Manifestações

Proposta de plebiscito resgata ‘sensibilidade social’ do PT, diz historiadora

Maria Aparecida de Aquino fala sobre a composição política e social das manifestações e comenta a postura da grande imprensa na cobertura dos protestos: 'Cometeram um grande erro'

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Em Altamira estudantes foram às ruas pedir cumprimento de compromissos relativos a Belo Monte

São Paulo – Professora de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), Maria Aparecida de Aquino avalia como uma “demonstração saudável de democracia” as manifestações que tomaram conta do país nas últimas semanas, e acredita que a resposta oferecida pelo governo à voz que emanou das ruas trouxe de volta uma certa “sensibilidade social” que o PT tem perdido desde que chegou ao poder com Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002.

Em particular, a historiadora destaca a iniciativa, apresentada pela presidenta Dilma Rousseff, de convocar um plebiscito para aprovar uma reforma política que há tempos espera ser discutida e votada pelo Congresso. “Um plebiscito é algo que faz parte do exercício da democracia direta, que é mais ou menos a expressão que as pessoas demonstraram nas ruas quando diziam ser contra os partidos e ser contra a democracia representativa”, analisou. “Me pareceu interessante que a presidenta tenha ido na direção daquilo que a população está dizendo.”

Nesta entrevista, Maria Aparecida de Aquino fala sobre a composição política e social das manifestações, que se alterou radicalmente na medida em que a mobilização se massificou, além de comentar a postura da grande imprensa – que no início era radicalmente contra os protestos, mas depois mudou de posição. “Cometeram um grande erro.”

Como a sra. recebeu essa onda de manifestações?

Acredito que elas representam um aspecto de democracia saudável. Sou uma pessoa que tem uma participação sindical muito forte e estive presente em quase todas as mobilizações do país nos últimos 30 anos. Nesse meio tempo, sempre nos perguntávamos por que as pessoas não se juntavam a nós. Com o movimento dos professores, tivemos imensas passeatas com até 100 mil docentes em São Paulo, mas nunca sentíamos que a população vinha em nossa direção. Desta vez, ela se uniu e foi às ruas, ocupou as praças, mostrou-se disposta a comunicar suas reivindicações. Isso é muito saudável.

Mas por que agora?

Nos últimos dez anos, temos sido um governo cuja plataforma política sempre esteve ligada às reivindicações sociais. A trajetória do PT foi a de dizer: somos contra a corrupção, apontamos todos os problemas na vida política e colocamos o dedo na ferida dos demais partidos. Sempre foi uma trajetória muito forte e ativa, que foi responsável pela sua gloriosa chegada ao poder, em 2002, onde permanece de maneira totalmente legítima até agora. Ao mesmo tempo, houve uma conspurcação dos ideais iniciais do partido, embora não por parte de todos seus membros. Se historicamente você se arvorou a ser o observatório do mundo, denunciar e apontar o dedo para os outros, então, quando você chega ao poder, você não tem direito de transigir. Uma vez no governo, parece que não era permitido ao PT incorrer em corrupção. Essa é a característica que permite à sociedade e dá à sociedade uma legitimidade no sentido de “vocês eram os únicos que não podiam transigir e vocês transigiram”.

Mas o curioso é que a manifestação não começou com essa característica antipetista, mas com algo pontual: a redução da tarifa. Como a sra. viu essa virada, na composição social, política e ideológica das manifestações? Começou com partidos e movimentos de esquerda e mudou totalmente: esses movimentos se tornaram minoria na manifestação.

Mobilização social é como a abertura sobre uma caixa de Pandora. Você não tem controle sobre a situação. Uma coisa é dizer que tem um objetivo, que é o objetivo inicial, mas outra coisa é chamar as pessoas à participação e, de repente, essas pessoas não são aquelas que comungam dos seus ideais. É uma das novidades do movimento neste momento, no Brasil: a forma de convocação é por meio da internet. Ela é poderosa e atinge a tudo e a todos indiscriminadamente. A partir do momento que o movimento vai à rua, o controle sobre a mobilização é restrito. Você abriu a caixa de Pandora e de lá sai tudo.

Então a sra. acha que isso se deve à forma de convocação e mobilização, que é a internet?

Sim. Uma coisa é dizer que o partido X está convocando uma manifestação com uma determinada palavra de ordem. Então, se você é do partido ou se tem afinidades com o partido, você se sente convocado e vai. Outra coisa é fazer algo absolutamente aberto, como ocorreu agora. Você convoca a todos e a tudo. Consequentemente, você vai ter o ônus de receber todos e tudo, que necessariamente não são os que comungam dos seus mesmos ideais. Daí a porosidade do movimento: começa com o Movimento Passe Livre, catapultado por uma medida de elevação das tarifas. Mas, a partir de determinado momento, você vai ver reivindicações das mais variadas: educação, saúde, contra a corrupção, bandeiras que são necessidades históricas do povo brasileiro.

Como a sra. viu a postura dos meios de comunicação tradicionais, como Globo, Folha e Estadão, que mudaram de opinião em relação aos protestos do dia para a noite logo depois da repressão policial do dia 13 de junho?

