Diplomacia mórbida

Escoltado pela FAB e recebido como chefe de Estado, coração de Dom Pedro subirá a rampa do Planalto

Conservado em formol desde a morte do monarca, há 187 anos, coração foi cedido por Portugal para as celebrações da independência brasileira. Sob críticas

Guilherme Costa Oliveira/ Câmara Municipal do Porto
Guilherme Costa Oliveira/ Câmara Municipal do Porto
Órgão imperial nunca saiu de Portugal, onde Dom Pedro I (lá, Dom Pedro IV) morreu, em setembro de 1834

São Paulo – A política externa do atual governo vive um momento singular, com a recepção, como chefe de Estado, de um órgão do corpo humano conservado em formol há 187 anos. Trata-se do coração de Dom Pedro I, que chegou nesta segunda-feira (22) em Brasília e subirá amanhã a rampa do Palácio do Planalto. O presidente da República receberá o coração, cedido por Portugal para as celebrações dos 200 anos da independência brasileira.

Com autoridades de Portugal e do governo brasileiro, o coração de Dom Pedro, que descansava na cidade do Porto, chegou escoltado por alguns caças da FAB à base aérea. O embaixador daquele país, Luiz Felipe Melo, e os ministros Paulo Sérgio Nogueira (Defesa) e Marcelo Queiroga (Saúde) acompanharam a chegada. Deverá permanecer no Itamaraty até 5 de setembro. O governo não divulgou quanto foi gasto para trazer o órgão para o Brasil. As negociações teriam começado em fevereiro. Segundo o jornal O Globo, a ideia partiu da médica bolsonarista Nise Yamaguchi, a mesma que defendeu uso de cloroquina contra a covid-19.

Assim, o bicentenário da Independência brasileira não tem previsto nenhum debate ou reflexão sobre o país, seu passado ou futuro. O principal ato é o “empréstimo” o coração de Dom Pedro I (Dom Pedro IV em Portugal). O monarca morreu em 24 de setembro de 1834, aos 35 anos, de tuberculose, menos de três anos depois de abdicar do trono brasileiro.

Na cidade do Porto

Em 18 de julho último, a Câmara Municipal do Porto aprovou o pedido do governo brasileiro – o coração fica na Igreja da Lapa, na segunda maior cidade portuguesa.

A operação foi vista com ressalvas tanto no Brasil como em Portugal, onde houve protestos. “Depois do coração de Dom Pedro, façam o favor de mandar um cérebro para Brasília”, ironizou o cineasta Renato Terra em postagem em rede social. “Acho mórbida essa exposição do coração de Dom Pedro. Que coisa mais católica da idade média! O pior é usar isso pra conseguir votos. Mas, será, mesmo, que o povo vai cair nessa?”, criticou a ex-atriz Nicole Puzzi. “Enfim, um governo com coração…”, comentou o jornalista Fernando de Barros e Silva, da revista Piauí.

coração de dom pedro
Coração de Dom Pedro, conservado em formol, está em uma igreja na cidade do Porto (Foto: divulgação)

Com isso, em alguma medida o governo repete operação feita pela ditadura, durante as comemorações dos 150 anos (sesquicentenário) da Independência, em 1972. Na ocasião, restos mortais de Dom Pedro foram trazidos para o Brasil e aqui sepultados, depois de um périplo pelo país. Estão no Museu do Ipiranga, em São Paulo, área o imperador proclamou a Independência, em 7 de setembro de 1822.

Por sinal, o Museu do Ipiranga, oficialmente Museu Paulista da USP, prepara-se para reabrir no próximo mês. O local está fechado para o público desde 2013, para obras de restauro e ampliação, iniciadas em outubro de 2019. Devido às manifestações previstas para 7 de setembro e ao ambiente político conturbado, a reabertura deve ser antecipada em um dia.