Caldo negativo

Misture uma chuva de crédito, o impulso do consumo e publicidade a gosto. Adicione a inexperiência adolescente e uma pitada de falta de educação financeira em casa. Está pronto um legítimo jovem endividado

Tomaz: quando se sofre da “poli-hexa-tributação” da dívida, com taxas sobre taxas, fica difícil sair da bola de neve. (Fotos: Regina de Grammont)

Basta acompanhar os comerciais da TV. Perfume, relógio, notebook, TV de plasma ou LED, carro, tudo em infinitas parcelas, pedindo “consuma, consuma, consuma porque a vida é curta”. Crianças e adolescentes são a mira da vez das empresas quando planejam lançar um produto. Quanto antes fidelizarem, mais duradouro será o relacionamento. “Se trocar a marca do pão de todo dia já é tarefa difícil, imagine o tempo que uma pessoa leva para mudar de banco?”, pergunta Marcos Calliari, sócio da agência Namosca, especializada em apoiar as empresas a encontrar seu caminho até o público jovem.

Ok, todos só estão fazendo a sua parte: empresas fortalecem a imagem de seus produtos, os bancos oferecem crédito a quem dá os primeiros passos, a mídia estimula o consumo. Mas esses ingredientes, para um jovem com fraca educação financeira em casa, podem levar a uma equação perigosa: segundo pesquisa da Associação Comercial de São Paulo, a porcentagem de inadimplentes com menos de 20 anos duplicou de 4% em 2009 para 8% este ano. E não bastasse empenhar seus próprios recursos, os jovens podem levar a família junto.

Segundo pesquisa da Kantar Worldpanel, empresa global de pesquisas de consumo familiar, nos lares onde há adolescentes entre 12 e 19 anos gasta-se 5% a mais do que se ganha. Naquelas sem esses jovens, sobra 5%. A culpa é deles? Sim e não. “Somos em grande parte resultado da nossa educação”, opina a cientista política e especialista em Educação Financeira Cássia D’Aquino. A tarefa de criar consumidores conscientes, segundo Cássia, deve começar aos 3 anos da criança, e mais baseada em exemplos do que em cartilhas.

Em 2006, as empresas brasileiras gastaram R$ 39 bilhões em publicidade para esse público. A principal mídia foi a TV, observada pelas crianças durante cinco horas por dia. O Instituto Alana, que combate o consumismo infantil, desenvolveu um programa para esse fim. Investe esforços na tentativa de criar leis de proteção aos pequenos. “O jovem de hoje foi a criança que nasceu dentro de uma lógica louca de mercado. Até os 12 anos, está provado que elas não têm capacidade para lidar com mensagens persuasivas e crescem acreditando que terão, no consumo, um ingresso social”, descreve Laís Fontenelle Pereira, coordenadora de Educação e Pesquisa do Programa Criança e Consumo do Instituto Alana.

Consumo Leandro

Ela comenta que o último Dossiê Universo Jovem da MTV, pesquisa feita com o público da emissora, comprova a formacão de uma geração complicada. Despolitizados, alienados, perderam espaço público e se relacionam por meio das novas tecnologias – e redes sociais também convidam ao consumo. Além disso, são filhos de gerações que padeceram da falta de uma liberdade que hoje imprimem na educação de suas crianças. Essa liberdade, oferecida por convicção ou por culpa, muitas vezes atrapalha ao invés de ajudar. Os jovens de agora são filhos de casais que sempre trabalharam o dia inteiro.

“E estes, para compensar seu mal-estar infundado, tentam resolver a ausência oferecendo autonomia ou atendendo a todas as solicitações dos filhos, sem negociar nada em troca. Essa questão ainda nos diferencia de países ricos, onde a maioria das crianças tem seu papel dentro de casa, seja cortando grama no fim de semana, seja ajudando a tirar a mesa do jantar”, comenta a psicanalista e socióloga Nilda Jock. Outros fatores comportamentais entram na mistura. “É uma geração de pais que colocam seus filhos acima de si mesmos, especialmente nas classes média e alta. Já entre as classes populares os jovens enfrentam desde cedo mais barreiras. Precisam contribuir em casa, por exemplo.”

