Ponto de Vista

A monarquia como estorvo

O que incomoda o rei da Espanha é que as reações da Venezuela a um novo desembarque colonizador de Madri ecoam também no Equador, Peru, Bolívia – e têm o respeito do Brasil e da Argentina

Jon Nazca/REUTERS

Juan Carlos, rei da Espanha

Ao mandar que o presidente Hugo Chávez calasse a boca, o rei Juan Carlos prestou imenso serviço à causa da integração sul-americana. A grosseria escancarou a agressiva presença espanhola na economia do continente. Já antes – com a vitória dos espanhóis para a exploração de rodovias federais – o empresariado brasileiro protestara contra os subsídios que o governo de Madri oferece a quem queira comprar empresas ou licitar serviços públicos no exterior. Frente à arrogância de Juan Carlos, somaram-se aos protestos dos empresários latino-americanos as queixas de natureza política. Os espanhóis tratam os governantes do continente como se os quase 200 anos de independência da maioria das antigas colônias tivessem sido intervalo ilusório.

Durante séculos a política européia girava em torno de Espanha, França e Inglaterra. As famílias dinásticas desses três reinos casavam-se entre elas e intervinham, quase sem cerimônia, nos assuntos internos dos parentes. Essa convivência não impedia, no entanto, que chegassem à guerra. Não era de estranhar nas famílias reais o assassinato entre irmãos, o parricídio, o uxoricídio e até mesmo o matricídio.

Desde o início do século 19 a dinastia dos Borbón se dividiu ao meio, com a briga entre os irmãos Fernando VII e Carlos. Os fernandistas levaram a melhor, e Juan Carlos pertence a esse ramo. Mas os carlistas nunca desistiram do trono: em 1969, Carlos Maria de Borbón y Austria, Duque de Madri, pretendente de turno, foi compelido ao exílio por Franco, pouco antes de este decidir que, com sua própria morte, a monarquia seria restaurada. E designou o futuro rei, na pessoa de Juan Carlos, neto de Alfonso XIII, último monarca da Espanha, destronado em 1931 com a proclamação da República. Com isso Franco usurpava o trono de dom Juan, Conde de Barcelona, de quem não gostava.

Juan Carlos procedeu com discrição em questões políticas até 1981. Naquele ano, militares a ele muito próximos patrocinaram a tentativa de golpe contra o Parlamento, chefiada pelo tenente-coronel Tejero, da Guarda Civil. Na ocasião, Juan Carlos só se pronunciou para condenar o golpe quando toda a Espanha já se encontrava mobilizada nas ruas para a resistência.

A partir de então, o comportamento de Sua Majestade começou a trazer dúvidas. Em 2002, José Maria Aznar, o chefe de governo espanhol mais próximo de Juan Carlos, não teria dado ordens ao seu embaixador em Caracas para que apoiasse o golpe contra Chávez sem antes consultar o monarca. Sabe-se em Madri dos interesses de Juan Carlos nas empresas espanholas que operam na América do Sul.

Chávez não foi o único a denunciar, na recente reunião dos países ibero-americanos em Santiago, os processos de privatizações e a arrogância de Madri. Ele, no entanto, abriu caminho para a articulação da resistência ao novo desembarque colonial. Um empresário ibérico declarou ao jornal El País (de 27 de novembro) que a Espanha não tem como pressionar o venezuelano, que nada deve aos estrangeiros. “Ele paga em dinheiro tudo o que compra.” O que também os incomoda, e muito, é que Chávez faz escola. Na Cordilheira, saltando sobre a Colômbia – sob dissimulada ocupação norte-americana –, a palavra do mestiço ecoa no Equador, no Peru, na Bolívia. E os povos dos países maiores, como o Brasil e a Argentina, a respeitam.

Por outro lado, Juan Carlos se confronta com um movimento, já evidente, para a instauração do regime republicano e federalista na Espanha. Catalães, bascos, aragoneses, asturianos, galegos e andaluzes, sem falar nos intelectuais de Madri, se organizam em busca de uma república federativa. Fotos dos reis da Espanha foram recentemente queimadas em Girón. A monarquia pode ter sido importante para que a transição da ditadura de Franco para o Estado democrático se fizesse sem derramamento de sangue. Com a União Européia, a monarquia deixa de ser necessária para constituir um estorvo.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros desde 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 80. É colunista do Jornal do Brasil e articulista de diversas publicações