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Vidas em risco

Dificuldades financeiras e instabilidade no relacionamento motivam aborto clandestino, diz pesquisa

Marcos Aragão/Divulgação

Muito além da moral manifestação em São Paulo: aborto é problema de saúde pública

Em meio às manifestações de diversas entidades contra a possibilidade de alteração da redação do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH3), que trata da descriminalização do aborto, a Fundação Oswaldo Cruz divulgou uma pesquisa – uma tese recém-defendida na Escola Nacional de Saúde Pública da instituição – sobre experiências de quem, por alguma razão, interrompeu a gravidez. Quase sempre, as causas são dificuldades financeiras e relacionamentos instáveis.

A autora do estudo, a pesquisadora Simone Mendes de Carvalho, ouviu mulheres em unidades do programa Saúde da Família de Cabo Frio (RJ), algumas das quais  se submeteram a abortos clandestinos. “Por se tratar de uma prática ilegal, é realizado em condições precárias, o que leva a um expressivo número de mortes evitáveis e outros agravos à saúde, como infecções e infertilidade”, afirma. “Por isso, a questão deve ser tratada como um problema de saúde pública que afeta a vida de várias mulheres, entre elas jovens e adolescentes.”

Foram 44 casos de gravidez, dos quais 22 resultaram em aborto provocado. Elas tinham entre 14 e 29 anos na época em que abortaram, a maioria entre 18 e 25. Segundo a pesquisadora, os procedimentos foram realizados em condições precárias e de risco. Alguns pela ingestão de comprimidos ou chás abortivos conhecidos popularmente; outros em clínicas clandestinas, onde há condições mínimas de higiene e profissionais não qualificados. “Em todos, as mulheres tinham pouca ou nenhuma informação sobre o que ia acontecer e sobre os riscos que estavam correndo. Elas ficaram expostas a um perigo iminente de complicações graves e até de morte”, diz a pesquisadora.

Entre as razões para a interrupção da gestação, a mais apontada foi a situação econômica. A maior parte das entrevistadas não trabalhava quando engravidaram pela primeira vez. Outro fator é a instabilidade no relacionamento. Entre as 44 gestações, 19 aconteceram quando as mulheres moravam com o parceiro. Destas, seis foram interrompidas. Das outras 25, que ocorreram quando o casal estava separado, 16 terminaram em aborto. A opção pelo procedimento, em geral, foi compartilhada com amigos e familiares. De todas as entrevistadas, apenas uma não falou com ninguém sobre a gravidez. Em três dos casos, elas também não podiam contar com o parceiro devido à instabilidade do relacionamento e ao fato de ele rejeitar a gravidez.

A média de idade da primeira relação sexual dessas mulheres é 14 anos e a maioria não utilizou nenhum tipo de anticoncepcional. Uma em cada três entrevistadas disse desconhecer esses métodos. “Isso mostra a vulnerabilidade dessas mulheres em relação a uma gravidez indesejada e ao aborto, bem como a doenças sexualmente transmissíveis”, diz Simone.

Pesquisa realizada dois anos atrás pela ONG Ipas, em parceria com o Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), aponta que o risco de morte por aborto inseguro é 2,5 vezes maior entre as mulheres negras. O que evidencia as diferenças socioeconômicas, culturais e regionais diante da mesma prática ilegal. Mulheres com melhores condições financeiras, geralmente nos grandes centros urbanos, têm acesso a técnicas e clínicas de maior higiene e cuidado. Já as mais carentes, que são a maioria da população, recorrem a métodos mais perigosos, com pouca precaução, resultando em maior risco à saúde – e à própria vida.