conflito congelado

Um ano depois, tendência é de que a guerra entre Rússia e Ucrânia continue

Para Bernardo Wahl, apesar da proposta ambiciosa de Lula de mediar um acordo, a diplomacia está em baixa, porque nenhuma das partes quer ceder

Ilia Pitalev/Sputnik
Ilia Pitalev/Sputnik
Blindado russo patrulha ruas da cidade portuária de Mariupol, conquistada por Moscou

São Paulo – Um ano depois da invasão da Ucrânia pela Rússia de Vladimir Putin, o maior conflito na Europa desde a Segunda Guerra prossegue sem indicações de que possa estar perto de acabar. Cerca de 240 mil pessoas morreram na guerra até novembro de 2022, segundo a BBC, sendo 100 mil militares russos, 100 mil soldados ucranianos e 40 mil civis.  Na terça-feira (21), Putin anunciou a suspensão da participação de seu país do único tratado de redução de armas estratégicas do qual ainda participava (Start, na sigla em inglês).

O anúncio da retirada da Rússia no acordo para o controle de armas nucleares serve como uma guerra psicológica contra o ocidente, na opinião de Bernardo Wahl, professor de relações internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP). Moscou tem o maior arsenal nuclear do mundo, maior que o dos EUA.

Um fato novo em 2023 foi a reentrada do Brasil no cenário da diplomacia mundial, com o início do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O novo chefe do governo brasileiro propõe a criação de um grupo de países não envolvidos no conflito – nem indiretamente –, para mediar um acordo de paz. Uma conversa por telefone entre o presidents brasileiro e o ucraniano, Volodymyr Zelensky, é aguardada pelos meios diplomáticos.

A proposta repercutiu a ponto de o governo russo afirmar que a está estudando, com a ressalva de que leva em conta também a evolução do conflito “no terreno”, ou seja, no campo de batalha. Apesar da proposta ambiciosa do Brasil, na análise do professor, a tendência é de continuidade da guerra.

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“É uma proposta muito ambiciosa do governo brasileiro, que começou agora. Mas, para além dessa proposta, talvez esse não seja um momento para a diplomacia, porque nenhuma das partes está disposta a ceder. A meu ver, a guerra vai continuar.” Para Wahl, “o cenário mais provável é de uma guerra de atrito, prolongada, que pode se tornar um conflito parcialmente ‘congelado’”.

Leia a entrevista de Bernardo Wahl sobre a guerra na Ucrânia

Qual sua avaliação sobre a proposta de Lula de mediar conversas para colocar fim à guerra?

O Brasil quer voltar à cena internacional depois de Bolsonaro, quando o país era visto como um pária internacional. É uma proposta muito ambiciosa do governo brasileiro, que começou agora e já tem essa proposta, logo depois da visita de Lula aos Estados Unidos. O Brasil faz parte do Brics. Condenou a invasão da Rússia, mas a Ucrânia talvez não veja o Brasil tão neutro para fazer essa mediação.

Mas, para além dessa proposta, talvez esse não seja um momento para a diplomacia, porque nenhuma das partes está disposta a ceder. Ao meu ver a guerra vai continuar. A Rússia pode avaliar a proposta brasileira, mas entre avaliar e ser realidade há um longo caminho pela frente.

Como você avalia a guerra um ano depois?

A guerra na Ucrânia é um aspecto importante da contestação da ordem internacional que vigorou desde a segunda guerra mundial, chamada de ordem internacional liberal, liderada pelos Estados Unidos, que talvez sob o governo Trump tenham deixado de liderar essa ordem, e Joe Biden busca esse papel novamente. Porém, a China está em ascensão e já representa uma contestação a essa ordem.

Se a guerra vai continuar, a Rússia tem realmente vantagem militar?

O impasse continua: os dois exércitos estão travados numa batalha estática em toda a frente de guerra. Isso nos lembra a primeira guerra mundial. Ao meu ver, a guerra vai continuar sem um fim à vista. Nenhum dos lados está pronto para negociar; ambos se preparam para lançar grandes ofensivas em um futuro próximo; e nenhuma das partes conseguiu um grande avanço nos últimos meses para mudar o curso da guerra.

Acho que o cenário mais provável é de uma guerra de atrito, prolongada, que pode se tornar um conflito parcialmente congelado. É uma situação que a Rússia conhece desde 2014 no Donbas, no Leste da Ucrânia, só que agora é algo muito maior. A guerra pode se tornar menos intensa, porque os lados vão sentir as dificuldades de sustentar a quantidade de perdas que tiveram.

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E tanto Rússia quanto Ucrânia não têm os recursos humanos, equipamentos e recursos econômicos para manter uma guerra intensa o tempo todo. Até se tornar uma guerra “congelada”, a gente pode ver algumas ofensivas e escaladas.

