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O eleitorado chega à maturidade

Não é só o prenúncio da corrida presidencial com mais novidades nas últimas décadas: as campanhas municipais mostram que, felizmente, as eleições estão virando rotina no país

Montagem com fotos da Agência Brasil

Na eleição municipal, o eleitor tem chance de colocar em pauta problemas que o afetam de perto, como saneamento, pavimentação, iluminação…

O Brasil comemora 20 anos desde que a nova Constituição selou o fim do ciclo autoritário e consolidou o caminho para a redemocratização do país. E é em clima de maioridade que vivem neste outubro as eleições municipais. Independentemente dos resultados das disputas, pesquisas de opinião mostram que o brasileiro está mais consciente do papel das eleições. Com isso, as campanhas investem menos na baixaria e nos ataques. “As eleições a cada dois anos estão fazendo com que a cultura política se aperfeiçoe”, diz o diretor-geral do Instituto Datafolha, Mauro Paulino. “O eleitor está mais seletivo e acompanhando mais de perto o desempenho dos candidatos”, complementa ele, que tem 26 anos de experiência na análise de pesquisas.

A socióloga Fátima Pacheco Jordão, outra analista experiente, lembra que as atuais propagandas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pelo voto consciente são uma boa pista para entender o que está se passando com o eleitor brasileiro. “Todas as pesquisas apontam nessa direção, as pessoas têm consciência de que errar o voto é perder quatro anos”, afirma ela. “O sentimento maior do eleitor é o de querer acertar, tendo a consciência de que o voto, de fato, vai se refletir no futuro da cidade.”

As eleições municipais privilegiam debates locais, e as pesquisas identificam temas recorrentes. Violência e saúde são os mais citados; o trânsito é um assunto emergente. “São temas que fazem parte do dia-a-dia ao colocar em pauta os problemas mais imediatos da população”, diz Paulino. “Estas eleições são muito favoráveis para o eleitor. Elas estão colocadas num plano mais pragmático”, emenda Fátima. “Obviamente, terão repercussões nacionais, mas a mídia insiste demais nesse ponto –isso é preocupação de uma elite, dos políticos, dos partidos. O eleitor não está pensando em 2010, ele vota para o momento, pensando na sua cidade.”

Indício desse grau diferente de relação com as eleições é a alta audiência dos horários eleitorais gratuitos na atual temporada, dizem os analistas. “Não era esperada tão alta audiência. E o mais interessante é que as pesquisas mostram os mais jovens especialmente interessados”, diz Fátima. Para ela, não só a mídia tradicional melhorou sensivelmente a cobertura jornalística como também a internet está gerando enorme mudança no comportamento do eleitor.

Partidos e trincheiras

Ao mesmo tempo em que se desdobram para atender à maior exigência dos eleitores, os partidos têm de se preparar para um jogo importante. O agrupamento das forças a partir de outubro pode ser definitivo, em muitos sentidos, para a grande disputa presidencial de 2010. O PT, já consolidado como um dos quatro grandes partidos em níveis federal e estadual, quer expandir-se nas prefeituras, onde domina o PMDB – pelo menos em quantidade (o partido elegeu 1.057 prefeitos em 2004, mas, com o troca-troca eleitoral hoje controla 1.300 municípios).

Partido mais votado em 2004, com 16,3 milhões de votos, ou 17% do eleitorado, no primeiro turno, o PT mais que dobrou sua representatividade naquelas eleições municipais, chegando a 411 prefeitos e 3.679 vereadores. Mesmo assim, amargou derrotas em redutos históricos, como Porto Alegre, ou em capitais onde disputava a reeleição, como São Paulo. Alguns petistas falam em alcançar uma marca próxima dos mil prefeitos, de um total de 5.564, em todo o país.

E se no passado o PT evitava coligações, hoje o partido se adapta a elas, marca do governo federal. “Em 2004, aumenta o número de coligações do PT, e estas se tornam menos criteriosas no sentido de buscar uma coerência ideológica entre seus parceiros”, diz o cientista político Carlos Machado, doutorando pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de estudo sobre as alianças do partido. “O principal critério foi a realização de coligações com aliados de sua base no governo federal, da qual participam vários partidos que antes praticamente não se apresentavam entre seus aliados, como PTB, PP e PL.”