Uma tortura

A coordenadora de Marketing Bianca Anzelote de Souza vai ter de aprender rápido a lidar com seu dinheiro para que seu filho de 4 anos cresça com a educação financeira em dia. “Passei por dificuldades na infância e hoje tenho problemas em dizer ‘não’ para mim e também para ele”, conta. Até os 23 anos, pagando faculdade e ajudando em casa, Bianca não teve problemas. Aí arrumou um emprego com salário melhor. “Passei a comprar o que me dava na telha. Começaram a chegar as faturas, a dívida aumentava, me desesperei. Engravidei e passei a consumir para o bebê também.” Até conseguiu controlar a situação, mas há três anos, nova encrenca: empregada em uma empresa do segmento da moda, achou novo motivo para consumir. “Você precisa entrar num certo perfil para se enquadrar. Meu lado consumista voltou à tona… Basta sobrar um dinheirinho para vir à cabeça: ‘estou precisando tanto daquela coisinha ali…’ Foi uma tortura controlar o consumo, mas foi como consegui me manter longe das dívidas.”

Pertencer a essa ou aquela classe social também não dá atestado de imunidade ao gastador. É comum o deslumbramento com os primeiros salários levar o jovem a se embananar. Leandro Fernandes de Souza, aos 21 anos, possui quatro cartões e uma disponibilidade de crédito de quatro vezes seu salário. O auxiliar administrativo ganhou seu primeiro cartão aos 18 anos e, logo na primeira fatura, não fez o pagamento integral. “Não entendo muito bem sobre juros. Nunca economizei na hora de me divertir: cinema, restaurante, barzinho, passo tudo no cartão”, conta. A situação seguiu descontrolada e chegou no cheque especial.

“Quando recebi uma carta do Serasa vi que estava mesmo me atolando.” A situação aconteceu há dois anos. Desde então, com a dívida negociada, ele jura que ainda neste ano estará com tudo resolvido.

Ficha limpa

Consumo Bianca

O analista de projetos Lucas Flauzino, de 19 anos, trabalha desde os 14. Aos 16 entrou num novo emprego e ganhou limite automático no cheque especial equivalente a 120% do seu salário. Batata: gastou não sabe como nem onde. “A saída que achei foi usar o crédito pré-aprovado no banco para pagar a dívida do cheque especial. E então começar a pagar essa nova dívida com o banco”, conta. “É fácil quando você tem o nome limpo. Do contrário, você só se mantém na base do dinheiro vivo.”

A imensa oferta de crédito também encrencou Z.C.M. devido ao seu histórico de consumo desmedido, sempre contando com a facilidade das lojas. Filha de uma bancária no Rio de Janeiro, ela tentou, por anos, conseguir emprego em banco. “Eu mandava o currículo, mas não era chamada”, lembra a moça, hoje com 26 anos, que recentemente conseguiu “limpar” seu CPF, com ajuda da mãe. Ela não quer divulgar o nome pois acaba de ser contratada – e sabe que esse tipo de história não pega bem. “Pior do que não ter crédito no mercado é perdê-lo com as pessoas­.” Ela se refere à mãe, com quem a relação ficou estremecida. “Ela não consegue mais confiar em mim”, conta Z.

Os cartões de crédito atendem a faixas etárias cada vez mais baixas. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Cartão de Crédito e Serviços, o público jovem já representa 12% da clientela. No meio universitário­ a concorrência é feroz. “Na faculdade tem sempre ofertas de cartão, cheque especial”, conta Bruna Aparecida Dalla Valle Bonamini, estudante de Publicidade, Propaganda e Criação. A moça tem sorte: desde que se lembra como gente é carinhosamente bem orientada.

“Quando recebia mesada, meu pai me recompensava se guardasse uma parte. Se poupava R$ 20, ele colocava outros R$ 20 na poupança”, explica. Hoje estagiária numa agência, Bruna recebe o salário e já separa 15% para a caderneta. Dinheiro é um assunto sempre em pauta na casa. “Quando decidimos comprar um carro, por exemplo, vamos juntos escolher. Trocamos ideias, falamos sobre custo-benefício, as vantagens de parcelar ou comprar à vista. Nossos filhos aprenderam observando como meu marido e eu nos comportamos”, conta a mãe de Bruna, a professora Sandra.

“Eu mesma gosto de roupa de grife, só não me endividaria para ter uma”, garante Bruna, ciente de que tem um controle que muitos adolescentes não têm. “Eles se vestem de forma parecida e consomem tentando se equiparar. Eles precisam de ícones e status que asseguram o pertencimento ao grupo”, explica a psicanalista Nilda Jock. Quem consegue escapar dessa situação emocional complicada? “Os que vêm de boas estruturas familiares e não sofrem com essa insegurança.”

