Além do consenso

Movimento sindical discute com empresários e governos o trabalho decente nas Américas e exige justiça social nas políticas de combate à crise

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) escolheu Santiago, no Chile, para realizar, em dezembro, sua 17ª Reunião Regional Americana. O encontro ocorre a cada quatro anos e reú­ne representantes de governos, trabalhadores e empresários para, conjuntamente, discutirem os mais variados temas relacionados ao mundo do trabalho e emprego no continente. A maioria dos debates se pautou pelos efeitos da crise internacional na América Latina.

“A crise chegou quando a região concluía um ciclo econômico positivo, o que a ajudou a suportar melhor os altos e baixos do mercado”, analisa o diretor-geral da OIT, Juan Somavia. “Mas também foram cruciais as medidas baseadas no investimento público, na manutenção dos postos de trabalho e dos salários e nas iniciativas de proteção social destinadas a diminuir o impacto da crise sobre as famílias.”

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) estima para a região uma média de crescimento em torno de 5% em 2010 – e isso apenas dois anos depois de a crise alastrar-se pelo mundo. Para o diretor-geral da OIT, porém, só o crescimento não basta para trazer desenvolvimento. “As economias podem estar indo melhor, mas, enquanto as pessoas não tiverem emprego e salário suficiente, a recuperação não será real nem sustentável.”

Entre 2002 e 2008, o número de pessoas em condições extremas de pobreza na região baixou de 97 milhões para 71 milhões e os pobres passaram a somar 180 milhões, em vez dos 221 milhões no início da década. Contudo, os dados se referem ao período imediatamente anterior à recessão. “Os avanços são limitados, e é provável que tenham ocorrido retrocessos por causa da crise”, avalia Somavia.

Para o movimento sindical, o caminho para seguir reduzindo as desigualdades é a implementação dos direitos já reconhecidos e consagrados, no papel, pelo consenso entre trabalhadores, empresários e governos no âmbito da OIT. Entre os principais problemas apontados durante a reunião, figurava justamente o descompasso entre a realidade do trabalho no continente e o conteúdo das convenções internacionais, sobretudo nos temas liberdade de associação sindical, negociação coletiva de contratos de trabalho e seguridade social.

De acordo com a Confederação Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras das Américas (CSA), a América Latina é a região mais perigosa do mundo para o exercício do sindicalismo. Colômbia, Honduras e Guatemala, onde nos primeiros dez dias de 2011 já se registrou o assassinato de um sindicalista, são os países mais mortíferos para a luta dos trabalhadores. No ano passado, o Panamá assistiu à morte de dez manifestantes que protestavam contra um projeto de lei que restringia a atuação dos sindicatos. O massacre de Bocas de Toro foi chancelado pelo governo do presidente Ricardo Martinelli e deixou ainda um saldo de 700 feridos e centenas de prisões. Assassinatos, ameaças, torturas, agressões e demissões abusivas são riscos inerentes ao exercício de alguma atividade sindical.

A OIT reconhece que a sindicalização e a negociação coletiva são instrumentos essenciais para avançar por uma via de desenvolvimento com equidade, mas não parece haver consenso sobre a questão na América Latina. Com poucas exceções, como Brasil, Argentina e Uruguai, os sindicatos de base nos demais países apenas podem ser organizados no âmbito das empresas, o que limita a capacidade de diálogo entre trabalhadores e patrões. “O modelo de organização sindical por empresa é débil, e queremos superá-lo”, diz Victor Báez Mosqueira, secretário-geral da CSA. “Muitas legislações nacionais, porém, não respeitam integralmente a Convenção 98 da OIT, que estabelece os direitos de sindicalização e negociação coletiva.”

Sustentável e decente

Os dados latino-americanos sobre saúde e segurança no trabalho também assumiram papel central, ainda mais porque a reunião foi realizada no Chile, onde recentemente 33 mineiros passaram mais de dois meses presos a 700 metros de profundidade.

“Neste continente existem 30 milhões de acidentes de trabalho ao ano, que resultam em 240 mil mortes”, pontuou o secretário-geral da CSA, lembrando que na localidade mexicana de Pasta de Conchos, em 2006, um acidente semelhante sepultou 65 mineiros sem que os poderes público ou privado se mobilizassem para o resgate.

De discussão em discussão, a 17ª Reunião Regional Americana deixou transparecer uma diferença crucial no pensamento de trabalhadores e empresários no que se refere ao reconhecimento – e cumprimento – dos direitos trabalhistas. E essa diferença se revela com mais clareza nos conceitos de “empresa sustentável” e “trabalho decente”.

Empresa sustentável nada mais é do que um negócio que dá lucro e, assim, se sustenta financeiramente dentro do sistema econômico. Já a noção de trabalho decente se pauta pela existência de empregos de qualidade, protegidos pela legislação e pelo sistema de seguridade social, em condições adequadas e ambientes saudáveis.

A OIT acredita que as ideias de empresa sustentável e trabalho decente são complementares, e portanto a melhor maneira de um empresário prosperar é respeitando os direitos de seus empregados. Os representantes dos trabalhadores afirmam ser impossível haver empresa sustentável sem trabalho decente. Os empresários fazem raciocínio inverso e argumentam que não pode haver trabalho decente sem empresa sustentável: primeiro o lucro, depois os direitos.

“A globalização econômica estabeleceu uma regra fundamental: a competitividade, que é a oportunidade de cada pessoa buscar no mercado internacional os produtos e serviços mais adequados a seus interesses”, argumenta Dagoberto Lima Godoy, representante dos empresários. “Daí surge a necessidade de criar entorno institucional e infraestrutura para que nossas empresas sejam competitivas e possam agregar valor. Só então terão condições de oferecer melhores salários aos trabalhadores.”

Numa época em que países desenvolvidos (Espanha e França, por exemplo) estão cortando direitos trabalhistas como forma de reagir à crise, o movimento sindical reunido em Santiago manifestou contrariedade à ideia de repetir nas Américas as medidas adotadas na Europa. Para os sindicalistas, os trabalhadores não são responsáveis pela recessão, originada no mercado financeiro.

Ao falar sobre a recuperação econômica na América Latina, o diretor-geral da OIT segue o mesmo raciocínio. “É um requisito indispensável que os empregos gerados sejam produtivos e de qualidade e as trabalhadoras e os trabalhadores possam ocupá-los em condições de liberdade, igualdade, segurança e dignidade humana”, defende Juan Somavia. “A promoção do trabalho decente é uma ferramenta insubstituível para o combate à pobreza.”

O resultado da reunião regional da OIT foi avaliado como positivo pelo sindicalismo das Américas. O documento final reafirmou a importância dos direitos à livre associação sindical e à negociação coletiva e reconheceu que as políticas de proteção social foram fundamentais para enfrentar os efeitos da crise.

Os empresários, por sua vez, fizeram constar entre as conclusões o compromisso conjunto pelo fomento à competitividade na economia e às empresas sustentáveis e o respeito à propriedade privada – a qual, segundo Dagoberto Lima Godoy, “está consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas muitas vezes sofre contestações e agressões na América Latina”.

“Depois de muitos conflitos, contradições e disputa com os empresários, conseguimos elaborar um documento que espelha nossas vontades”, avalia João Felício, secretário de Relações Internacionais da CUT. “Nas Américas há uma enorme exclusão do movimento sindical nos processos de negociação, e o documento expressa a necessidade de respeitar as convenções da OIT e estabelecer o diálogo social para fortalecer cada vez mais os sindicatos na região.”