A vida em volta das águas da Lagoa Mirim, no Rio Grande
Histórias de pescador passam de avô para neto e preservam cultura e hábitos ribeirinhos na imensa bacia de água doce, de pé atrás com os arrozais, no sul do Rio Grande do Sul
Publicado 26/10/2013 - 18h33
Gauchinho exibe traíra: “Sem convicção não se tira peixe”
Depois que o padre foi assassinado na porta da igreja, a vida nunca mais foi a mesma em Santa Isabel. “Fomos amaldiçoados”, dizem. O vilarejo de mais de 200 anos viveu tempos áureos, visíveis ainda em casarões e ruínas de arquitetura açoriana. Uma visita de dom Pedro II no século 19, quando as fachadas eram ornamentadas a ouro, denota a importância histórica do local. A vila que tem origens portuguesas fica no município de Arroio Grande, às margens da Lagoa Mirim, no Rio Grande do Sul, e foi uma das sedes econômicas da região, que vivia do charque. Hoje a maior parte da sua população, cerca de 900 habitantes, se ocupa da pesca artesanal na lagoa e banhados aos arredores.
A equipe de pesquisa e restauração encontrou uma ossada no assoalho da igreja – supostamente pertencente ao padre. O achado marca o início do inventário encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) para o tombamento da estrutura construída em 1861 com madeiras nobres e azulejos importados. A igreja chama atenção pelo seu tamanho. São quase 10 metros de altura, em contrastante imponência ao lado das casinhas de alvenaria dos pescadores.
O Rio Grande do Sul é o quarto estado mais importante na atividade da pesca artesanal no país. São cerca de 12 mil pescadores licenciados pelo Ministério da Pesca e Aquicultura. A maioria herdou a profissão dos pais e familiares, cresceu entre redes, barcos e histórias. Esses mitos e lendas contadas de avô para neto há centenas de anos é que garantem a existência da cultura ribeirinha. A maldição do padre explica, em alguma medida, a escassez de peixe e as alagações sofridas todos os anos na região.
Os homens das águas têm fé. “Quem pesca sem convicção não tira peixe”, diz Gauchinho, com seu barco cheio de traíras. Eles respeitam a lagoa ondulosa do mês de julho e não saem para pescar antes da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia 2 de fevereiro. Na construção de uma relação entre seres humanos, divindades e natureza por vezes se fazem necessárias certas analogias. O pescador Chicão, ao lamentar a degradação ambiental, compara a lagoa a uma mãe: “Já pensou o dia em que as mulheres deixarem de ter filhos? Pois vai ter um dia que essa lagoa vai deixar de ter peixe”.
A Mirim é a maior lagoa de água doce do país e a segunda maior da América Latina. Os pescadores mais antigos garantem que em algumas décadas foram extintas pelo menos cinco espécies de peixe. Isso ocorre principalmente porque em 1977 foi criada a Barragem de São Gonçalo, entre a Lagoa dos Patos e a Lagoa Mirim, impedindo o escoamento de água salgada para ela. São as lavouras de arroz que se beneficiam com a dessalinização das águas, consumindo anualmente cerca de 12 milhões de litros por hectare plantado. “Quase todo mundo planta com a água da Mirim. Muito banhado foi reduzido a arroz. De 15 anos pra cá, terminaram os mananciais”, conta Gauchinho.
Frente a essas transformações socioambientais, o que ainda contribui, então, para manter as comunidades na atividade pesqueira? Além do sentimento de afeto ligado à profissão, o principal motivo é a autonomia para gerir horários e folgas. A maioria deles faz biscates ou já experimentou trabalhar como “granjeiro”, mas é na pesca que ganham melhor e vivem com maior liberdade. Porque se por um lado o trabalho na água é árduo, por outro a organização dos pescadores em cooperativas e os benefícios conquistados permitem que vislumbrem um futuro.
A Lagoa Mirim é cercada por quatro municípios brasileiros – Rio Grande, Arroio Grande, Jaguarão e Santa Vitória do Palmar –, além de outros três em território uruguaio. Em Santa Vitória está Vila do Porto, a Colônia de Pescadores Z16, no extremo sul. Para chegar lá, saindo de Porto Alegre, atravessa-se a Estação Ecológica do Taim, onde de um lado e de outro da pista é possível ver capivaras e jacarés em eterno banho de sol.
A unidade de conservação ganhou o título de Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e é conhecida como ponto de pouso e nidificação – formação de ninhos – de aves migratórias vindas da região ártica ou da Antártida. Localizada em uma estreita faixa de terra, entre o oceano Atlântico e a Lagoa Mirim, a estação é conhecida como viveiro natural de espécies animais e vegetais.
As espécies mais comuns de peixe na Vila do Porto – e na lagoa como um todo – são o jundiá, o pintado, o trairão, a viola, a corvina, o cascudo e o peixe-rei. Mas um peixe de aproximadamente 40 centímetros é o mais desejado pelos pescadores da região. “A traíra é o ouro da Mirim”, dizem. Dela tiram os miúdos, considerados caras iguarias. A bochecha é comercializada pela cooperativa de pescadores para as cidades ao redor, mas não chega ao interior do estado ou à capital. Um dos pratos típicos da culinária local é o estrogonofe de bochecha de traíra, feito com molho de tomate e creme de leite e servido quente com arroz e batatas.
A pesca, base da subsistência dos ribeirinhos na fronteira do Brasil com o Uruguai, é também símbolo dessa identidade cultural singular que, em certa medida, confronta o estereótipo do gaúcho pampeano. Entre banhado, praias e dunas vivem essas pessoas que configuram a dimensão humana de um complexo sistema ecológico.
Atividade protegida, área nem tanto
Durante a época do defeso, também conhecido como piracema ou desova de peixes, os pescadores devem suspender as atividades de pesca. Na Lagoa Mirim dura três meses, de 1º de novembro a 31 de janeiro. Como contrapartida, eles recebem o benefício do seguro-desemprego no valor de um salário mínimo em cada mês que deixam de pescar em respeito ao período reprodutivo. Para isso, devem se cadastrar no Ministério da Pesca e Aquicultura e se inscrever no INSS como contribuinte especial.
Apesar da longa espera, no caso da Lagoa Mirim os pescadores adiam em três dias o retorno às atividades, somente depois das festividades de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia 2 de fevereiro. A categoria pode também recorrer ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e ter acesso a crédito para compra de artefatos de pesca, motores e embarcações.
O alcance de algumas políticas públicas é um reconhecimento importante à cultura das comunidades ribeirinhas e retribui com uma proteção social mínima uma prática essencial para a proteção do bioma. O problema ambiental ali, portanto, não é a extensão do defeso, mas a extensão dos arrozais.