ENTREVISTA

Dilma: ‘O que está em questão não é só o meu mandato, é a vida dos cidadãos comuns’

Presidenta acusa tentativa de golpe no processo do impeachment, atentado à democracia e plano dos conspiradores de chegar ao poder sem passar pelas urnas. 'Desrespeito absoluto à Constituição'

Roberto Stuckert Filho/PR

Dilma Rousseff recebe blogueiros e jornalistas no Planalto: luta até o fim pelo respeito ao voto popular e manutenção e continuidade das políticas públicas que trouxeram avanços sociais

Brasília – A presidenta Dilma Rousseff recebeu um grupo de jornalistas e blogueiros na tarde de ontem (20), quando, demonstrando bom estado de ânimo e reafirmando disposição para lutar pela preservação do mandato que lhe foi conferido por mais de 54 milhões de votos, contou, entre outros, que fatos e “notícias” a têm deixado mais indignada nos últimos dias, e de sua relação com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Falou ainda como acha que um eventual governo Temer lidará com os programas de inclusão social criados e mantidos pelos governos do PT, como avalia a concentração e o monopólio da mídia e o que mais a deixou “chocada”, nos pronunciamentos da sessão da Câmara que aprovou a admissibilidade do impeachment.

Nem “recatada e do lar” e nem “gerentona” linha-dura, Dilma manteve uma conversa franca, cordial e, em muitos momentos, pessoal. Em momento algum pareceu fragilizada pelos ataques que tem sofrido, contrariando a imagem que a mídia tradicional tenta passar à opinião pública. Expôs o que pensa sobre temas como o programa Minha Casa, Minha Vida, enumerou quem são os principais “conspiradores” contra o seu governo e lembrou dos tempos de prisão e os dois encontros que teve com o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra – citado na sessão de domingo (17) da Câmara pelo deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) como uma forma de provocação a ela, presa política e torturada no período da ditadura.

Em seu gabinete, a presidenta Dilma – reconhecidamente uma mulher de temperamento forte e resiliente para enfrentar e superar adversidades – mantém orquídeas brancas e lilases – “planta que gosto muito” – , duas imagens de Nossa Senhora (uma delas, de madeira, “presente de um padre muito humilde”) e muitos porta-retratos com fotos da filha e dos dois netos.

Nada diferente dos gostos e gestos de muitas mulheres que são mães, avós e trabalhadoras com horas puxadas de expediente diário Brasil afora. Exceto que a trabalhadora em questão é quem comanda o Brasil e enfrenta, no momento, um turbilhão político nunca ou poucas vezes visto não só no país, como no mundo.

A entrevista foi concedida conjuntamente à reportagem da RBA e aos jornalistas e blogueiros Paulo Moreira Leite (diretor do Brasil 247 em Brasília), Eduardo Guimarães (do Blog da Cidadania), Kiko Nogueira (Diário do Centro do Mundo), Miguel do Rosário (blog O Cafezinho), Bruno Trezena (Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé), Stephanie Ribeiro (Blogueiras Negras), Renato Rovai (portal Fórum) e Laura Capriglione (Jornalistas Livres).

Leia a entrevista:

Estamos vendo um golpe parlamentar contra a presidenta da República no país, sendo feito à revelia dos seus direitos. Se estão fazendo isso com a senhora, que é presidenta, o que podemos esperar que possam fazer com os cidadãos comuns?

A pergunta é muito boa, porque acredito que o que está em questão não é o meu mandato apenas, mas a vida dos cidadãos comuns. O que está acontecendo é uma eleição indireta travestida de impeachment.

Um impeachment que dá cobertura para um disfarce, para implicitamente fazerem eleição indireta. Um grupo parlamentar propõe a saída de uma presidenta da República. No início, diziam que não eram necessárias provas, nem que houvesse um embasamento jurídico, tal qual previsto na Constituição. Aliás diziam uma parte da meia verdade, que é o argumento de que o impeachment está previsto na Constituição. Está previsto, mas desde que haja crime de responsabilidade.

Uma outra questão é a perda de legitimidade desse processo. É o fato de que os conspiradores que atuam para construir o impeachment deixaram tudo às claras. Primeiro há o “conspirador-mor”, o presidente da Câmara (Eduardo Cunha), ao não ter os três votos do PT que queria no Conselho de Ética para barrar as denúncias contra ele. Esse “conspirador-mor” conduziu o processo de impeachment olhando não para as bases reais do pedido, mas por sua negociação chantagista não ter sido aceita.

A terceira parte é o fato de o próprio vice-presidente da República (Michel Temer) ir contra a presidenta que o levou ao poder, nessa condição que é uma questão de ordem ética e moral.  É uma ação inusitada, porque não acredito que exista na democracia ocidental moderna outro ato desse tipo.

