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O Brasil dos Ronaldos

Mesmo fora de forma e acima do peso, eles não abrem mão de correr atrás da bola e da diversão para aliviar o estresse. Especialistas alertam sobre os riscos para o esportista eventual que não prepara o seu corpo

augusto coelho

Peladeiros de Brasília: diversão perigosa

Já passava das três e meia da tarde e os quatro homens em trajes de futebol esperam sob o sol suave de outono diante do campo de futebol soçaite na quadra 904 Sul, em Brasília. Eles costumam jogar no Iate Clube, ocupado pela festa junina, mas a pelada de sábado é sagrada e precisavam de uma alternativa. Cada um veste a camisa de um time e o jeito de distinguir as equipes será a cor dos coletes que logo alguém haverá de trazer. Os peladeiros chegam aos poucos. Finalmente foi atingido o quorum.

Ops, passou, já são 16… Tudo bem. O importante é competir. Com a chegada de reforços, os times já podem ter nove jogadores e se dar ao luxo de jogar com sete de cada lado – como pede a regra – e ainda ter dois suplentes, não para uma possível mudança tática, mas para revezar o fôlego. Falta o responsável pelos coletes, mas a bola estando ali, dá-se um jeito: o time da direita tira as camisas. Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo.

A brincadeira dessa turma de jornalistas de Brasília acontece há tanto tempo, quase duas décadas, que já incorporou profissionais de outras áreas e filhos dos atletas. Um dos organizadores, Jânio Lessa, brinca que a aceitação de médicos e fisioterapeutas foi oportuna, “só falta o reforço de um psiquiatra”. Luís Lima, o Lula, sofre quando precisa faltar, nem que seja para organizar o Trem do Forró de Recife, sua cidade de origem: “Prefiro jogar”. João Forni, com a camisa do Grêmio, confirma: “A pelada é sagrada”. Um dos sem-camisa, o diplomata José Renato, viveu um dilema quando estudava para o concurso do Instituto Rio Branco. Tinha exames no domingo, mas não conseguia faltar à pelada da véspera. “Preferia conviver com a ‘culpa’ de não ter estudado como deveria.” Ainda bem que passou.

As peladas de fim de semana fazem parte da vida de milhões de brasileiros e, cada vez mais, brasileiras. Algumas são mais organizadas, têm calendário e razão social, rendem associações e campeonatos. Mas a maioria é pura diversão, sem juiz ou bandeirinha, com atacantes e defensores se revezando até para defender o gol. E a diversão não se restringe ao futebol: vôlei, basquete e tênis também fazem parte dos remédios antiestresse.

Lívia Borges dos Santos joga de tudo desde pequena. No colégio e na faculdade tinha treinos intensivos para participar de campeonatos. Mas o fim da faculdade levou embora o tempo livre e ela ingressou no time dos atletas de fim de semana. “A gente combina durante a semana, via internet, e se encontra nas quadras do Ibirapuera para formar três ou quatro times de handebol ou futsal. Cada partida dura mais ou menos cinco minutos ou dois gols, quem ganhar fica na quadra”.

A administradora Luciana Stocco de Campos, que mora em Paulínia (SP) e trabalha em Campinas, também treinava intensamente para campeonatos de vôlei e tênis quando era estudante. Mas o trabalho tomou-lhe o tempo e sobrou o fim de semana, que ela faz questão de usar como válvula de escape. “O problema é que a gente adquire hábitos errados como comer além da conta, beber, fumar. Ganhei oito quilos em oito anos. Pode não ser muito, mas na hora de jogar a diferença aparece e o corpo sofre”, lamenta.

