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O financiamento privado de campanhas precisa acabar

Dinheiro de grandes empresas na mão dos candidatos desequilibra a eleição, o Parlamento e influi nas decisões dos poderes. O caminho é o financiamento público

A democracia requer ampliação dos canais de participação da sociedade nas decisões <span>(danilo ramos/rba)</span>Doação de R$ 700 mil de Wilder Morais, dono de construtora, ajudou 
a eleger Demóstenes, que acabou cassado. Suplente, Morais ficou com a cadeira <span>(Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr)</span>Camargo Corrêa e OAS têm papel de destaque em obras do estado de São Paulo, como a Ponte Estaiada <span>(oas/divulgação)</span>Camargo Corrêa e OAS têm papel de destaque em obras do estado de São Paulo como em vários trechos do Rodoanel <span>(constran/divulgação)</span>As construtoras Andrade Gutierrez e Odebrecht ficaram com a reforma do Maracanã, que custou R$ 808,4 milhões, mais que o dobro do contrato original <span>(Daniel Basil/copa 2014)</span>Outro foco: priorizar o debate de ideias entre os candidatos, não de contas bancárias <span>(Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr)</span>

Era uma vez um empresário que decidiu apoiar um candidato a senador. Fez as contas e concluiu que não lhe faria falta um aporte de R$ 700 mil no caixa da campanha para, na mais nobre das hipóteses, ajudar a eleger um homem comprometido com a defesa de Goiás no Senado. E ajudou. Ele, dois bancos, uma indústria de fertilizantes, algumas alimentícias, de bebidas, empreiteiras, uma fábrica de armamentos, gente do agronegócio, entre outras dezenas de contribuições de pessoas jurídicas e físicas – legítimas e declaradas  – deram conta de uma receita de R$ 9,2 milhões para eleger, em 2010, Demóstenes Torres, do DEM.

Demóstenes foi também eleito “mosqueteiro da ética” no Congresso pela revista Veja, mas acabou flagrado nas operações Vegas e Monte Carlo, da Polícia Federal. Comprometido não necessariamente com interesses de seu estado, mas com os do chefe de organização criminosa Carlinhos Cachoeira – preso em 2012 –,  o democrata foi cassado.

Precavido de que seu estado não ficaria sem um representante à altura diante de circunstância desagradável como essa, o empresário Wilder Pedro de Morais, dono da Orca Construtora e daqueles R$ 700 mil do começo da história, era ele próprio o suplente de Demóstenes. E assumiu a cadeira desocupada em 11 de julho do ano passado.

O episódio compõe uma rica ilustração da força do capital privado para colocar no poder pessoas que agem a seu serviço. Como a legislação permite doações indiscriminadas por parte de empresários de todas as áreas, para candidatos de todos os partidos, a todos os cargos eletivos, não é tarefa fácil mapear os políticos que são escolhidos para ser embaixadores dos doadores no interior da gestão pública.

É que as empresas fazem doações para muitas campanhas, o que confunde e despista um mapeamento. Os dados das doações são públicos, estão no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas como saber o que passa nos planos da Carioca Christiani Nielsen Engenharia S/A quando ela ajuda candidatos tão díspares como o democrata Demóstenes (R$ 200 mil) e a petista Marta Suplicy (R$ 25 mil)?

É legítimo empresas pleitearem vender produtos e serviços a órgãos públicos, ­assim como é legítimo que parlamentares proponham emendas ao orçamento de seu estado ou da União para direcionar recursos a obras em suas regiões. O problema é quando ambições particulares superam o interesse público. Por exemplo: se é verdade que propinas e superfaturamentos consumiam 30% dos contratos de R$ 30 bilhões entre um cartel de empresas de infraestrutura de transportes e o estado de São Paulo, o prejuízo é de R$ 9 bilhões aos cofres públicos. Dinheiro para construir 20 quilômetros de trilhos de metrô.