Mas o cúmulo da ilegitimidade é saber que quem quer me substituir e conspirou para isso não tem voto popular. Só há uma forma de se legitimar na democracia: o voto popular. Por isso que eu chamo esse impeachment de eleição indireta travestida de impeachment.

Como avalia o andamento dos programas do governo nos últimos anos e como acha que esse grupo agirá, numa hipotética chegada ao governo?

Primeiro temos de reconhecer que nós, de fato, enfrentamos uma crise. Mas a solução que se coloca para acabar com a crise por parte desse grupo é ajustar para acabar com direitos, para preservar interesses específicos e não os interesses gerais. Nós, toda vez que fizemos processo de ajuste, preservamos tanto programas de investimentos quanto programas sociais.

Não foi fácil preservar recursos para a terceira fase do programa Minha Casa, Minha Vida. Só que eu tenho de optar, enquanto presidenta, entre usar o dinheiro que temos para fazer o Minha Casa, Minha Vida ou outras coisas. E se você for olhar, este programa consiste no maior subsídio praticado no Brasil.

Por um motivo muito simples: estamos fazendo moradias para a parte mais pobre da população, aquela que não tem jeito, pode passar na frente de qualquer banco que jamais vai entrar e conseguir um empréstimo para comprar a sua casa, como a classe média consegue. Nós não fizemos bolha imobiliária. O governo federal subsidia, uma palavra que é “maldita”, mas a verdade é que a gente subsidia a casa própria para essas pessoas.

Voltando a esse pessoal, eles têm um modelo de ajuste que não é igual ao nosso. É um modelo de ajuste que tira direitos e não mantém as políticas de inclusão. Não vou chegar para vocês e falar que a arrecadação está uma maravilha porque não está. Está caindo, mas temos de discutir o que vamos fazer, o que se mantém e o que não se mantém. É essa a discussão.

Um governo que tem compromisso com esse país e com o seu povo é obrigado sim a fazer um ajuste, não vai gastar o que gastava na época das vacas gordas, mas tem que preservar aquilo que é o principal, não pode chegar aí e “jogar a criança e a água do banho”. É olhando onde tem gordura, revisando tudo, que se faz isso. Agora, qual é o problema deles? Primeiro, não farão isso.

Segundo, eles têm contradições difíceis de serem resolvidas. Passaram esse período todo dizendo que não podiam aumentar impostos. Vão fazer como? Em todos os países que passaram por crise houve aumento de imposto. Na nossa ótica, o que fizeram foi uma “pauta-bomba”, a política do quanto pior melhor, para tentar inviabilizar o governo sistematicamente, desde o dia em que eu fui reeleita.

Há uma grande concentração da mídia no Brasil que leva a prejuízos para nossa democracia. E esse processo todo é considerado extremamente midiático. Por que a senhora não denuncia lá fora tal desequilíbrio, que nos traz tanto prejuízo?

Eu acredito que a liberdade de expressão é muito importante e é comprometida quando você tem estruturas oligopólicas de controle em qualquer área. Sempre que você tem ou monopólio ou oligopólio você tem uma distorção absolutamente inequívoca no processo.

Aqui no Brasil teremos que avançar muito nesta questão. Um presidente da República não pode desconhecer em que condições governa. Não ignoro a concentração da mídia e acho que, de um ano para cá, nunca ficou tão claro que esse processo tinha endereço e telefone. E essa ação “oligopolística” ocorreu e está ocorrendo com segmentos majoritários assumindo atitudes golpistas.

Isso não é uma questão que diga respeito exclusivamente à presidenta. Eu devolvo a pergunta: você acredita que no Congresso passaria qualquer alteração no marco legal da mídia? Isso não é um ato unilateral do governo.

Acho que é preciso discutir a questão sem demonizar, sem partidarizar, nem ideologizar. Mas lá (no Congresso), a discussão não vai ser essa. Nós não fizemos (o marco regulatório) porque não julgávamos possível que fosse aprovado. Acho que deveríamos aprovar no Congresso um marco regulatório com limites de concentração, como existe nos Estados Unidos ou Europa. Tudo isso, nesta conjuntura, não acredito que passe.

Acho que temos de falar, temos de lutar. Tive e tenho muitas lutas e as travei no Congresso. Você acha que foi fácil passar o marco regulatório da internet? Talvez você deva me questionar se eu dei prioridade errada a alguns temas, aceito o questionamento, mas sei que o tema não passa no Congresso. O marco da internet passou, o marco regulatório dos portos também passou.

