comportamento

Mais açúcar, mais afeto

Algumas acham que importante não é o gênero, mas a pessoa. Outras simplesmente não encontraram a felicidade nos homens. Mais que sexualidade, mulheres que amam mulheres são movidas pela busca da afetividade

Paulo Pepe

Roberta e Andreia: “É difícil explicar, mas é completo. Foi emocionante”

Há mulheres que amam outras mulheres, andam de saia e têm unhas pintadas, fazem academia, trabalham, cuidam de casa, criam filhos. Descobriram que, como mulher, é possível estar com outra igual. Numa sociedade em que aceitar o diferente é um desafio constante, a atitude traz conflitos, questionamentos, crises. Mas também produz histórias interessantes.

A estudante de Comunicação Vivian Casoy, de 23 anos, considera-se cosmopolita. “Adoro idiomas, música de todos os tipos, viajar, transar.” Aos 17, teve sua primeira experiência sexual. Com o namorado. Pouco tempo depois veio a curiosidade, outra característica marcante em sua personalidade. “Pintou um clima” com sua melhor amiga, e logo na festa do namorado dela. “Foi estranho”, admite. Mas a partir daí passou a lidar com uma nova forma de orientação sexual. Já contou para a família sobre sua bissexualidade e, garante, sem pânico nem drama. Vivian não vai a uma balada premeditando se vai ficar com homem ou com mulher. O que importa, diz, é o que rola no momento. “Não vejo diferença quando me interesso por alguém. É a pessoa, não o sexo, que me atrai”, afirma. Perguntada sobre como reagiria se se apaixonasse por uma mulher, Vivian ri: “Seria a mesma coisa… Não consigo ver problema nenhum”.

A situação não é incomum. Mulheres que começam a experimentar a relação com mulheres acreditam que se apaixonam pela pessoa, e não pelo sexo dela. Numa tentativa de não se enquadrar, não se sentir pertencente a um gueto. Para a psicóloga Lívia Monteiro Elias, isso reflete o medo de se colocar em um lugar mais frágil, ou seja, o mundo gay, vulnerável a julgamentos, preconceitos e condenações: “É uma situação difícil para quem sempre viveu uma relação aceita e institucionalizada. É como se, de repente, a pessoa perdesse a referência por estar vivendo algo novo”.

Nem é difícil encontrar exemplos. Não que todos aceitem abertamente a relação homossexual. Mas é típico da cultura se apropriar do que não consegue negar. Então, hoje tem lésbica em filmes, em seriados de TV, até em novelas. A reportagem ouviu vários relatos de mulheres que namoravam homens e passaram a namorar mulheres. Algumas fizeram apenas uma tentativa e voltaram para a praia conhecida. Outras até hoje navegam novos mares. Muitas têm filhos, tinham casamentos aparentemente estáveis e nem sequer conviviam com o mundo gay. Todas “normais”. Exatamente como as pessoas que a gente vê na rua, no trabalho, em casa: simplesmente, mulheres.

Coisas de casal

Até bem pouco tempo atrás, o termo empregado para definir a relação entre pessoas do mesmo sexo era “homossexualismo”, um “ismo” por si só carregado de conotação negativa. Em 1973 a Associação de Psiquiatria Norte-Americana adotou a expressão “homossexualidade”, como forma de definir uma orientação sexual, não uma anomalia que precisaria de tratamento ou cura. Mulheres que tinham essa orientação precisaram ir tateando, buscando seus caminhos.

De acordo com a terapeuta Sylvia Faria Marzano, do Instituto Brasileiro Interdisciplinar de Sexologia e Medicina Psicossomática, de São Caetano do Sul, no ABC paulista, a imagem masculinizada associada a elas pode vir da tentativa de formar um núcleo familiar. “Elas queriam criar uma família sob a concepção clara de uma figura masculina e outra feminina. Hoje isso já não é necessário. Embora ainda exista preconceito, as lésbicas perceberam que não precisam mais seguir papéis e, sendo duas mulheres, podem, sim, formar um casal”, afirma a terapeuta.

O preconceito, de fato, ainda fala alto. Tatiana, por exemplo, pede para utilizar pseudônimos para contar sua história. Ela era casada com Marcelo, executivo de uma multinacional, e morava nos Estados Unidos. Tinha largado no Brasil a profissão de dentista e a melhor amiga, Fernanda, com quem ela e o marido conviveram desde a adolescência. Aos 30 anos e com uma vida confortável, tudo parecia estar no devido lugar, menos o coração. A amiga, também casada e com uma filha, passou a visitar o casal com freqüência. A paixão entre as duas virou um romance secreto por sete anos. Fernanda fez do vôo para a América do Norte uma ponte aérea. Sempre achava uma desculpa para visitar a amiga, especialmente quando esta ficou grávida. Tatiana, por sua vez, não conseguia mais disfarçar a ansiedade.

“Era horrível! Eu me sentia péssima por trair uma pessoa que me amava e jurava que nosso casamento seria para sempre. Mas a falta que eu sentia da Fernanda doía. Não conseguíamos evitar. Trocávamos longas cartas de amor, escritas à mão.” Quando nasceu a filha do casal, batizada pela madrinha Fernanda, Marcelo andava desconfiado. Até que Tatiana lhe contou tudo. Detalhadamente. “Ele deu um murro na porta, berrou, mas readquiriu o controle. Sugeriu que poderia ser o homem certo para mim e para ela.”