Outra distorção grave proporcionada pelo envolvimento de grandes corporações nos financiamentos das campanhas é que acabam formando suas próprias “bancadas”, a despeito de qualquer composição partidária. Além de interferir em nomeações para postos-chave em órgãos e empresas públicos. Assim, acabam desfrutando de um poder invisível, muito maior que o determinado pelo desejo das urnas.
Por essa razão, entidades respeitáveis da sociedade defendem processos eleitorais custeados exclusivamente com recursos do Orçamento da União, e não mais por dinheiro privado. O chamado financiamento público é bandeira antiga de organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil, Movimento contra a Corrupção Eleitoral (MCCE), União Nacional dos Estudantes (UNE), Central Única dos Trabalhadores (CUT), bem como de setores dos partidos e de parte dos ministros do TSE.

Por dentro da máquina

Levantamento feito pela Revista do Brasil no TSE mostra que as grandes empresas têm muita munição para esse tipo de investimento. As dez que mais doaram nas eleições brasileiras de 2002 até 2012 desembolsaram mais de R$ 1 bilhão para financiar campanhas no país inteiro. Fazem parte desse grupo cinco construtoras (Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, OAS, Queiroz Galvão e UTC Engenharia), três bancos (Itaú Unibanco, Bradesco e BMG), um frigorífico (JBS) e uma siderúrgica (Gerdau). Jorge Gerdau é eclético a ponto de, em 2010, ajudar com R$ 3 milhões a campanha do tucano José Serra à Presidência e com R$ 1,5 milhão a de Dilma – sem contar R$ 100 mil doados a Luciana Genro (Psol) na corrida à prefeitura de Porto Alegre, em 2008.

Em São Paulo, por exemplo, não por acaso, as quatro construtoras que despontam na lista como principais patrocinadoras de candidaturas no país participaram do consórcio para a construção da linha 4 do metrô (a Linha Amarela). Já a OAS, além do consórcio, ganhou a concorrência para construção de dois lotes do Rodoanel. A Camargo Corrêa foi, conforme balanço do Ministério dos Transportes, a empresa que mais ganhou licitação para execução de obras de rodovias federais – no ano passado, da ordem de R$ 213 milhões.

Não pairam sobre esses financiamentos denúncias ou acusações, mas o simples gesto de contribuir com campanhas é o bastante para estabelecer, entre empresas e o mundo político, um bom relacionamento.

O comportamento das empresas doadoras é observado de diversas formas. Em alguns casos, as doações saem de um único lugar. Em outros, saem de diversas empresas de um mesmo grupo. O Bradesco, por exemplo, tem doações por meio do Banco Alvorada, R$ 89,7 milhões entre 2002 e 2012. Já pelo Bankpar, outra subsidiária da mesma instituição financeira, o financiamento foi de R$ 18,3 milhões e, pela Tempo Serviços (também do Bradesco), mais R$ 20 milhões. Os dados, apurados no TSE e com valores totalizados pelo órgão, levaram em conta reajustes pelo Índice Geral de Preços de Mercado (IGP-M).

A Vale doou R$ 107 milhões na década, distribuídos por quatro empresas subsidiárias. A empreiteira Odebrecht formalizou ao TSE em todos esses anos a doação de valores que totalizaram R$ 41,1 milhões, mas ao mesmo tempo também foram registradas contribuições de R$ 26,9 milhões da Braskem, em parte pertencente à construtora. “É um negócio para as empresas. Um mercado rentável que funciona de forma competente do ponto de vista dos interesses dos acionistas”, afirma o cientista político Alexandre Neves, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Segundo ele, mesmo que as licitações sejam sérias e ocorram nos rigores da lei, permitem a tais empresários maior contato com parlamentares e governantes e certo acesso ao funcionamento da máquina pública.

Não é preciso pesquisar muito para perceber as ligações perigosas. Em 2010, o PCdoB, que nunca recebeu grande apoio privado, foi contemplado com doações de R$ 940 mil feitas por Coca-Cola, McDonald’s e Bradesco. Nunca antes na história deste país o partido havia recebido um centavo desses grupos – interessados nos negócios em torno da Copa do Mundo e da Olimpíada, e portanto, em agradar a legenda do então ministro do Esporte, Orlando Silva Júnior. O fenômeno, no mínimo, desperta desconfiômetros.