Fala-se que as conspirações vêm acontecendo há mais ou menos um ano e Michel Temer, em setembro, chegou a sondar pessoas para prováveis ministérios. Houve alguma conversa da senhora com ele ou era o caso de ter existido essa conversa?

Nós desconhecemos isso. Ninguém no governo tem essa informação de que existia uma formação de ministérios em setembro. Muita gente, hoje, quer ser pai do golpe. Hoje, porque a História vai mostrar que os pais do golpe, depois, renegarão a criança.

A carta (do Temer) para mim (enviada em setembro passado) era uma reclamação a respeito de cargos que não estavam sendo atendidos, não dizia nada sobre golpe nem formação de ministério. Tive uma conversa com o vice-presidente em que ele falou que aquilo era mais um desabafo do que qualquer outra coisa.

Não acho que o golpe foi uma coisa aberta antes do início do ano. Acho que iniciou em janeiro e atingiu seu auge com aquele áudio do vazamento “para si mesmo” (do vice-presidente discursando como se o impeachment já tivesse sido consolidado). Ali rasgou-se a fantasia e tudo ficou claro. Foi uma carta aos brasileiros, feita da forma mais torpe possível, porque foi negada. Estamos lidando com conspiradores que negam a conspiração.

E a partir de um determinado momento, quando se sentem protegidos por um conjunto de situações, se expressam. Além disso, não acho que se discute golpe, não se chama ninguém para conversar sobre isso. Nunca ouvi dizer. Golpe se recebe ou se dá.

Há alguma medida constitucional contra o golpe?

Há, sim. Dentro do processo democrático brasileiro, podemos fazer o que estamos fazendo. Vamos, até o último minuto, lutar em todas as trincheiras.

A senhora vai denunciar o que está acontecendo no país, com um processo de impeachment aprovado no rito em que foi pela Câmara, à ONU, nesta viagem que fará aos Estados Unidos?

Não vou falar sobre isso.

Ainda existe um machismo evidente e declarado sobre uma mulher ocupar o cargo de presidenta do Brasil, o que ficou mais acentuado no dia 17, pela fala de algumas pessoas, na Câmara. A senhora poderia falar de suas impressões sobre isso?

Há de fato uma atitude visivelmente machista. Tanto que abordam sempre questões de fragilidade quando falam da minha condição, o que talvez não abordassem se quem ocupasse esta cadeira fosse um homem.

Não se pode ignorar a grande capacidade de resistência da mulher, até pela imensa opressão que ela ainda vive no país. Uma das partes mais importantes da política de inclusão dos nossos governos, o meu e o do Lula, foi a percepção de que empoderar a mulher era uma forma de promover a inclusão social, porque muitas mulheres são donas de casa, mães de família, cuidam de tudo sozinhas.

E tem outra coisa, eu sou dura. Você já viu o homem ser duro? Homem não é duro, é normal. Eu já disse que sou uma mulher rodeada de homens meigos, o que é um escândalo. Então há esse componente do machismo, mas é importante lembrar que não é só isso. Há o componente do golpe, do atentado à democracia, de se querer chegar rapidamente ao poder sem passar pelas urnas e do desrespeito absoluto à Constituição Federal.

Em meio aos programas e conquistas obtidas até agora e, ao mesmo tempo, as ameaças à ruptura institucional de muito do que foi construído, que país a senhora espera para os seus netos?

Quero um país desenvolvido e com inclusão social. Mas também não quero um país com ódio, que demonize opções sexuais, mulheres, negros e índios, que tenha uma intolerância e um nível de fundamentalismo persecutório. Quero um país em que meu neto olhe para o povo brasileiro e lembre sempre que ele, o povo, é o guardião de tudo que temos de melhor.

Que ele tenha um padrão de julgamento em que defenda aqueles que mais precisam e que ele viva um país melhor do que eu vivi. Eu acho que ele vai viver, porque eu vivi uma parte da minha vida na ditadura. Estamos numa democracia e acredito que vamos assegurar que essa democracia inclua, desenvolva, gere emprego e oportunidade, mas também seja tolerante culturalmente e etnicamente.

Movimentos sociais têm feito mobilizações gigantescas de apoio ao governo e contra ameaças à democracia. E estamos na iminência de um afastamento da senhora para que corra o processo do impeachment no Senado. Pretende ir para as ruas?

Eu vou lutar em todos os níveis. Onde for necessário eu vou lutar porque o que está em questão não é só o meu mandato, é aquilo que dávamos como garantido. Nunca achei que estaríamos lutando outra vez por democracia. Por isso, vou lutar em todas as trincheiras para derrotar este golpe.

Muita gente está dizendo que agora é hora de se começar a antecipar as eleições. Em que etapa a senhora acha que nós estamos? Como deve ser conduzido isso de maneira a se preservar a democracia?

