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Trancado por dentro

Há 20 anos, a carreira de agente penitenciário era apenas mais um emprego dentro do serviço público. Hoje, é uma das vítimas mais frágeis do estado de abandono, cercada de inimigos por todos os lados

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A jornada imposta aos agentes penitenciários é de 12 horas por 36, o que implica passar boa parte do tempo “emparedado”, inviabilizando também a participação em atividades que exijam freqüência diária, como cursos

Coisas que fazem parte do cotidiano da maioria das pessoas, como dar um pulo no bar com os amigos, fazer compras no supermercado, ir a uma festa, para ele tornou-se motivo de tensão. Desde o início da onda de violência que tomou conta do estado de São Paulo, Luiz Antonio Ribeiro dos Santos, 43 anos, viu colegas de profissão serem mortos e feridos. Servidor do sistema penitenciário, Luiz, como os demais companheiros, tornou-se um alvo em potencial de organizações criminosas. E não pode mais levar uma vida normal.

Luiz começou a trabalhar aos 12 anos, no balcão de um armazém de sua cidade, a pequena Piquerobi – no extremo oeste do estado. Mais tarde, conseguiria emprego como desossador de frango em um frigorífico. Foi onde conheceu colegas que tinham prestado concurso público e conseguido emprego na Casa de Detenção, em São Paulo. Ficou animado. “No interior, poucos tinham oportunidade de subir na vida”, relembra.

Assim, em 1983 resolveu prestar concurso para guarda presidiário. No ano seguinte, estava trabalhando na capital, na Penitenciária do Estado. “O concurso exigia formação mínima de oitava série e tinha também teste de personalidade”, lembra. Uma vez convocado, o servidor já entrava em contato com a realidade carcerária, sem nenhum tipo de preparação anterior. “Depois de admitidos, tínhamos que fazer um curso de capacitação de 21 dias, mas já trabalhando com os detentos e com os funcionários mais antigos.”

Por conta disso, Luiz relata que seu primeiro contato dentro da penitenciária foi impactante. “Fiquei assustado. Parte dos sentenciados encarava o crime como verdadeira profissão. Já havia uma hierarquia conforme o delito praticado – assalto a banco, roubo de carros, batida de carteira…” No entanto, o agente assinala que naquela época, quando havia manifestações coletivas por parte dos detentos, eram focadas basicamente na questão da ampliação de direitos. “Eles pediam visita íntima, permissão para ouvir rádio ou para poder assistir à televisão.”

A estada de Luiz em São Paulo durou até 1987, quando conseguiu transferência para o presídio de Presidente Venceslau, na macro-região de Presidente Prudente, também conhecida como “pontão” de São Paulo. “A moradia e o custo de vida na cidade eram menores, era mais vantajoso ir pra lá”, justifica. Àquela altura, ele já sentia a situação da carceragem se deteriorar. “Foram construídas 22 unidades prisionais na gestão do (Orestes) Quércia (1987-1990), mas o governo do estado passou a não garantir mais condições para a manutenção das penitenciárias. Antes, forneciam material de higiene, cobertores, uniforme e ali já começou a faltar para todos os detentos.”

As novas unidades já não seguiam o modelo que o agente penitenciário conheceu quando ingressou no serviço público, com celas individuais. Os espaços passaram a ser compostos de células coletivas, com capacidade para até 12 detentos. “Mas nunca tinha menos de 30”, constata. “Até então, só os presos com pelo menos oito anos de condenação iam para as penitenciárias. Depois, com dois eles já vinham.” Esse aumento da população carcerária aconteceu sem que houvesse o correspondente no número de funcionários. Em 1987, segundo dados do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo, havia 15 mil servidores para 38 mil detentos. Hoje, são 23 mil funcionários para 140 mil presos.

Missão impossível


A jornada imposta aos agentes penitenciários é de 12 horas por 36, o que implica passar boa parte do tempo “emparedado”, inviabilizando também que a pessoa possa participar de atividades que exijam freqüência diária, como cursos universitários. A rotina massacrante leva o trabalhador ao encontro de distúrbios como síndrome do emparedamento (medo de freqüentar lugares abertos) e síndrome de perseguição. “Conheço pessoas que tiveram doenças sérias e comprometeram suas vidas”, comenta Luiz. “De alcoolismo, estresse e depressão a comportamentos agressivos. O lazer para a maioria é a cachaça.” Ele mesmo conta que teve a vida pessoal prejudicada pelo trabalho. “Tive problemas no meu primeiro casamento por conta disso. Quando me separei, em 1990, percebi que ia me prejudicar ainda mais se não tivesse outras atividades fora do trabalho.”

A partir dessa constatação, ele começou a participar de forma ativa do movimento negro, a freqüentar seu sindicato e pastorais da Igreja Católica. Fez durante três anos o curso de Sociologia na Universidade Paulista de Assis e completou a graduação em Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Presidente Venceslau. Aos poucos, passou a entender a realidade que cerca seu dia-a-dia. “O agente tem a mesma origem do detento, sai da favela, da periferia. Quem é de classe média alta não vai trabalhar com preso de jeito nenhum”, esclarece. “Quando entra nesse trabalho, a pessoa abdica da escola, não tem motivação para entender o processo da criminalidade.”

Aos 23 anos de profissão, Luiz não recomenda a ninguém que siga a carreira de agente penitenciário e diz que seu principal objetivo hoje é a sobrevivência. “Não projeto nada para amanhã, meu futuro é me proteger. Ajudar a organizar a categoria para modificar essa realidade. Isso tem vários tipos de inimigos.” O estado omisso é um deles.