Fórum Social Mundial

A redescoberta de um continente

Mais que fazer com que o movimento por outro mundo possível fincasse os pés na África, o Fórum Social Mundial revelou experiências de luta pela vida ainda desdenhadas pelo mundo desenvolvido

Juliana Di Thomazzo

Os cooperativados explicam aos visitantes que, se no passado lutaram contra uma colonização sangrenta, hoje enfrentam os corruptos das grandes empresas e do governo

Eram duas dezenas de suecos, a maioria com menos de 25 anos. Tinham chegado de viagem naquele dia. Ainda no aeroporto foram pegos por dois microônibus contratados pela jovem Winnie. Preocupada, ela dizia: “Tem de dar tudo certo, gente, tem de dar tudo certo”. Winnie mora na Suécia. Está lá há pouco mais de dois anos. Ficou responsável por chegar antes para organizar a recepção aos visitantes que viriam de seu país pela primeira vez. Sua missão era fazer com que pudessem, antes do início do Fórum Social Mundial, conhecer um pouco melhor o Quênia e sua realidade. Ter contato com pessoas de comunidades que estivessem desafiando seus dramas e problemas sociais e econômicos com luta e criatividade.

Ela programou a visita do grupo à Katarga Farmers Cooperative Society e ao Kenya Network of Women with Aids (Kenwa) − duas entidades bastante distintas. A primeira, uma cooperativa agrícola a uma hora e meia de carro do centro de Nairóbi. A segunda, de prestação de apoio clínico e psicológico a mulheres com Aids e também a órfãos de ex-atendidas pelo programa.

Winnie é filha de militante político. Seu pai lutou contra a ditadura de Daniel arap Moi, que assumiu o cargo pouco depois da morte de Mzee Kenyatta, o primeiro presidente queniano pós-independência da Inglaterra, em 1963. Kenyatta governou até 1978. E Moi, de 1978 a 2002. Mesmo com 44 anos de independência, o Quênia está ainda no seu terceiro presidente. O atual, Mwai Kibaki, ganhou as eleições como candidato de oposição, mas foi um dos vice-presidentes da época de Moi.

No trajeto entre o centro de Nairóbi e a cooperativa agrícola, Winnie conta um pouco de sua história familiar e também explica sua visão a respeito do país que se encontra em diáspora, mas para o qual gostaria de voltar. “Também por isso, tudo precisa dar certo nesta visita, porque os suecos são muito organizados, e quero com isso me credenciar para, ao voltar, poder trabalhar com o apoio de deles, de uma entidade de lá”, diz.

Winnie é assistente social. Ela explica que no Quênia, país da região subsaariana da África, com 30 milhões de habitantes e 6,5% deles com Aids, é muito difícil construir projetos que não contem com cooperação internacional, mas mesmo assim há gente batalhando para inverter a situação.

Café solidário

Olhos desconfiados, alguns dos suecos mais jovens pareciam não entender por que alguém de tão longe, da Europa, poderia ser responsável pela miséria daquele rincão do Quênia. Mas o agricultor septuagenário, com fala dura, insistia que, se antes eram os ingleses que lhes haviam imposto uma colonização sangrenta e dura, hoje ainda tinham de lutar contra grandes empresas e os corruptos do seu próprio país.

A principal cultura produzida na Katarga Farmers Cooperative Society, cujos fundamentos são próximos aos das cooperativas brasileiras que efetivamente propõem uma lógica de economia solidária, é o café, mas também se cultivam feijão, abacate e batata. “Temos de vender para as empresas por preços muito baixos, pois é no processo de industrialização que acrescentam mais valor”, começa a explicar. Até este ponto, parece que tudo é igual ao que acontece em todas as partes do mundo. O agricultor, que corre todos os riscos, acaba tendo de vender sua safra a atravessadores, os quais comercializam o produto in natura nos grandes centros ou nas empresas de beneficiamento, que depois de industrializar a mercadoria a exportam ou vendem no mercado local com grandes lucros. Mas há alguns pontos distintos no processo queniano.

Segundo os agricultores da Katarga, o maior comprador dos atravessadores é o governo. E eles já fizeram várias propostas para vender diretamente a produção, a preços mais baixos. Ganhariam os dois lados, já que o Estado pagaria menos e eles receberiam mais. Mas a resposta que obtêm é que isso seria contra a dita cuja lei do mercado e que os agricultores têm de se entender com as empresas que atuam na sua região. Eles reclamam que há corrupção e que os negócios com as empresas envolvem propinas.

Entre os cooperados presentes à reunião com os suecos, apenas um falava inglês. Todos os outros contavam seus causos e lutas em suaíli, um dos idiomas locais que ultrapassa as fronteiras do Quênia, falado também em Uganda e Moçambique.

A comunidade que não falava a língua do comércio global, porém, parece ter aprendido bem a dinâmica do sistema. Quando uma sueca lhes perguntou se tinham interesse em praticar o comércio justo, porque eles conheciam ONGs que atuam nesse setor, um deles, ao ouvir a tradução, levantou-se e respondeu: “Podemos pensar, mas desde que não queiram nos dominar e fazer de conta que o nosso produto é deles”. O único cooperado que falava inglês explicou melhor: “É que já tivemos problemas com ONGs que vieram aqui com propostas de nos pagar mais e depois queriam colocar o selo delas, para ganhar prestígio, e ainda faziam a gente usar fertilizante e agrotóxico”.

