, padece de doenças como a hanseníase, incapacitante se não for diagnosticada e tratada adequadamente, e desnutrição, que afeta o desenvolvimento das crianças. Desafios para os gestores, as grandes distâncias e o baixo desenvolvimento local vêm sendo vencidos com a ajuda de pontos instalados em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no centro do município e  em um pelotão de fronteira.

Por meio de um computador e de uma antena apta a receber sinais via satélite, profissionais de saúde entram em contato com a equipe do Núcleo de Telessaúde, instalado na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), na capital. É o canal para assistir a aulas e palestras de atualização em dermatologia, pediatria, odontologia, ginecologia, cardiologia, enfermagem, psiquiatria e psicologia, sob medida para as necessidades da população local.

É possível ainda consultar, por videoconferência, a opinião de outros médicos sobre casos mais complexos. São os teleconsultores do núcleo, que transmitem informações atualizadas, baseadas em evidências científicas e clínicas, para auxiliar o diagnóstico, a escolha do tratamento mais adequado ou até mesmo o encaminhamento do paciente para exames ou procedimentos em outra localidade.

Implementada em 2007, a estratégia, movida a parcerias entre órgãos federais e estaduais, já mostra bons resultados. Na própria UEA, estudo recente constatou que a qualidade e eficiência do tratamento de pacientes com pé diabético por médicos que utilizam os recursos da telessaúde são idênticas às do serviço prestado na capital, em centros de referência.

A qualidade de vida de todos os pacientes ouvidos na pesquisa também era idêntica, conforme a pesquisadora Isabelle Nascimento Costa. “Nosso objetivo é obter mais recursos estaduais para instalar pontos em todos os 62 municípios do estado, ampliar a cobertura e beneficiar mais pessoas”, diz o coordenador do núcleo amazonense, Pedro Máximo, um economista especializado em gestão de projetos de telessaúde e telemedicina. Conforme ele ressalta, os limites da conectividade são um dos desafios, inibindo a expansão da rede, que muitas vezes depende de acessos via rádio, encarecendo a comunicação.

Em Pernambuco, o médico nefrologista Marcos Vinícius Ribeiro dos Santos, do Hospital das Clínicas da universidade federal naquele estado (UFPE), constatou que a telessaúde tem papel importante no controle da pressão alta. Segundo o estudo, os pacientes atendidos nas UBS interligadas ao núcleo pernambucano aderem 20% mais ao tratamento do que os atendidos em outras unidades sem vínculo. Além de tomar os medicamentos corretamente, reduzem a ingestão de sal, álcool, tabaco e o peso corporal, que aumentam as taxas de mortalidade pela hipertensão.

Para o pesquisador, está comprovado que a ferramenta ajuda a modificar as condições que colocam as doenças cardiovasculares entre os desafios da saúde pública em todo o mundo. Tanto é que o núcleo pernambucano vem incorporando outra estratégia para enfrentá-las: a oferta do teleeletrocardiograma nas unidades de saúde, a exemplo do que já acontece em outros núcleos estaduais.

A fila anda

No Rio Grande do Sul, desde o início do ano especialistas do núcleo local conseguiram fechar o diagnóstico e encaminhar para tratamento imediato, em unidades próximas de suas casas, 650 pessoas com diabetes. O número corresponde a 65% da fila para consulta com endocrinologista no serviço público. “Muitos esperavam havia mais de um ano, sem desconfiar que tinham a doença”, diz o epidemiologista Erno Harzheim, que coordena o núcleo do Telesaúde do RS.

Em ligação telefônica por meio de um serviço 0800, o médico da UBS que fez o encaminhamento e um especialista discutiam, caso a caso, as condições de saúde dos pacientes conforme protocolos e diretrizes. E o consenso levou ao diagnóstico seguro e a abordagem terapêutica mais adequada. Com o início do tratamento, os pacientes passaram a controlar a doença, evitar suas complicações, como derrames, infartos, amputações, cegueira e insuficiência renal e, ao mesmo tempo, liberaram o serviço e especialistas para outros casos mais complexos.

Responsabilidade da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o núcleo mineiro, em Belo Horizonte, atende a mais de 660 municípios, oferecendo entre outros serviços telediagnóstico por meio de laudos de eletrocardiograma, monitorização ambulatorial de pressão arterial (Mapa) e Holter (monitor que mede o ritmo cardíaco), além de teleconsultoria para discussão de casos urgentes em cardiologia. O município atendido conta com computador, impressora e eletrocardiógrafo digital, equipamentos operados por um profissional qualificado que coleta e envia os dados do paciente. No núcleo, os especialistas emitem o laudo para a unidade de saúde, facilitando a vida de médicos e usuários. Só em fevereiro, foram 2,6 milhão de laudos e 56 mil teleconsultorias, sem contar o trabalho de coordenação da descentralização dos serviços para outros pontos no estado.
Amazonas, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, mais Ceará, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina integram o projeto piloto do Telessaúde Brasil Redes.