O cimento das coligações do PT é Lula, que é disputado a tapa como cabo eleitoral. As contas de outubro vão dizer se seu partido levou vantagem ou se os aliados é que lucraram ao associar-se à imagem dele. Para colar seus candidatos em Lula, o PT oferece um arsenal. O site do partido na internet disponibilizou dados da atual gestão para divulgação nas campanhas e gravações de Lula e ministros de Estado em apoio ao partido.

O movimento tem mão dupla: ao mesmo tempo em que se cola aos candidatos o alto índice de aprovação de Lula, usam-se as eleições municipais para espalhar pelo Brasil os feitos do governo federal, com vistas a 2010. “Trabalhamos com a idéia de privilegiar a visão de esquerda do PT”, afirma o presidente nacional do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP).

Enquanto o PT “se vira nos 30” com os aliados, DEM (ex-PFL) e PSDB tentam salvar o casamento, iniciado nos tempos de Fernando Henrique. E não é só em São Paulo, onde a aliança terá de curar as seqüelas da disputa entre Geraldo Alckmin (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM). A concorrência aconteceu também em Salvador, Porto Alegre e Rio de Janeiro – onde os tucanos apoiaram Fernando Gabeira (PV) contra a democrata Solange Amaral.

Saulo Queiroz, da direção nacional do DEM, diz que os confrontos não trazem risco à unidade em 2010: “Existe um espectro de oposição (ao governo federal) muito claro, com a coligação de PSDB, DEM e PPS. A probabilidade de não concretizá-la em 2010 é muito pequena, porque é um jogo de sobrevivência política. Hoje, numa campanha de nível nacional, é indispensável estar juntos para ganhar”.

Queiroz aposta que o PT lançará possível “candidato sem intensidade eleitoral”, confiante na herança da popularidade de Lula. “Nós não podemos ficar preocupados com isso. Vamos enfrentar a guerra independentemente do candidato.” O presidente do PSDB, senador Sérgio Guerra (CE), assinala as características “especiais” das eleições municipais: “As coligações mais flexíveis, com vários partidos, têm muita importância nesse cenário das alianças locais. Precisamos respeitar as peculiaridades regionais”.

Fabio Pozzebom/ABrTadeu Felipelli
O vice-líder do PMDB na Câmara, Tadeu Felipelli: “É muito provável que estejamos começando uma caminhada que una PT e PMDB em 2010”

Suingue eleitoral

Mas as “peculiaridades regionais” devem ter limites, segundo o próprio presidente do PSDB. Questionado sobre a realidade aparentemente contraditória das alianças de tucanos e petistas, Guerra fala sobre reforma política: “Vamos discutir ainda esse assunto. Não há uma posição do PSDB sobre isso. Eu sou a favor da radicalização da fidelidade partidária. Em algum momento ela tem de ser extrema”.

Uma das apostas presidenciais para 2010, o governador mineiro Aécio Neves (PSDB) testa outro discurso. O de que, “acima das divergências políticas e partidárias está o interesse do povo”, como anunciava texto de campanha do “candidato da aliança”, Márcio Lacerda (PSB), em Belo Horizonte. Em sua página oficial na internet, Lacerda foi apresentado como homem de Lula, Aécio e do prefeito da capital, Fernando Pimentel (PT).

Berzoini admite que a novidade pode influir em 2010: “Influência tem, porque relações se constroem nessas alianças e coligações, mas vamos observar a dinâmica eleitoral, porque nada é mecânico e absoluto”. Fora dos gravadores, petistas mineiros criticaram a idéia. “É a única cidade em que o partido tem a prefeitura, tem aprovação e apóia um candidato ligado a seu principal adversário nacional”, afirma um mineiro que trabalha no PT nacional. O petista vê ambições pessoais de Pimentel no acordo. “O mais provável é que Pimentel vá para o PSB disputar o governo com apoio de Aécio, contra Patrus Ananias”, afirma, referindo-se ao atual ministro do Desenvolvimento Social.

