Crônica

Peixe Grande. Eduardo Coutinho e os caminhos da memória

Seu cinema não privilegiou a ficção, apenas o real. Um real que revelou meu pai, “personagem” de ‘Peões’, um homem romântico

Vicente Mendonça

Vivo de entrevistar pessoas e depois escrever suas histórias, como repórter e, mais recentemente, pesquisadora e memorialista. Por isso nunca me senti personagem, e foi com muita surpresa – e alguma estranheza, confesso – que ouvi: “Esta é a primeira vez que um personagem de filme meu se manifesta!” A frase foi dita pelo cineasta Eduardo Coutinho, no lançamento do filme Peões, em São Bernardo, em 2004. Não trazia crítica nem elogio, mas, também, surpresa, e se referia a um comentário que enviei para a Folha de S.Paulo lembrando a um articulista que nem toda herança pode ser medida pela conta bancária, como queria fazer supor no caso dos metalúrgicos do ABC retratados pelo documentário de Coutinho.

Na verdade, entrei nessa história por acaso, porque o “personagem”, de fato, era meu pai, Antônio Ferrasoli, um homem apaixonado por política e sindicalismo e obstinado em sua luta pelos direitos dos trabalhadores. Eu já sabia, então, que a herança que ele me deixaria seria imensa, e sua morte, menos de dois meses depois do lançamento do filme, só veio confirmar essa certeza. Naquele dia terrível em que meu pai foi enterrado, Coutinho telefonou para mim. Não me lembro das palavras, mas disse que tinha acabado de receber a notícia e demonstrava tristeza. Devo a ele a sensibilidade de ter eternizado num documentário o grande amor que sentia, e sinto, pelo meu velho Tom. Uma relação de afeto tão grande que até hoje, quase dez anos depois, ainda não me deixa rever o filme. Por isso, quando soube da morte do cineasta, de forma tão trágica e envolvendo seu filho, fiquei sem saber o que pensar. Triste, claro. Mas de novo com aquela incômoda sensação de estranheza.

Durante a gravação final de Peões da qual meu pai participou, Coutinho pediu que ele se reconhecesse no livro Imagens da Luta, no qual estão as maravilhosas fotos das assembleias na Vila Euclides. Lá estava ele, quase na beira do palanque. Ao se ajeitar na cozinha do velho sobrado em que meu pai vivia, os técnicos da equipe ficaram fascinados com a mesa, sobre a qual descansavam sempre moedas, papéis, dicionário, selos, boletins. Em algum momento meu pai mostrou a eles um tal Hino do Metalúrgico, que pelo jeito só ele e o autor conheciam… Um texto cifrado com nomes de antigos filmes famosos, transformado em carta de amor. Coutinho não perdeu a deixa: o senhor então é um homem romântico… E falaram sobre minha mãe, já falecida, o medo dela quando o marido participava das greves. Eu, mais uma vez surpresa: e não é que meu pai, aquele ativista-hiperrealista-petista-quasecomunista era mesmo um adorável romântico?

Eduardo Coutinho andou por muitos caminhos da memória. Seu cinema não privilegiou a ficção, apenas o real. Mas o real recontado já não é matéria bruta, porque entra em cena o presente. Num encontro realizado no Sesc há alguns anos sobre História Falada, ele declarou: “Às vezes ouço falar que a busca das histórias de vida dos outros é uma forma de nos conhecermos. Eu, retrospectivamente como sempre, sinto que o que me ajuda a falar com as pessoas é que eu não tenho certeza de quem eu sou. Para o filme é bom, para a vida não sei. Justamente, acho que eu vou buscar um pouco da minha identidade no outro”.

Considerada a porção generosa que sempre deixou ao “outro” como protagonista e a produção intensa a que se entregava nos últimos anos, dá para imaginar que essa busca não teria se encerrado não fosse a chegada da morte. Cruzar a ponte entre o eu e o outro é sempre um caminho sem volta, e Eduardo Coutinho deu voz a muita gente, sem concessão ao julgamento ou ao panfletário – gente anônima, que faz a história, mas nela não é reconhecida. Talvez por isso, em seu velório, tantos “personagens” tenham ido se despedir. Pessoas que abriram seus corações para lhe contar suas vidas e podem ter visto nele o olhar compreensivo do outro. Como no filme Peixe Grande, só que pelos curiosos caminhos da memória – que não é nem real nem imaginária, mas pulsação e reconhecimento.