E esse cenário favoreceria um dos lados?

Essa é uma questão interessante. A quem interessa? Putin começou a guerra para uma campanha breve e decisiva. A Rússia era “favorita” para vencer rapidamente. Porém, um ano depois, o presidente russo aposta no contrário: travar uma longa guerra explorando as vantagens que o tamanho da Rússia, a economia resiliente e a relativa segurança contra retaliações proporcionam.

Mas esse quadro não seria desfavorável a Putin, considerando que quanto mais o tempo passa, mais armas e dinheiro a Otan e os EUA vão despejar na Ucrânia?

Essa é uma questão importante também. Oficialmente, o governo dos Estados Unidos diz que não está em guerra contra a Rússia, mas apenas apoiando a Ucrânia. A gente tem que analisar que os armamentos enviados: são cada vez mais mais pesados, inclusive os mais recentes. Os tanques de guerra Abrams dos EUA, tanques da Inglaterra e da Alemanha.

O problema é o tempo que vai levar até chegarem ao campo de batalha, serem incorporados às forças armadas e os militares ucranianos aprenderem a operá-los. Isso leva bastante tempo, um ano talvez. Os Estados Unidos já enviaram o sistema Himars, mísseis Javelin antitanque, mas parece que há um limite nos armamentos que estão enviando.

Para a Ucrânia, só tem um resultado aceitável: a retirada completa da Rússia de todo o território. Para que isso aconteça é preciso mais apoio militar do que o que tem sido enviado. Aparentemente, os Estados Unidos não estão dispostos a enviar equipamento militar de mais envergadura. Então, a quem interessa o prolongamento da guerra? Talvez para a Rússia interesse, já que não conseguiu vencer rapidamente. Para a Ucrânia talvez não interesse, porque o país está sendo destruído.

Mas, por outro lado, a Ucrânia está lutando e não parece disposta a negociar para acabar com a guerra como já esteve mais, no começo. Como Estados Unidos e Europa não vão aparentemente enviar equipamentos de maior envergadura, então para os ucranianos também talvez seja melhor as coisas continuarem como estão.

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Mas também tem a questão de quanto a indústria consegue dar conta sem prejudicar os interesses de segurança nacional dos próprios Estados Unidos. Vão ocorrer eleições em 2024. Se Biden ou outro democrata perder para Trump ou Ron DeSantis, a política estadunidense na Ucrânia pode mudar.

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Ou seja, esse apoio que vemos agora pode não haver mais. A Europa depende militarmente dos EUA e não teria força e vontade para apoiar a Ucrânia por conta própria. Putin pode estar pensando nisso, embora pareça muito distante. Mas não se pode descartar essa possibilidade.

E a questão das fake news? Muito se fala que a Rússia comete crimes de guerra. Como crianças mantidas em “campos de reeducação”, o “massacre de Bucha” e outras informações que não sabemos se são falsas ou não, mas são muito exploradas pela mídia ocidental. Por onde nos guiarmos?

O que a gente pode fazer é tentar ler o máximo de fontes possível e fazer uma construção, já que não podemos estar lá, vendo, e não há uma análise internacional independente. Estamos sujeitos a uma verdadeira batalha de narrativas nesse espaço informacional. A máxima “na guerra a primeira vítima é a verdade” vale também até os dias de hoje. Muitas das fontes da imprensa ocidental são fontes militares ou de governos ocidentais.

Podemos pensar que 1: são narrativas exageradas para desfavorecer a Rússia. E 2: a Rússia pode estar atacando a população civil da Ucrânia – mas não sei se chegaria ao ponto de atacar crianças – por ser uma forma do que se chama “guerra total”, em que se ataca também os não-combatentes e civis para tentar minar o moral do adversário.

Seja como for, a Rússia tentou negociar até dezembro de 2021 uma solução diplomática, não é isso?

A Rússia buscou as vias diplomáticas, porém ela não foi atendida pela Otan. Aí nos cabe levar em conta o fator principal das relações internacionais, que é o fator do poder.

Os Estados Unidos venceram a guerra fria, a União Soviética se desintegrou e o caminho seguido foi o da ampliação da Otan, chegando ao leste europeu, espaço antes de influência soviética e depois da Rússia.

Seria ingênuo a gente achar que a Otan tiraria os mísseis de médio alcance do leste europeu só porque a Rússia se sentia incomodada. Os Estados Unidos, com essa guerra, indiretamente buscam conter a Rússia, como fez na época da Guerra Fria com a União Soviética, para evitar o surgimento ou ressurgimento de um país hegemônico na Eurásia. Isso vale para a Rússia e para a China.

O fundamental é que, em política internacional, tem muito desse maniqueísmo de vilões e mocinhos, mas em última instância o que valem são os interesses.


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