No domingo, fomos premiados por uma votação que em momento algum falou sobre os motivos pelos quais era necessário votar o impeachment. E acho que isso criou, sobretudo para a sociedade brasileira, o sentimento de que está em curso uma injustiça. Além de estar em curso uma injustiça, está em curso um processo viciado, porque temos um “pecado original”, que está sentado na mesa presidindo a sessão (mais uma referência ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha). E isso é uma coisa muito grave.

Nós respeitamos os deputados, não somos golpistas, respeitamos o processo legal previsto na Constituição. Mas uma coisa é respeitar o rito, outra é saber que o rito foi totalmente permeado por cerceamento à defesa e desvio por parte de quem o conduzia.

Estamos numa fase em que estamos respeitando o rito e observando todas as circunstâncias em que o processo está sendo conduzido. Temos de olhar todas as hipóteses democráticas como sendo legítimas de serem propostas. Se a gente aceita ou não, depende das circunstâncias.

Eu vou lutar pelo meu mandato, agora respeito os movimentos sociais, os partidos que me apoiam, todo o pessoal que nessa hora está pensando em como fazer a próxima etapa. Agora, não estou achando que já estamos em outra fase não, essa parte da pergunta eu não concordo. Eu tenho que lutar cada dia, a cada etapa, enfrentando cada uma delas. É assim que vamos lutar.

A senhora não achava que em algum momento o vice-presidente, Michel Temer, poderia fazer isso que está fazendo nos últimos meses em relação à senhora e ao seu governo?

Não vou falar sobre as pessoas, não vale a pena. Além do mais, houve algum momento em que os atores desse processo não estavam dentro do PMDB, estavam dentro do PSDB. Mas como houve vaias, eles perderam pontos percentuais entre a população por terem ido às manifestações pedir pelo impeachment, muita coisa estratégica mudou. Mas não posso comentar sobre o vice. Não me presto a isso.

Se houve algo de bom na votação de domingo foi que as máscaras caíram e os traidores se desnudaram. Em meio à sessão, com tantas traições e declarações que provocaram espanto, o que foi que mais a indignou?

A menção ao Brilhante Ustra (torturador homenageado pelo deputado Jair Bolsonaro). O que mais me indignou foi ver, nesta altura da vida democrática, alguém votar pelo maior torturador de São Paulo. As pessoas contra as quais o Ustra lutou são heróis brasileiros. Eu tenho orgulho de ter pavor dele (Bolsonaro o citou como ‘o pavor da Dilma’).

Nós somos uma democracia nova, juvenil. Temos ainda fragilidades. Daqui a mais algum tempo, isso que aconteceu agora não vai acontecer assim. Não vai ser aceito. Temos de travar essa luta agora para que essas coisas não se repitam mais

A senhora chegou a encontrar o coronel Ustra no período em que esteve presa?

Estive com Brilhante Ustra duas vezes. Na primeira, ele se identificou com outro nome e disse ‘então esta é você’. Na segunda vez, tinha acabado o cumprimento de parte da minha pena e, por isso, fui levada para ficar numa outra área. Enquanto estava no pátio para pegar o veículo que me conduziria ele me olhou e ameaçou: ‘Se você voltar para cá, vai morrer com a boca cheia de formiga’.

A senhora se arrepende de não ter ido mais à esquerda no seu governo?

Acho que meu governo é um governo de esquerda, mas que enfrenta uma conjuntura adversa. Se achar que enfrenta com retórica, cai imediatamente. Eu estou lutando e sei que não se enfrenta a crise com retórica. Meu movimento é eminentemente de esquerda.

Como é o seu relacionamento com o ex-presidente Lula e as constantes notícias de afastamento entre vocês?

Sabe porque eu não tenho como não ser ligada ao Lula e porque em todos estes anos nunca conseguiram nos separar? Porque nos dois governos dele eu praticamente morava aqui dentro. Eu era a chefe da Casa Civil, subia e descia estas escadas constantemente pra falar com ele. Passávamos o dia juntos. Então, depois de tanto tempo juntos, eu o conheço de frente para trás e ele também a mim. É muito difícil as pessoas tentarem nos afastar.

Seu gabinete está decorado com orquídeas e se destacam duas imagens de Nossa Senhora. São predileções pessoais?

As orquídeas foram colocadas pelo pessoal do cerimonial. São plantas que eu gosto muito, estão entre as minhas preferidas. Já das duas imagens, aquela ali (apontando para a maior), do acervo do Planalto, é tombada e eu a adoro. A outra me foi dada por um padre muito humilde, por quem tenho grande apreço, que me disse que seria bom tê-la sempre por perto, e assim o faço.

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