O cientista político Carlos Machado destaca que, apesar de coligações entre PT e PSDB já terem ocorrido, o caso de Belo Horizonte foi uma novidade. “Coligações entre PT e PSDB, em 2000, houve 454 e, em 2004, 934. A maior se deu em cidades com menos de 10 mil eleitores. PT e PSDB nunca haviam se coligado em cidades com mais do que 500 mil eleitores.”

PT e PMDB

O PT aumentou o número de coligações com o PMDB, partido com maior número de prefeitos no país e maior bancada na Câmara e no Senado. Mas o presidente do PT afirma que não há uma estratégia de aproximação visando a 2010. “O PMDB é forte no país todo, e todos os partidos da base governista também fazem parte das coligações”, afirma.

“O alto número de coligações com o PMDB se deve simplesmente ao tamanho desse partido, que é aquele com maior número de participações em eleições para prefeito no Brasil. De fato, todos os principais partidos brasileiros têm no PMDB a legenda com a qual fazem o maior número de alianças dentro da esfera municipal”, concorda o cientista político Carlos Machado.

O vice-líder do PMDB na Câmara, Tadeu Felipelli (DF), vê uma lógica: “É muito provável que estejamos começando uma caminhada que una PT e PMDB em 2010”. Contra isso, não teme nem as coligações que não deram certo, como no Rio de Janeiro – onde o peemedebista Eduardo Paes e o petista Alessandro Molon não fizeram coligação – e em São Paulo – onde o presidente estadual do PMDB, Orestes Quércia, apoiou Kassab contra Marta Suplicy no primeiro turno. “Lógico que haverá disputas estaduais. Mas elas não serão impermeáveis à aliança nacional. O embate principal de 2010 é que vai estruturar todas as outras disputas”, vislumbra Felipelli.

A possibilidade de uma aliança com o PT é sinal de uma mudança de atitude do partido, segundo ele: “Nós sempre fomos criticados por ser um partido muito dividido. Mas todos os grandes partidos têm suas divisões: PT, PSDB e DEM. Agora o PMDB tem mostrado que, apesar de ter suas divisões, pode votar de forma coerente e ser o principal elemento de sustentação do governo”.

Para as eleições deste ano, a principal estratégia é clara, na visão de Felipelli “a luta é continuar sendo o partido com o maior número de prefeituras e vereadores do Brasil. Essa permeabilidade garante ao PMDB o status de maior partido do país e se reproduz na eleição para deputados e senadores no Congresso”. Apesar do objetivo de conquistar o maior número de prefeituras, a do Rio de Janeiro, segundo maior colégio eleitoral do país, foi prioritária. “E não só para o PMDB, não é? Por que será que o Lula tem ido tanto para lá?”

Para Mauro Paulino, do Datafolha, a grande dúvida para 2010 será sobre a capacidade de Lula de transferir votos. “O candidato dele não será, certamente, alguém com o mesmo carisma, o poder de comunicação que ele tem com os mais pobres, então, vai depender também do grau de envolvimento que ele terá com a campanha dessa pessoa”, diz o analista. “Mantida a aceitação atual de Lula pelos pobres, que têm com o governo dele as políticas sociais, e pelas elites, que têm a manutenção das regras de mercado, o candidato de Lula é, de cara, o favorito”, emenda a socióloga Fátima Pacheco Jordão.

Certeza mesmo, para o diretor do Datafolha, é que o país vive hoje outro momento em relação às décadas anteriores: “Pelo quadro dos possíveis candidatos para 2010 já se vê que não há mais, hoje, espaço para um Collor, por exemplo. O eleitor mudou, está mais exigente”, acredita. “O raciocínio tradicional da mídia, sobre apoios e transferências de voto, expressa uma visão muito conceitual do eleitor. Ele é uma pessoa real, que tem problemas reais, quando anda na rua, pega um ônibus, vai ao posto de saúde. E está cada vez fazendo escolhas mais racionais”, completa Fátima.