À pergunta da reportagem de como eles pretendem, então, enfrentar tudo isso, a resposta não deixa dúvidas da compreensão política que atingiram: “Ampliando e fortalecendo cada vez mais nossa cooperativa”.

Juliana Di Thomazzocooperativa
A principal cultura produzida na Katarga é o café, mas também se cultivam feijão, abacate e batata. Tudo é vendido a atravessadores. Apesar das tentativas, a cooperativa não conseguiu convencer o governo a comprar a produção diretamente

Um novo movimento

Entre os adultos infectados pelo HIV na África Subsaariana, 57% são mulheres. No Quênia, não é diferente. Mas, se por um lado a Aids está demolindo o continente, por outro está construindo uma nova geração de lutadores sociais. Essa militância que hoje se ergue no “pior dos mundos” pode vir a construir o que no Fórum Social Mundial se convencionou chamar de “outro mundo possível”.

Não se trata de mais uma frase de efeito. Os movimentos sociais africanos também foram de algum jeito “colonizados” por entidades dos países do sul da Europa. Entre outras coisas, como são as donas do caixa, elas impõem suas formas de organização. Isso impede a formulação de alternativas mais adequadas ao processo africano.

Na luta contra a Aids, porém, surgiram organizações independentes, formadas a partir de laços de solidariedade, que perceberam que não bastava ficar pedindo socorro para “gente de fora” − era necessário ver como enfrentar o problema por dentro.

Nos debates do Fórum Social Mundial, por exemplo, surgiam reflexões como a de que o maior drama africano não seria a Aids, mas o pagamento da dívida. Em 2006, 22% do orçamento do Quênia foi destinado à dívida, fatia maior do que a investida na educação e quatro vezes superior à gasta com a saúde. Calcula-se que o Quênia já tenha destinado 51 bilhões de dólares para juros de uma dívida externa, três vezes mais que o que tomou emprestado.

Como a Aids também tem atingido mais mulheres que homens, os grupos que atuam nessa área vêm ampliando em muito a consciência feminista. Hoje há muitas organizações de mulheres em diversos países africanos que combatem a Aids no dia-a-dia, mas trabalham o debate sobre os direitos femininos tanto do ponto de vista da formação nas comunidades mais carentes como do enfrentamento político. Nessas organizações há enfermeiras para tratar das doentes, mas também advogadas para exigir que as mulheres tenham seus direitos respeitados.

A luta pela vida

aidsA segunda visita coordenada por Winnie foi ao Kenya Network of Women with Aids (Kenwa). É um exemplo desse tipo de organização que vem enfrentando a Aids e, a partir dessa luta, está construindo novos caminhos.

Em 1993 cinco mulheres com HIV se juntaram e fundaram um projeto para ajudar aquelas que, como elas, não tinham apoio familiar para enfrentar a doença. O projeto seguiu, mas só em 1998 se tornou uma ONG. Hoje, em 2007, a Kenwa atende 4.000 mulheres e 1.028 crianças órfãs portadoras do vírus da Aids.

Rosemary Tollo, uma das responsáveis pelo escritório central, explica como funciona a entidade. A Kenwa tem oito casas espalhadas principalmente por Nairóbi. As mulheres atendidas recebem cuidados médicos básicos, ficando às vezes internadas nessas casas. Seus filhos ou os órfãos de ex-atendidas também contam com apoio, que vai desde acompanhamento clínico e psicológico até alimentar. Mulheres e crianças têm direito a cesta básica e, quando necessário, café-da-manhã e almoço. A Kenwa também se preocupa em atender pacientes que não têm apoio familiar em casa. Uma equipe formada por voluntários realiza atendimento domiciliar, com até duas visitas ao dia. Nelas, além dos cuidados com a higiene, acompanha-se o paciente nas duas principais refeições.

Mas o diferencial da entidade foi ter apostado na ousadia. Associado ao atendimento, a Kenwa criou um projeto de microcrédito para que as mulheres em melhores condições clínicas pudessem desenvolver alguma atividade econômica.

A Aids no Quênia ainda tem cara. Diferentemente do Brasil ou dos países que já conseguem oferecer tratamento mais próximo do adequado, na África o portador do HIV sofre o drama da deterioração física. E o atingido pelo vírus não consegue trabalho. O desemprego, aliás, é um mal que atinge muito mais gente que os 6,5% da Aids.

Os empréstimos oferecidos pela Kenwa para as mulheres do programa vão de 500 a 3.000 shillings (de 7 a 40 dólares). Parece pouco, mas com o dinheiro elas abrem um micronegócio. Ou compram a primeira leva dos ingredientes para fazer doces e salgados, ou um corte de tecido para produzir algumas peças para vender, ou ainda pequenos produtos para vender simplesmente.

Se a doença não avança, segundo Rosemary, em geral esses negócios se desenvolvem bem. “Às vezes a Aids as toca mais fortemente e o negócio acaba. Mas para a gente isso não é um problema, o que nos importa é a melhora da auto-estima. É resgatar a luta pela vida.”