Lições da história

Para Nelson Jobim, chamar militares de antidemocráticos é generalização. ‘Civis precisam se interessar pela defesa’

Para ex-ministro, setor militar deve ser tratado com autoridade e transparência, mas sem confronto

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Ex-ministro da Defesa afirma que ataques do dia 8 devem ser feitos com 'desapago e clareza' para evitar radicalização

São Paulo – “Lições da história” foi o tema indicado pela Fundação FHC para um webinar, nesta quinta-feira (19), com a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida e o ex-ministro Nelson Jobim. A análise percorreu a ditadura, passou pela redemocratização, conflitos da anistia, crises com a Comissão da Verdade, e chegou aos ataques a Brasília no dia 8 de janeiro. Próximo do setor militar, Jobim afirma que o desafio é isolar o extremismo representado pelo ex-presidente. Mas isso tem que ser feito sem confronto. “Precisamos ter prudência e lucidez. (…) Precisamos isolar a extrema direita e fazer com que a direita democrática cresça. E não faremos isso com confronto.”

Jobim foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e da Defesa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), além de ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele é contra qualquer tentativa do que chamou de “retaliação” contra os episódios do dia 8. “Temos que saber ter tolerância. Se nós, o governo, os democratas, começarmos a agir fazendo uma retaliação generalizada, vamos ter uma radicalização, e aí se fortalece o Bolsonaro”, afirmou Jobim, que hoje integra o Conselho de Administração do banco BTG Pactual.

Apagão de inteligência

Para o ex-ministro, o caso precisa ser tratado com “desapego e clareza”. Jobim identifica um “apagão de inteligência” geral naquele dia. “Precisa saber se foi subjetivamente intencional. Aí temos que lembrar que o responsável pela proteção dos palácios é o GSI (Gabinete de Segurança Institucional). Onde é que estava a guarda presidencial? Onde estavam as ações do GSI?” Ele acredita que houve “leniência em relação às precauções”, uma vez que havia sinais de que algo poderia acontecer, após protestos realizados no dia da diplomação do presidente.

Para Maria Hermínia, o futuro próximo vai depender muito da situação da economia, com redução da inflação que atinge os mais pobres, por exemplo. “O grande desafio é ampliar (a base) em termos diferentes do que foi feito no período anterior. Sem prejuízo dos bens públicos, vamos dizer assim.” Ao mesmo tempo, é preciso considerar as circunstâncias da eleição de 2022. “Acho que a gente tem que levar a sério essa coisa da vitória apertada e do apoio muito significativo que o ex-presidente Bolsonaro mantém. Obviamente, muito menos gente está radicalizada a ponto de invadir o Congresso, quebrar o Supremo.” A cientista política diz que falta discurso do governo petista para setores da classe média, “para quem se acha empreendedor, para quem é médio empresário”.

Prudência e lucidez

Jobim acredita que a vitória de Lula por margem apertada não autoriza uma “euforia” petista. “Foi uma vitória também daqueles que não queriam mais saber do Bolsonaro. Em segundo lugar, o bolsonarismo aliou-se muito fortemente com setores que detêm poder na sociedade. (…) Precisamos ter prudência e lucidez na condução daqui pra frente. Aquela cena do presidente Lula descendo a Esplanada com ministros do Supremo, governadores, foi bom em termos políticos. não há dúvida que a democracia se fortaleceu.”

Nelson Jobim, Sergio Fausto e Maria Hermínia: reflexões sobre a sempre delicada relação com os militares (Reprodução/Twitter)

Maria Hermínia avalia que o atual ministério tem “pessoas notáveis”. Mas concorda que a vitória eleitoral não foi do PT. Por outro lado, acrescentaria, teria sido impossível sem Lula.

Geração de 88

Jobim também acha que o petista era a única alternativa política em 2022. E observa que Lula é o último representante em atividade do que ele chamou de “geração de 88”. Ou seja, a partir da Constituição. “Vamos ter que construir novas alternativas no futuro, e vamos precisa ter muita habilidade, sob pena de voltarmos aos esquemas de direita.” Para ele, a diferença entre o atual governo Lula e o anterior é que antes havia uma espécie de “Estado-maior”, representado por pessoas como José Dirceu, Antonio Palocci, Luiz Dulci, Luiz Gushiken e Márcio Thomas Bastos. “Eu vi esses cinco dizerem não (a Lula) e fazerem um contraponto.”

O ex-ministro da Defesa acha “bobagem” pedir uma revisão do Artigo 142 da Constituição, aquele sempre evocado por defensores da “intervenção militar”. Ele acredita que essa questão está resolvida “Entendimento do Supremo deixa claro que as Forças Armadas não são poder moderador. Esse instrumento foi corrigido pela Constituição de 1988. Eu creio que estão generalizando algumas posturas que tiveram alguns militares da reserva em relação a essas questões. E alguns da ativa. Não pode dizer que as Forças Armadas são antidemocráticas.”

