Reparação e memória

Sem esquecer: ativistas, ex-presos e sindicalistas cobram justiça contra apoiadores da ditadura

Para participantes de seminário, falta avançar na responsabilização efetiva das empresas que colaboraram com o regime autoritário

Arquivo Nacional
Arquivo Nacional

São Paulo – Além de manter a mobilização para responsabilizar empresas que colaboraram com a ditadura, é preciso criar centros de memória para preservar a história daquele período do ponto de vista dos trabalhadores. Essas questões foram discutidas ontem (27), durante seminário realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). O caso da Volkswagen foi pioneiro, mas com ressalvas. Também foi realizado o ato simbólico de lançamento do Fórum por Verdade, Justiça e Reparação.

Ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a advogada Rosa Cardoso lembrou que todos os ramos do Direito preveem reparação sob a perspectiva da responsabilidade civil. “Não de uma pessoa física, mas jurídica, de uma empresa que foi cúmplice ou coautora de um ilícito durante a ditadura. articulados a crimes de lesa-humanidade ou grave violação de direitos, que são imprescritíveis”, observou.

Falta memória operária

O ativista José Luiz Del Roio (Comissão Arns e Instituto Astrojildo Pereira) lembrou das dificuldades enfrentadas pela Comissão da Verdade e observou que o grupo de trabalho sobre empresas foi o último a ser criado. “Jovem comunista bancário” na época de golpe de 1964, ele enfatizou a questão da memória.

Seminário na USP: desafios pendentes (Foto: reprodução Facebook)

“Não pode existir uma classe em si que luta pela transformação da sociedade global sem ter memória. A classe operária resistiu muito ao golpe, resistiu na ditadura. A reparação tem de ser também global de classe. As empresas têm que reconhecer isso. Mas temos que ter uma reparação para a memória. Precisamos de centros de memória. Monumentos, ruas, tudo. Arquivo, memória que passe de geração em geração de trabalhadores”, cobrou Del Roio.

Lista Suja

Durante o período da ditadura, principalmente entre o fim da década de 1960 e início da década de 1980, as empresas multinacionais e brasileiras se associaram para reprimir, espionar e perseguir os trabalhadores. Principalmente aqueles que estavam engajados em mobilização social e sindical. O objetivo era manter o controle interno nas fábricas e, principalmente, a alta produção.

Houve a organização de associações formais ou informais de chefes dos setores de relações industriais (RI) e de relações humanas (RH) com agentes da repressão. Essas organizações elaboravam listas de trabalhadores considerados ativistas, ou como os militares chamavam: subversivos. As listas, denominadas “Listas Sujas”, se constituíam em ferrenhos obstáculos que impediam os trabalhadores de serem contratados em outras empresas.

Também havia o repasse e exposição pública de informações dos demitidos. Uma rede de delatores com participação de sindicalistas que foram interventores nos sindicatos agia indiscriminadamente. À segurança privada das empresas foram incorporados agentes com formação policial ou militar, quase sempre com a supervisão de chefia de ex-militares, agentes patronais infiltrados nos locais de convivência, transporte e lazer dos trabalhadores.

Ficou constatado mais tarde a existência de relação institucionalizada da empresas com a polícia local, com os órgãos de segurança de repressão como o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), o Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), a Polícia Federal (PF) além de outras organizações de repressão militares e de inteligência.

Apuração de responsabilidades

Para Gabriel Dayoub, pesquisador do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), o movimento que se seguiu à CNV – com a formação de um fórum dos trabalhadores por memória, justiça, verdade e reparação – “foi fundamental para dar um fio de continuidade” sobre apuração de responsabilidades das empresas. “Depois da Comissão da Verdade e das várias comissões que se criaram, infelizmente não houve uma política institucional para dar continuidade às investigações.” Coordenado pelo ex-metalúrgico Sebastião Neto, o IIEP organizou o seminário.

Foi desse “caldo de cultura”, acrescentou Gabriel, que surgiu a denúncia contra a Volkswagen. Empresa contra a qual havia diversificada documentação e também o testemunho do ex-operário Lúcio Bellentani, torturado e preso dentro da própria fábrica em São Bernardo do Campo. Assim, a unidade dos trabalhadores permitiu superação de bloqueios institucionais e da própria mídia. Mas o acordo afinal firmado com a Volks ainda é alvo de críticas, algumas severas, por parte dos ativistas. Entre vários fatores, pela ausência de um espaço efetivo de memória.

Outra fabricante de veículos onde já se obteve documentação sobre sua colaboração com os órgãos de repressão na ditadura é a General Motors. A empresa permitiu prisão dentro da fábrica em São Caetano do Sul, produziu uma “lista suja” com trabalhadores das unidades do ABC paulista e São José dos Campos e mobilizou sociedade para classificar grevistas como bandidos. A situação foi tão cruel que houve operário que pensou em tirar a própria vida, além de um que foi demitido há 35 anos e que continua desaparecido até hoje.

A Mercedes Benz também colaborou com a repressão militar ao espionar ativistas sindicais e funcionários em sua fábrica em São Bernardo do Campo nas décadas de 1970 e de 1980. Documentos com o logotipo do DOPS revelam as atividades de espionagem e a repressão aos operários.

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