Criado há sete anos para qualificar 2.700 equipes de Saúde da Família no país e melhorar a qualidade do atendimento na atenção básica, o programa começou a ser ampliado em 2009, para respaldar o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Infantil no Nordeste e na Amazônia Legal. No ano seguinte, os nove estados do projeto piloto já tinham cortado pela metade os deslocamentos de pacientes e economizado R$ 35 milhões para o SUS.

De acordo com o Ministério da Saúde, há atualmente 14 núcleos em operação e outros 33 em fase de instalação. Ao todo são mais de 5 mil pontos funcionando em unidades básicas de saúde de 2.500 mil municípios, como em São Gabriel da Cachoeira, envolvendo no total 30 mil profissionais das equipes de Saúde da Família. Ainda este ano, o ministério pretende lançar um aplicativo para celular, o que pode ampliar o atendimento para mais de 3 mil municípios.

Desde 2007, foram realizadas mais de 150 mil teleconsultorias, 1,2 milhão de telediagnósticos, 700 segundas opiniões formativas – ou confirmação do diagnóstico por um médico especialista – e atividades de teleducação para mais de 540 mil profissionais. “Até o final deste ano, o programa alcançará um total de 3.700 municípios em todos os estados”, afirma o diretor do Departamento de Gestão de Educação (SGTES), do Ministério da Saúde, Alexandre Medeiros Figueiredo.

A estratégia brasileira, que tem sido acompanhada por gestores estrangeiros, especialmente africanos, que estudam adotar modelo semelhante, é elogiada pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). O organismo aprova sobretudo a redução nos deslocamentos de pacientes para os grandes centros, de custos e principalmente por criar centrais de regulação de consultas e de exames e utilizar teleconsultorias auxiliares na avaliação da população atendida.

Grande e carente

O telessaúde tem ajudado ainda a reorganizar serviços em grandes cidades, como São Paulo, onde a proximidade com centros de referência, hospitais e universidades não dispensa a necessidade de respostas rápidas. É o caso de exames de eletrocardiograma feitos durante um atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o Samu, que exigem um laudo imediato para orientar o trabalho da equipe.

Em janeiro, a prefeitura paulistana assinou convênio com o Ministério da Saúde para a criação de um núcleo do Telessaúde Brasil Redes. Com a parceria da Universidade de São Paulo (USP), a cidade caminha para se tornar a primeira capital a ter toda a Atenção Básica interligada pelo programa federal. De acordo com o cardiologista Amaury Zatorre Amaral, coordenador do serviço na Secretaria Municipal de Saúde, serão instalados 340 pontos para conectar 446 UBS, 30 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), 18 hospitais e 16 prontos-socorros, além de supervisões de Vigilância em Saúde.

A telemedicina, porém, já é realidade na cidade. O Hospital Municipal Dr. Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca (região central de São Paulo), é um dos serviços de emergência do município interligados ao Tele Emergência e Tele UTI, ferramentas de atendimento remoto desenvolvidas pelo Instituto do Coração (Incor). O sistema permite aos médicos esclarecer dúvidas sobre diagnósticos e obter as melhores condutas no infarto agudo do miocárdio, por exemplo, 24 horas por dia, durante toda a semana. “O serviço soma qualidade no atendimento a pacientes e aumenta a segurança do corpo clínico, evitando remoções desnecessárias, uma vez que nem todo hospital está em condições de ter em seu quadro médicos de todas as especialidades”, afirma o diretor-técnico do hospital municipal, o médico Mauro Apocalypse.

Criado em 2009, o Centro Incor de Telemedicina e Telessaúde (CITT) teve sua estrutura tecnológica ampliada recentemente, com investimentos de R$ 320 milhões do governo federal e R$ 100 mil do governo paulista. Com a ampliação, passou a integrar o grupo de 73 núcleos de hospitais da Rede Universitária de Telemedicina do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação para o intercâmbio técnico-científico entre unidades de ensino.

“O Brasil é um dos grandes modelos na aplicação dos recursos da telemedicina em atenção primária à saúde, como os telediagnósticos, laudos, teleconsultorias de centros de referência e na atualização profissional”, afirma o médico Chao Lung Wen, coordenador do Laboratório de Gestão e Sustentabilidade em Telemedicina e Telessaúde da Faculdade de Medicina da USP. Conforme ressalta, mais do que uma ferramenta capaz de levar a saúde aos pontos mais distantes do país, a telessaúde é a solução para a organização eficiente do serviço, com melhorias para o profissional e para o paciente. “Mas os recursos da internet, como a webconferência, não podem substituir os serviços e a presença do médico”, assinala.