Anomia

Renúncia de primeiro-ministro expõe colapso político no Haiti

Primeira república negra do mundo, país vive uma situação de anomia e escalada da violência. Forças imperialistas e criminalidade avançam

OIM/Antoine Lemonnier
OIM/Antoine Lemonnier
"O Haiti sofreu, desde o seu nascimento até hoje, várias formas de intervenção estrangeira"

São Paulo – O Haiti vive uma situação de colapso político e social, exposta quando, no início deste mês, o então primeiro-ministro, Ariel Henry, anunciou sua renúncia. A notícia veio enquanto ele passava um tempo no território colônia norte-americano de Porto Rico. Contudo, Henry disse que permaneceria provisoriamente até a transição para um novo governo. Contudo, na prática, a situação é de anomia (ausência da lei). As Nações Unidas enxergam um cenário de “violência e instabilidade”, além de alertar para a fome que atinge mais de 125 mil crianças. O cenário é desafiador e possui uma relação histórica de intervenções e influências coloniais.

Henry, que sucedeu Jovenel Moise, assassinado em 2021, segue em Porto Rico. Nesta última semana, o Canadá retirou seus cidadãos do país, em movimento que outros países como Estados Unidos e membros da União Europeia já realizaram. “Embora a situação no Haiti seja há muito tempo caracterizada pela ilegalidade, com gangues poderosas controlando grande parte da capital, Porto Príncipe, os meses de janeiro e fevereiro de 2024 foram os mais violentos dos últimos dois anos”, afirma comunicado das Nações Unidas.

Fome e violência

Os números apontam para mais de 2,5 mil mortos, feridos e sequestrados apenas neste ano. A coordenadora humanitária da ONU no Haiti, Ulrika Richardson, ainda disse que as violações dos direitos humanos são generalizadas e que a violência sexual, com o uso de tortura e “estupro coletivo” contra as mulheres é “galopante”. De acordo com o relatório, existem 4,97 milhões de pessoas enfrentando crises ou níveis mais críticos de insegurança alimentar aguda, incluindo 1,64 milhão de pessoas que enfrentam níveis de “emergência”.

Já o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) reportou aumento em 19% do número de crianças em desnutrição grave no país. “Além disso, cerca de 1,6 milhão de pessoas estão enfrentando níveis emergenciais de insegurança alimentar aguda. O que aumenta o risco de desnutrição infantil, especialmente em oito áreas do país. A violência armada em curso nos departamentos de Artibonite e Oeste, que engloba Porto Príncipe, restringiu a entrega de ajuda e desmoronou um sistema de saúde já frágil, representando uma ameaça iminente à vida de mais de 125 mil crianças”, relata a entidade.

Unicef/Herold Joseph

Contexto atual

Embora a situação seja de fato severa, é necessário entender o contexto do problema, argumenta a socióloga Sabine Manigat, da Universidade de Quisqueya, de Porto Príncipe. Inicialmente, ela chama a atenção para a natureza atual do conflito. “Apresenta-se essencialmente como um confronto entre essas gangues criminosas responsáveis ​​por vários massacres, tolerados pelo governo de fato, beneficiário das suas exações contra a população, grupos que controlam a capital e outras regiões, e um governo que todos declararam expirado desde o último dia 7 de fevereiro.” Nessa data, Henry deveria deixar o governo.

Dessa forma, ela alerta para o que chama de “grande fábula” que muitos veículos de imprensa propagam. “Sugerem que os objetivos dos seus grupos são agora “revolucionários” e que pretendem defender o Haiti contra qualquer intervenção estrangeira. Eles teriam substituído o Estado desaparecido! Aí está a grande fábula”, diz. A professora argumenta que “não há e não pode haver uma guerra civil num contexto em que apenas a violência e a expropriação motivam os bandos, totalmente desprovidos de qualquer ideologia”.

“Por fim, durante os 32 meses decorridos desde julho de 2021, organizam-se os elementos do cenário atual: o apagamento de toda autoridade do Estado haitiano verifica-se com a saída do seu único porta-voz formal, o primeiro-ministro de fato Ariel Henry; a criminalidade, que já foi insinuada com Martelly, transborda pela passividade sistemática da polícia e da administração pública”, completa.

Contexto histórico

No contexto histórico, o Haiti ocupa papel relevante na história da humanidade. Trata-se do primeiro país independente do Caribe, a primeira república negra do mundo. A Revolução Haitiana começou em 1791 e acabou, com sucesso, em 1804. Após a proclamação da independência, o país aboliu qualquer forma de escravidão. Contudo, a França, antiga colonizadora, só reconheceu a independência em 1850, mediante o pagamento de uma “indenização” da jovem república explorada.

Assim, o cenário foi de sucessivas investidas de colonizadores – antigos e novos. É o que explica o economista haitiano Camille Chalmers, em artigo publicado no Brasil de Fato. “O Haiti sofreu, desde o seu nascimento até hoje, várias formas de intervenção estrangeira, em particular, mas não apenas, da França e dos Estados Unidos. A última intervenção militar, da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), deixou em seu rastro saques, violações, epidemias e governos pseudodemocráticos, que além de eleições manipuladas são associações mafiosas com corporações locais e os EUA.”

Interesses

Por fim, o economista reforça a posição da socióloga e aponta para o fato de que a situação atual do Haiti revela, na base, o fortalecimento de interesses imperialistas. “E que muitos jornalistas estão se preparando para uma mudança de governo encobrindo os membros de gangues “que se autodenominam ‘Vivendo Juntos’ enquanto o que fazem é matar, violar, queimar e destruir tudo o que poderia permitir à população viver um pouco melhor.”

E completa ao dizer que “a série de fatos das últimas semanas mostra a coordenação de alto nível nas ações da coalizão das gangues, que fazem parte de um projeto para destruir totalmente o país, tirar todas as organizações progressistas do cenário político e fortalecer o domínio dos países imperialistas sobre o país”.