Há, no entanto, casos que dispensam discrição. Em 2008 e 2010, a Construtora Delta, envolvida no escândalo de irregularidades de licitações no Rio de Janeiro e em Goiás descoberto pela operação Monte Carlo, doações para vários partidos e candidatos de diversos estados, entre eles PT e PMDB, com R$ 1,1 milhão para cada um. Parte foi doada diretamente aos diretórios dos partidos. Outra parte seguiu para candidatos a deputados, senadores, prefeitos e governadores.

Somente no Rio de Janeiro, se destacam políticos como os deputados federais Antony Garotinho (PR) e Eduardo Cunha (PMDB), deputado estadual Fábio Francisco da Silva (PPB), candidatos a prefeito das cidades de Duque de Caxias e São João do Meriti e a vereador da capital. A empresa também contribuiu com campanhas nos municípios de Ji-Paraná (RO), Teresina (PI), Santa Maria (RS), Jequié (BA), Porto Alegre (RS), Caxias do Sul (RS), Ariquemes (RO), São Paulo, Cariacica (ES), Coari e Itacoatiara (AM).
“As regras de financiamento de campanhas devem ser alteradas para excluir do seu âmbito as doações de pessoas jurídicas. Assim é possível tornar o processo democrático mais autêntico, preservando-o das inevitáveis pressões dos grupos econômicos sobre nossos representantes”, defende o ministro Castro Meira, do TSE.

Sua colega Carmen Lúcia, ministra do Supremor Tribunak Federal (STF) e presidenta do TSE, concorda que as eleições são muito caras no Brasil e que é deve pesar o conteúdo das propostas dos candidatos, não de suas contas bancáras: “O Congresso tem a árdua tarefa de prioduzir uma reforma que responda aos anseios da população. E o ideal é que as mudanças sejam observadas já nas próximas eleições”, disse.

O vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinícius Coelho, considera estar na raiz da maioria dos problemas do sistema político brasileiro – como a corrupção, o descompromisso com os programas partidários e a falta de sintonia entre os Poderes Legislativo e Executivo – a possibilidade de empresas financiarem as campanhas. “O Brasil precisa urgentemente fazer esse choque de legitimidade política. Indiretamente, as pessoas estão buscando a reforma política”, afirma.

De fato, pesquisas divulgadas recentemente dão conta dessa percepção. Uma delas, feita pelo Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, detectou num universo de 2.400 entrevistados 89% favoráveis a uma reforma política. A esmagadora maioria dos entrevistados julga “caras” ou “muito caras” as campanhas eleitorais e 68% querem que as empresas sejam proibidas de fazer doações.

Outro levantamento recente, do Ibope para o jornal O Estado de S. Paulo, verificou que 39% dos entrevistados são a favor do financiamento público e 14% defendem o custeio das campanhas exclusivamente por pessoas físicas – o que corresponde a um percentual de 53% que desejam que as empresas sejam proibidas de pôr dinheiro em candidaturas. O Ibope, porém, identificou muita gente, 86%, que se considera pouco ou nada informada sobre as discussões em torno de uma possível reforma política – o que leva a crer que os meios de comunicação não são eficientes para contribuir com esse debate.

Inibir os lobbies

O diretor executivo da ONG Transparência Brasil, Cláudio Abramo, é de opinião que o financiamento de campanhas passe a ser misto, por meios privados, inclusive pessoas físicas, e pelo Estado. “Uma empresa, quando financia, compra a promessa de decisão futura. Esse é um mercado como outro qualquer, e tentar proibi-lo não dá certo. O que deve haver é fiscalização”, argumenta Abramo.

Para o coordenador do grupo técnico que elabora uma proposta de reforma política na Câmara dos Deputados, Cândido Vaccarezza (PT-SP), “não é sério dizer que se alguém contribuiu para a campanha manda no deputado. Em mim, e na maioria dos deputados aqui na Casa, ninguém manda. Eu não vejo os deputados votarem de acordo com quem contribuiu com sua campanha, como não vejo os governadores fazerem isso nem a presidenta da República”.

O sistema de financiamento de campanhas é misto: público e privado. Permite que os partidos levantem fundos por meio de doações de entidades privadas, pessoas físicas e empresas, e ainda verbas públicas do fundo partidário, mantido por dotações do Orçamento Geral da União. Estas, entre janeiro e junho deste ano, somaram R$ 148 milhões, distribuídos proporcionalmente, de acordo com a votação obtida pelos partidos na eleição anterior.