Tomaz de Almeida Sá, de 27 anos, conhece bem a influência familiar e conta que está prestes a se livrar de um longo histórico de dívidas de todos os tipos. O exemplo veio do pai que, segundo Tomaz, sabia se virar bem emprestando daqui e dali. “Essa coisa é meio hereditária. Para meu pai, fazer dívida nunca foi problema. Hoje a vida financeira dele é regrada, a minha nem tanto”, conta.

A roda viva começou quando Tomaz recebeu o adiantamento de uma herança. Comprou um apartamento em Belo Horizonte e o que sobrou foi para o banco. “Aí a instituição vê que você está com cacife e dá um crédito que você nem sonharia ter.” Na época, Tomaz estava investindo na ideia de fazer sua banda de música acontecer. Não aconteceu. “Comecei a sofrer da poli-hexa-tributação da dívida. São várias taxas em cima da mesma coisa. Você puxa de um lado, mas é um sistema do qual é quase impossível sair.” Tomaz foi salvo pelo boom imobiliário. Seu apartamento foi supervalorizado e, com a venda, ele está quitando dívidas e tentando começar a vida de novo. Até agora, não conseguiu limpar o seu nome no Serasa.

Engana-se quem imagina que essa perturbação seja privilégio de patricinhas e mauricinhos. “O impacto do consumo pode ser muito mais prejudicial em classes menos favorecidas, na qual os jovens sofrem por não ter acesso aos bens desejados. Acompanhamos um crescimento da violência relacionado à busca por produtos mais selecionados. Para citar um exemplo dramático, em pesquisas sobre exploração sexual constatamos que as meninas trocam sexo por bens de consumo”, explica Laís, do Instituto Alana.

A educação vem de casa, mas o que se faz contra todas as tentações do mundo? São várias as possibilidades: estender a educação financeira nas escolas, regulamentar a oferta de crédito, proteger minimamente as crianças da publicidade. Mas disciplina financeira começa em casa. Num momento em que as sociedades padecem de uma crise de valores, alguns precisam ser resgatados: amizade, ética, alegria, bem-estar­, coisas que o dinheiro não compra, como diz a propaganda de um cartão de crédito. Mas que uma sociedade demasiadamente consumista tampouco estimula. “Precisa haver um resgate dos limites, e quem os promove são os pais, dentro de casa”, encerra Nilda Jock.


Juros nas alturas: legal, mas imoral

A oferta de crédito ao consumidor foi um dos instrumentos financeiros que permitiu ao país superar a recente crise econômica mundial. Ou seja, não é a existência do crédito em si um bicho-papão. O problema é a voracidade das instituições financeiras, que devoram sem dó quem usa mais do que pode pagar. E faz isso não sem conhecimento do perfil do jovem brasileiro.

Pesquisa realizada pela Febraban para a produção de seu portal de educação financeira mostrou que “o jovem da classe média tem grande ímpeto de consumo, é mais descontrolado financeiramente e tem renda menor, fatores que levam ao endividamento”, diz Fábio Moraes, diretor de Educação Financeira da instituição.

“Cada banco tem sua política comercial. De fato, pode ter ocorrido exagero na oferta, mas uma das maiores preocupações dos bancos, no momento, é rever a política de crédito”, afirma. Esse esforço bem intencionado parece precário, já que ainda não se veem iniciativas concretas nesse sentido. Pelo menos não tão facilmente quanto um crédito automático pré-aprovado.

O cartão de crédito e o cheque especial têm funções e facilidades que podem ser o começo de um caminho sinistro para quem não percebe que o dinheiro existe, mas custa caro. Usar o limite do especial significa se expor a juros em torno de 160% ao ano. E se a opção for protelar a fatura do cartão, pode chegar a 500% ao ano. Dados do Banco Central mostram que o uso do cheque especial está caindo: é fonte de 34% dos empréstimos das famílias, ante 60% dez anos atrás. O cartão de crédito responde por um quarto das operações de empréstimo de pessoa física. O Brasil já tem mais de 136 milhões de unidades.

Mas não há sinais de uma regulamentação dos limites oferecidos ou da forma de abordagem sobre as pessoas – hoje é possível aumentar o limite de crédito pela internet ou por telefone. Em muitos casos, o limite pode ser automaticamente ultrapassado pelo cliente. E isso só aparecerá na fatura. Como afirmou recentemente à imprensa o advogado Odon Bezerra, presidente da OAB da Paraíba: “Isso pode ser até legal, mas é também imoral”.