Ela mostrou nesse espetáculo a sua face que não é das mais agradáveis. Num primeiro momento, a imprensa se mostrou muito comprometida com os ideais de ordem e disciplina – que estão historicamente associados às forças armadas. Se imagina que a sociedade boa é a que não promove mobilizações, onde não são aceitas tensões. De repente, se você tem uma mobilização que não foi coordenada por você ou que não está sob o seu controle, daí não pode mais. A grande imprensa cometeu o grande erro, de avaliação inclusive. E os jornais não podiam tê-lo cometido, porque sofreram muito durante o regime militar, foram tantas vezes perseguidos na história republicana brasileira. Não tinham direito de ter esse tipo de comportamento. Sob esse aspecto, é saudável que tenham mudado de opinião. Mas a primeira impressão é aquela: somos contra e vamos bater com tudo. Num segundo momento, você percebe: o buraco é mais embaixo e o terremoto é maior do que pensávamos, vamos tentar deter o prejuízo.

Houve um certo temor na sexta-feira, dia 21 de junho, em parte da esquerda brasileira. Ao ver pautas conservadores dominarem as manifestações, alguns partidos e movimentos sociais acreditaram estar em gestação um novo golpe de estado. Como a sra. vê isso?

E uma manifestação errônea e perigosa. O Brasil já passou por golpes. Quando o Brasil passou pela ditadura, havia uma onda de golpismo no ar. Desde 1954, quando o Getúlio Vargas comete o suicídio, o espírito de golpe estava no ar, essa ideia de que a democracia não é suficiente e você precisa de uma medida de forças para, nas palavras dos golpistas, botar ordem na casa. A mesma coisa não acontece agora com a sociedade brasileira. É verdade que nos últimos 25 anos passamos por tropeços, como o impeachment de Fernando Collor, que foi uma ameaça grave para a nossa democracia. Mas atualmente vivemos um momento muito bom em que nossa democracia está consolidada e madura. Por isso, acho que foi errônea a interpretação de que estaríamos próximos de um golpe. Um golpe não se faz sozinho. Precisa de forças claramente colocadas para a articulação desse golpe – e não me parece que está havendo uma articulação golpista. Isso pode dar vazão a uma série de pensamentos negativos, além de dar força a determinados setores que não têm compromisso com a democracia.

Como a sra. analisa a composição política das manifestações? A maioria das pessoas tem um grau elevado de consciência política?

Em sua grande maioria, as pessoas não tinham uma conscientização política claramente estabelecida. Eles atenderam a um desejo quase que intempestivo. Existe a consciência política e a chamada “consciência da fome”, que bate no primeiro momento. Então você foi afetado e você responde imediatamente. Acho que o tipo de resposta do movimento de maneira geral é essa resposta imediata: estamos cansados da bandalheira que existe por aí, estamos cansados de não termos condições de vida adequadas, de vivermos com transporte péssimo, com uma educação de baixa qualidade, com corrupção na política. Mas não acredito que exista consciência política nos moldes do que nós cientistas sociais e historiadores entendemos o termo. É muito mais uma consciência imediata dos desejos que a população tem e que são legítimos.

A sra. faz um paralelo entre o que ocorre no Brasil agora e o que ocorreu com movimentos recentes na Espanha, EUA e países árabes?

Acho que em alguns momentos podemos estabelecer algumas ligações com esses movimentos recentes.  O Occupy Wall Street, em Nova York, teve uma forma de convocatória parecida. É um chamado não oficial, que as pessoas atendem. Não é do sindicato e do partido para as pessoas que estão envolvidas. É um chamado que vem via algo que não se define – a internet – e as pessoas atendem. Se existem coisas comuns, existem especificidades aqui. Eu chamo atenção para isso: é como se houvesse uma catalisação de desejos e ansiedades da população brasileira que não foram atendidas e, de repente, pinga uma gota d’água e esse caldo transborda. Passamos por um momento histórico específico: estamos sendo governados há dez anos por um partido que sempre se pautou por uma sensibilidade social muito grande, mas que, uma vez no governo, num determinado momento, não demonstrou essa mesma sensibilidade. Sensibilidade agora que vem sendo recuperada presidenta Dilma Rousseff. Tanto sua expressão no discurso de sexta-feira, 21 de junho, como esse debate envolvendo os prefeitos e governadores, me parece um motivo de sensibilidade política. Parece que ela está antenada e vem respondendo à altura o que as ruas tem manifestado.

Por que a sra. acha que os 20 centavos da tarifa do transporte público aqui em São Paulo serviram de gatilho para isso tudo?

O transporte pode vedar a vida da gente. Ele pode me fazer acordar duas horas mais cedo e fazer com que eu chegue à minha casa três horas mais tarde. Então ele passa a ser incorporado aos grandes dilemas do cidadão comum. É um estresse diário e constante. Pode não parecer, mas é um gatilho extremamente poderoso: o gatilho de estar mexendo com algo que é muito importante para as pessoas. É fundamental. É como se elas dissessem: como você ousa elevar o tributo sobre isso que é extremamente negativo para minha vida? Que só destrói o meu bom humor? É bastante compreensível.