Para se ter ideia, em 2012 os gastos dos candidatos a prefeito e vereador foram de R$ 4,6 bilhões, segundo o TSE. O valor representa crescimento da ordem de 471% em relação às campanhas de 2002, para deputados estaduais, federais, senadores, governadores e presidente, quando foram gastos R$ 798 milhões nas campanhas. Na França, as eleições presidenciais e legislativas do ano passado consumiram o correspondente a R$ 70 milhões.

“O valor gasto na França com as últimas eleições é próximo da doação feita por uma única construtora do Brasil nas eleições municipais do ano passado, dividida entre vários candidatos”, compara o pesquisador Geraldo Tadeu Monteiro, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Atualmente, 95% das campanhas são financiadas pelas grandes empresas. Em 2010, as doações de 19 mil pessoas jurídicas somaram R$ 2,2 bilhões (75% do total arrecadado), mas metade dessas contribuições esteve concentrada em 70 empresas. E a participação de pessoas físicas só vem caindo. Para o juiz de Direito e cofundador do MCCE, Marlon Reis, o Brasil precisa urgente de novas regras. “É preciso racionalizar o processo, diminuir drasticamente o custo das campanhas e não mais responsabilizar as empresas por esse custeio”, destacou.

A redução dos gastos por parte dos ­patrocinadores pode inibir a atuação dos lobbies. Na atual legislatura, a bancada ruralista (a maior de todas, com mais de 200 parlamentares de diversos partidos) confrontou teses em pontos da votação do Código Florestal.
Nos próximos meses, nova discussão sobre o assunto será travada, com a apreciação dos vetos feitos pela presidenta Dilma Rousseff. A mesma bancada também brigou feio, no primeiro semestre, para modificar o projeto que trata de desapropriações em flagrantes de uso de mão de obra análoga a escravidão. Itens do texto acabaram “flexibilizados”, em benefício de empregadores que contestam a interpretação dos órgãos fiscalizadores sobre o que pode ser considerado trabalho escravo ou degradante.

Também foi observada a influência do poder econômico nas votações da medida provisória que determina a regulamentação do setor de Portos (MP dos Portos) e no projeto que prevê a destinação dos royalties do petróleo para o setor de educação. “Em todos esses casos está explícita a pressão do poder econômico que ajuda a eleger os parlamentares”, destacou o cientista político Alexandre Neves, da UFPE.

Outra forma de coibir que lobistas “elejam” previamente quem serão seus representantes no poder é a composição de listas fechadas de candidatos a cargos proporcionais, como vereadores e deputados. A proposta de voto em lista pressupõe que os partidos montem sua “chapa” de candidatos. O eleitorado votaria, então, na chapa, como se faz nos grêmios estudantis ou entidades de classe. E, portanto, nos projetos defendidos por essas chapas, os partidos, e não em pessoas.

Os partidos definem em suas eleições internas a ordem em que seus candidatos aparecem na lista, e essa ordem define os que serão eleitos, de acordo com a proporção de votos alcançada pela legenda.

O voto em lista, porém, tem pouca chance de passar numa reforma que, para valer nas eleições de 2014, teria de estar pronta até 5 de outubro. Um grupo especial da Câmara destacado para formular uma proposta não deu sinais de que conseguiria a proeza. Integrante do grupo, o deputado Ricardo Berzoini (PT-SP) empenhou-se num esforço paralelo com colegas do PCdoB, PSB e PDT, que elaboraram um projeto de decreto legislativo que sugere um plebiscito. O texto propõe submeter a consulta popular temas como financiamento público, o uso da internet para projetos de iniciativa popular e a coincidência entre as eleições municipais e federais.

“O projeto está próximo das sugestões apresentadas pela presidenta Dilma ao Congresso. Mostramos que é possível atender a essa demanda da presidenta e da socidade já para o ano que vem”, afirmou o parlamentar. Com assinaturas de quase 200 deputados, o texto precisaria passar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e nos plenários das duas Casas. Resta saber qual o obstáculo mais difícil a superar, o tempo ou a acomodação dos que querem que tudo fique como está.