Ditadura

Comissão da Verdade de SP rebate versão oficial sobre morte de JK

'A ditadura matou Juscelino e o Brasil tem de reconhecer o assassinato', afirma presidente do colegiado paulista, em audiência pública realizada na Faculdade de Direito da USP

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Ex-presidente Juscelino Kubitschek não sofreu acidente na Rodovia Dutra, mas foi morto, defendem pesquisadores

São Paulo – Um grupo de trabalho de estudantes e professores da USP e do Mackenzie apresentou hoje (11), em audiência pública na Faculdade de Direito da USP, um relatório em que contesta a versão da Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre a morte de Juscelino Kubitschek. A CNV acolhe a versão oficial de que JK morreu em um acidente. O trabalho foi apoiado por pareceres de cinco juristas das duas universidades.

Encampado pela Comissão da Verdade estadual, o relatório conclui que o assassinato de Juscelino “foi gestado, avisado, noticiado (por meio de boatos e notícias na imprensa, antes mesmo de acontecer) e finalmente concretizado em 22 de agosto de 1976”. Mais do que isso, segundo a investigação do grupo, o crime teria contado com a participação da chamada “cadeia de comando” que passava não apenas pela inteligência dos aparelhos de Estado da ditadura brasileira, como fazia parte da política dos Estados Unidos para o Cone Sul.

O deputado Adriano Diogo (PT), presidente da comissão estadual, afirmou na audiência que a intenção não é diminuir a importância do relatório da CNV. “Não estamos aqui para desmoralizar o trabalho da Comissão Nacional. Seu trabalho foi importantíssimo, mas não foi um fim, foi o começo. Falta muita coisa. Dois ex-presidentes da República, João Goulart e Juscelino, terem o tratamento que tiveram no relatório, nós não aceitamos”, disse. “A ditadura matou Juscelino. O Brasil tem de reconhecer o assassinato de Juscelino e de seu motorista (Geraldo Ribeiro). Essa história não foi contada, e ela precisa ser contada.”

A conclusão do grupo de trabalho – coordenado pelo professor do Mackenzie Marco Aurélio Braga e pela graduanda da USP Lea Vidigal – é a mesma a que chegou a Comissão Municipal da Verdade da Câmara de São Paulo ‘Vladimir Herzog’, tornada pública em relatório divulgado há um ano. A de que o ex-presidente não sofreu um acidente, como a CNV concluiu.

Segundo a investigação, são muitos os indícios de que a morte do ex-presidente na rodovia Dutra, na altura do município de Resende (RJ), foi articulada e executada sob as ordens do general João Baptista Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Informações e futuro presidente da República, e Golbery do Couto e Silva, à época ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República e considerado “cérebro” do sistema.

Na exposição da audiência pública, foi exibida uma carta do general Figueiredo ao general chileno Manuel Guillermo Contreras Sepúlveda, na época chefe da Dina, a polícia secreta do Chile. “Compartilho sua preocupação com um possível triunfo do Partido Democrata nas próximas eleições presidenciais nos EUA. Também temos conhecimento do reiterado apoio dos democratas a Kubitschek e (Orlando) Letelier, o que, no futuro, poderia influenciar seriamente na estabilidade do Cone Sul, em nosso hemisfério”, diz Figueiredo ao colega chileno. “O plano proposto pelo senhor para coordenar nossa ação contra essas autoridades eclesiásticas e conhecidos políticos social-democratas e democratas cristãos da America Latina e Europa, conta com nosso decidido apoio”, acrescenta.

Orlando Letelier, político e diplomata chileno, considerado inimigo do regime do general Augusto Pinochet, o ditador que governou o Chile de 1973 a 1990, foi assassinado em Washington, capital dos Estados Unidos, em 21 de setembro de 1976, um mês depois da morte de Kubitschek.

Segundo o relatório do grupo da USP e do Mackenzie, havia uma operação denominada “Código 12”, utilizada para eliminar oponentes do regime por meio de “assassinato com cara de acidente”, revelado pelo capitão Sergio Carvalho (o mesmo que denunciou a operação Para-Sar, uma série de falsos atentados terroristas orquestrados por militares abortados antes de acontecer). A versão oficial foi de que o Opala em que Juscelino estava quando sofreu o acidente fatal foi “abalroado” por um ônibus e por isso o motorista perdeu o controle do veículo, que atravessou a pista e colidiu de frente com um caminhão.

Porém, “a máquina de mentiras” do regime oculta vários aspectos do acidente: o local do acidente foi violado; o diário de JK, que estava no carro, desapareceu das investigações; houve uma tentativa de suborno para que o motorista do ônibus que teria batido no Opala se declarasse culpado por uma colisão que nunca existiu (posteriormente ele negou a colisão); houve uma perícia fraudulenta, comprovada por fotos que mostrariam o carro com a lanterna traseira esquerda intacta e, após uma perícia, totalmente danificada para justificar a alegada batida do ônibus.

Em outra correspondência, o almirante Aragão (militar que trabalhou com JK e com João Goulart) diz ao secretário-geral de Relações Exteriores do Partido Ação Democrática da Venezuela, Henrique Tejera Paris, que João Figueiredo foi o mandante do assassinato de Kubitschek.

Além desses e outros indícios, um relatório do SNI atestaria que JK era um “pesadelo de volta ao passado, muito mais do que Tancredo”. A investigação também mostra que o brigadeiro Márcio Callafange (adido militar no Chile nos anos 1980) foi autor de uma frase reveladora: “A Operação Condor tinha JK como alvo”.

Ao apresentar o relatório no ano passado, o vereador Gilberto Natalini (PV), presidente da comissão municipal de São Paulo, declarou que uma futura candidatura de Juscelino e sua influência política eram temidas pelos comandantes da ditadura. “Isso, somado às questões do Cone Sul, mostra que houve uma articulação e que Juscelino era um dos adversários políticos a serem eliminados”, afirmou na ocasião.