Andrea prado/melhor imagemluciana
Luciana usa o sábado e o domingo como válvula de escape

Brincadeira arriscada

Cardiologistas e ortopedistas alertam para os altos riscos dos exercícios eventuais porém intensos de pessoas sem preparo físico. Não há estatísticas confiáveis, até por falta de uma notificação, mas o médico responsável pelo setor de Cardiologia do Esporte do Instituto Dante Pazzanese e pelo check-up esportivo do Hospital do Coração, Nabil Gorayeb, conta que não é pequeno o número dos que encontram no esporte de fim de semana o gatilho para um enfarte. “Quem gosta de atividades esportivas tem de se preparar, conhecer o esporte e treinar”, afirma.

A “sorte” de quem exagera nos exercícios de fim de semana, segundo Gorayeb, é que o trauma ortopédico vem antes do cardiovascular e às vezes “salva a pessoa”. O professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Arnaldo Hernandez, chefe do núcleo de medicina do esporte do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, explica: “Se a pessoa faz um esforço grande depois de ficar cinco dias sem fazer exercícios, tolera um nível de sobrecarga muito menor. Há o risco de a recuperação de uma fadiga demorar mais de cinco dias e um novo esforço provocar uma soma de fadigas – gerando lesões por sobrecarga repetitiva que são as tendinopatias, ou doenças dos tendões”.

Outro risco são as lesões traumáticas agudas do esporte: torção de tornozelo, distensão ou ruptura muscular por falta de condicionamento específico. O jornalista e peladeiro de Brasília Policarpo Júnior sabe bem o que isso significa: “Torço constantemente o tornozelo por conta do despreparo físico”. O ortopedista Hernandez diz que ele precisa treinar o chamado “gesto esportivo”, com exercícios específicos para saltar, chutar, mudar de direção, bloquear e fazer fintas: “Sem isso, a musculatura não responde como deveria e abre caminho para a lesão”. Mas Policarpo não desiste da sagrada pelada que freqüenta há 15 anos. “A grande vantagem é o relaxamento mental que ela proporciona. O objetivo é brincar, brigar, xingar um ao outro e depois tomar uma cerveja para falar sobre os melhores momentos da partida.”

A goleira de futebol soçaite Lais Kerry, de 21 anos, treinou alguns anos intensivamente e parou por causa do trabalho. Como adora o esporte, joga nos fins de semana e percebe que tem mais dificuldade. Ela se machuca pouco: “É preciso jogar com proteções para a mão e as articulações, mas o máximo que acontece é ficar com alguma marca roxa ou uma torção de tornozelo. Já me contaram muitos casos de jogadores de fim de semana que tiveram ataques cardíacos no meio da partida, mas ainda me sinto segura”.

Recomendações que podem valer uma vida

Os médicos Arnaldo Hernandes e Nabil Gorayeb dizem que o risco para os mais jovens é muito menor. “Uma avaliação médica não torna ninguém imune, mas é fundamental para saber se existem fatores de risco”, explica o ortopedista, que indica, no mínimo, três dias de atividades físicas de preparação para o jogo de sábado ou domingo. “Durante pelo menos meia hora a pessoa deve caminhar e alongar e trabalhar sua força para ter um condicionamento mínimo e melhorar a qualidade de vida”, ensina.

A Sociedade Brasileira de Cardiologia também recomenda exercícios três vezes por semana. “O ideal é perder 1.500 calorias por semana. Uma caminhada leve, de uma hora a 4 km/h, queima 300 calorias. Repetindo a caminhada por cinco dias chega-se às 1.500 calorias por semana. Em 14 semanas a pessoa está condicionada.”

Difícil é encontrar tempo. Lívia Borges sobe as escadas do edifício onde trabalha e desce do ônibus uma parada antes para se exercitar. Mas da turma de peladeiros de Brasília, a maioria só faz, no máximo, um “preparo psicológico”. Um deles, Ivan Monteiro, 40 anos, pergunta: “Comecei aos 7 anos, em Paracatu (MG), fazendo escolinha de futebol. Joguei em todos os campeonatos da cidade. Vim para Brasília fazer faculdade e participei até da seleção universitária. Jogar bola faz parte da minha vida. Como posso parar?”.