Sem “barroquismo” político

O tratamento com os militares exige especificidades, diz Jobim “Para tratar das Forças Armadas, precisa duas coisas: autoridade e transparência. O político usa muito um barroquismo para conseguir contornar as eventuais desavenças. Com o militar isso não funciona, tem que ser transparente.”

Nesse sentido, ele defende a competência e a permanência do ministro José Múcio Monteiro na Defesa. “O que temos que fazer é voltar o poder civil sobre o militar. Tem que ter habilidade, e o Múcio tem isso muito claro.” A um questionamento de Maria Hermínia, ele observou que muitas vezes os militares é que são acionados pelo poder civil. Lembrou que a aplicação do dispositivo conhecido com GLO (Garantia da Lei e da Ordem) começou ainda no governo Itamar Franco, nos morros do Rio de Janeiro. “Não foi um voluntarismo militar, foi uma convocação. Aquilo deu problemas. Porque a instrução militar é para tratar com inimigo. A instrução para a segurança pública militarizada não é para tratar com inimigo, mas como cidadão delinquente, é outra coisa.”

Visão defasada

A cientista política considera que a visão de mundo dos militares está defasada, com o que Jobim também concorda. “Nós temos que atualizar, porque não tem mais Guerra Fria. Agora, está retomando outro tipo de ameaça ao país. Qual é o futuro do mundo hoje? Como é que vai terminar esse conflito da Rússia com a Ucrânia?”, questiona, citando ainda a relação entre Estados Unidos e China.

Mas Jobim também aponta responsabilidade dos civis por não haver avanços nesse campo. “Quando terminou o regime militar, os democratas, os liberais, a esquerda não queriam tratar do assunto defesa e segurança, Porque havia sempre uma identificação de que aquilo se identificava com perseguição política. O civil se afastou da questão. (…) É necessário que os civis passem a se interessar pela defesa.” Para assim, acrescenta, normalizar a relação “pelo procedimento, não pelo conflito”.

Gravidade “proporcional”?

O mediador da conversa, o cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação FHC, quer saber se a formação da Comissão Nacional da Verdade, na gestão Dilma, não teria “azedado o clima” com os militares. “São duas lógicas diferentes”, responde Maria Hermínia. “De um lado, você tem uma legítima demanda de estabelecimento da verdade. Tem valores aí. De outro lado, você tem uma tensão óbvia com os militares, que têm muita dificuldade de reconhecer o que houve.”

Nesse trecho da conversa, houve divergência entre mediador e convidada. Para Sergio Fausto, há uma certa “leitura da esquerda” de que na ditadura brasileira aconteceu a mesma coisa que na Argentina e no Chile em termos de repressão e vítimas, enquanto lá a “proporção” foi maior em relação à população e a repercussão, também. “Há uma certa falta de noção de proporção, embora os valores sejam fundamentais.”

Maria Hermínia rebateu. “Acho que os números não pesam. Se ocorreu violação dos direitos humanos contra cem ou contra mil, o problema oral é o mesmo. Se eu sou um militante de direitos humanos, eu não posso fazer essa conta”, afirmou.

O Brasil e a Otan

O economista Edmar Bacha encaminhou pergunta em que questiona se uma saída “democrática” para mudar a mentalidade militar não seria a adesão do Brasil à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Também foi rebatido, desta vez por Jobim. O ex-ministro disse que a Otan foi formada como instrumento de defesa do Ocidente contra a antiga União Soviética, no pós-guerra. “Os Estados Unidos sempre foram o comandante da Otan. A Otan não tem nada a ver com democracia, tem a ver com atividade militar, principalmente dos Estados Unidos.”

Sobre a Comissão da Verdade, ele compartilha a visão militar de que a Lei da Anistia, de 1979 consolidou uma transição pelo entendimento e por acordo político. “A nossa transição foi distinta. Houve uma composição, que é uma tradição brasileira. Não se constrói o futuro retaliando o passado”, diz o ex-ministro da Defesa.

O Ministério Público Federal, juristas e ativistas lembram que, pelo Direito Internacional, crimes como graves violações dos direitos humanos não prescrevem. Já foram propostas dezenas de ações contra agentes do Estado que torturaram, mataram e ocultaram corpos. Mas, em geral, essas ações esbarram na Justiça por causa da Lei da Anistia. Em 2010, o STF confirmou a validade da lei, mas há questionamentos judiciais, na forma de embargos pendentes até hoje.