Mais que sexo

A terapeuta Sylvia explica que muitos homens têm essa fantasia, mas, alerta, o discurso é comum enquanto o homem está no comando; quando se sente traído, a história é outra. “Vêm a insegurança, o ciúme, a incapacidade de lidar com o novo.” Foi o que aconteceu. O trio tentou encarar uma relação aberta, mas veio insegurança de todos os lados. Casamento desfeito e de volta ao Brasil, Tatiana diz ter assumido mais que uma nova orientação sexual: “Surtei!” O romance com Fernanda não resistiu à curiosidade sobre o novo mundo descoberto. “Quis ficar solteira, experimentar o novo lado descoberto. Parti para novas experiências, namorei outras mulheres.” As duas ainda convivem, “aos trancos e barrancos”. Fernanda nunca ficou com outra pessoa. Diz que Tatiana será a única. “Agora, faz dois anos que estamos nessa história. Começando e terminando. Não posso garantir que seja a última vez”, entrega-se a nova Tatiana, professora de ioga, cuja filha, de 5 anos, tem o mesmo nome da madrinha, Fernanda.

A psicóloga Lívia Monteiro Elias atende em seu consultório, na zona oeste de São Paulo, várias mulheres em crise com sua identidade sexual. Insatisfeitas com os parceiros e sem um canal de comunicação franco, acabam elegendo um novo sujeito – muitas vezes do mesmo sexo – para amar. “Para as mulheres, a sexualidade está intimamente ligada à afetividade”, diz. Muitos casos ocorrem entre amigas. A intimidade leva à cumplicidade, à admiração, a outro olhar… E a outros sentimentos, como desejo e amor. Não necessariamente nessa ordem. Para Sylvia Marzano, que também é urologista e atende homens em pânico com “o que fazer para satisfazer minha parceira”, a mulher busca em outra o que não encontra no homem. “Busca mais do que sexo: quer estar literalmente junto com alguém.” Isso explicaria, os “casamentos” supostamente mais estáveis entre mulheres, em que, de acordo com a estudiosa, dificilmente acontece uma traição.

Roberta Reis tinha um namorado, um trabalho como coordenadora do laboratório de uma farmácia de manipulação e uma vaga para preencher em sua pequena equipe. Andreia de Oliveira tinha uma namorada, estudava enfermagem e buscava emprego. E assim seus caminhos se cruzaram. Passaram a compartilhar a rotina e a ficar juntas. No início Andreia, aos 17 anos, não teve coragem de assumir sua sexualidade. Teve medo de ser julgada e que isso interferisse no trabalho recém-conquistado. Mas pensamentos pouco ortodoxos já passeavam pela cabeça de Roberta, então com 23 anos, que se surpreendia pensando “muito” na jovem auxiliar. A relação com seu namorado não andava bem.

Esconder ou não

Resolveu arriscar. Um dia, na hora do café, lascou um beijo na menina. Daí até as verdades começarem a sair do armário foram duas semanas de jogos de sedução e carícias. A primeira transa foi um desafio para ambas. De um lado, a mais jovem, que já tivera duas namoradas e era assumida em casa e com amigos: “Ficava insegura porque ela é mais velha, já tinha transado com outros homens e podia não gostar”. De outro, a mais velha, sem nenhuma experiência com mulher: “Ficava imaginando como seria, o que eu deveria fazer”.

E…? Elas caem na risada e Roberta conta: “A primeira vez foi no Carnaval, na casa da minha mãe, no interior de Minas Gerais. É difícil explicar, mas é completo. Naturalmente você descobre o que sua parceira quer e o que você quer. Foi emocionante”. Roberta resolveu assumir, contou para o ex-namorado, depois para a família. A sensação foi de alívio: “Depois de contar em casa tudo é mais fácil. Minha mãe entendeu numa boa”. Ingenuamente, nem fizeram questão de esconder a relação no trabalho. Resultado: Andreia perdeu o emprego e a namorada demitiu-se em solidariedade. Poderiam ter recorrido à Justiça por discriminação sexual. Mas não quiseram. Hoje, trabalham em locais diferentes e, por segurança, resolveram manter o assunto da porta do trabalho para fora. Estão juntas há dois anos.

A homossexualidade na história do homem
Na Grécia Antiga, nos campos de batalha, era comum o homem mais velho ter um companheiro jovem. Quando a guerra acabava, o mais velho voltava para sua cidade e se casava com uma mulher. No século 7 a.C., a poeta Safo, desiludida com os homens, reúne na Ilha de Lesbos uma comunidade só de mulheres. Unidas pela música, pela poesia e pelo culto a Afrodite, Deusa do Amor, tornam-se guerreiras, mas acabam dizimadas pelos gregos.
No Império Romano, os senhores poderiam ter seus rapazes preferidos, mas só eram tolerados quando ativos. O imperador Constantino (século 4 d.C.) punia homossexuais com a morte. A Idade Média (entre os séculos 5 e 15) foi o inferno dos gays. O cristianismo vê “sujeira” na relação entre homossexuais, eram perseguidos e queimados. O Renascimento (entre os séculos 15 e 16) foi menos rude. Luís XVI, que se casou com Maria Antonieta aos 16 anos e virou rei da França aos 20 (no século 18), era liberal e tinha um irmão gay.
No século passado, cerca de 100 mil homossexuais foram arrastados a campos de concentração pelos nazistas. Em dezembro de 1948 as Nações Unidas assinam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nas décadas seguintes, ebulições políticas, culturais e a revolução sexual dariam dimensão aos clamores contra as discriminações – por gênero, raça, orientação sexual e religiosa. Nos 70, movimentos que discutem sexualidade se organizam politicamente.
Hoje incorporada aos grandes temas sociais, a liberdade de opção sexual pauta até as relações entre capital e trabalho. Sindicatos a incluem na discussão de acordos coletivos. Algumas empresas admitem que funcionário ou funcionária tenham parceiro ou parceira como dependente do plano de saúde, por exemplo.