Oposição boliviana não entende papel de Morales, afirma intelectual

No poder desde 2005, Evo Morales deu a chancela do Estado para a adoção de formas participativas de democracia (Foto: Agência Boliviana de Informação) São Paulo – Denúncias de corrupção […]

No poder desde 2005, Evo Morales deu a chancela do Estado para a adoção de formas participativas de democracia (Foto: Agência Boliviana de Informação)

São Paulo – Denúncias de corrupção e de tentativas de atentados, ordens de prisão e fuga para outros países: a oposição boliviana encontra-se, neste ano de 2011, em situação muito diferente da que ostentava até há pouco tempo. Em períodos anteriores, esses grupos tinham condições de rivalizar com o presidente Evo Morales em questões que iam além do ponto de vista eleitoral, já que chegaram a ameaçar a estabilidade do governo.

O ex-governador de Tarija, Mario Cossío, refugiou-se no Paraguai desde que foi emitido um mandado de prisão por corrupção. Branko Marinkovic, ex-porta-voz da oposição mais ferrenha a Morales, fugiu para os Estados Unidos após ser acusado de tramar contra o presidente e contratar mercenários para atos criminosos. Leopoldo Fernández, ex-governador de Pando, está preso acusado de comandar grupos responsáveis por um massacre de camponeses. 

A desintegração mais evidente é a dos movimentos oposicionistas da chamada Meia Lua, que compreende cinco dos nove departamentos bolivianos – o equivalente a estados. A região está entre as mais ricas do país. “A derrota de Santa Cruz se deve basicamente ao fato de que a elite crucenha não entendeu a real dimensão do que Evo significa: uma poderosa vontade coletiva nacional popular e indígena”, avalia Pablo Stefanoni, economista e diretor da versão boliviana de Le Monde Diplomatique, em entrevista concedida por e-mail à Rede Brasil Atual.

O momento crucial para que a oposição perdesse seu caráter desestabilizador foi o referendo de 2008, que poderia ter revogado o mandato de Morales, mas, pelo contrário, deu respaldo de 67% da população à continuidade do projeto encabeçado pelo Movimento ao Socialismo (MAS). Nos dias seguintes, houve agitações por todo o Oriente boliviano, com mortos e feridos, mas o presidente se manteve no cargo, com um respaldo fundamental e imediato das nações sul-americanas. 

A essa altura, o projeto crucenho, de reivindicar maior autonomia para os governos regionais e municipais, já havia se convertido em uma clara proposta separatista com um forte cunho racista, que tentava mostrar o Ocidente boliviano como um atraso, fruto de uma visão retrógrada das etnias quechua e aimará, que compõem a maioria da população boliviana. 

Álvaro García Linera, atual vice-presidente, avalia em artigos compilados em A Potência Plebeia, livro lançado recentemente no Brasil (Boitempo, 352 páginas, R$ 44), que o país caminha em direção a uma bifurcação. Nesta fase, o país terá de decidir entre o projeto que contempla novas formas de democracia, mais aberto à participação popular, e o retorno à condição anterior, de uma democracia restrita aos momentos de votação, via representada pela Meia Lua. 

Stefanoni, responsável pelo prefácio do livro de Linera, avalia que este é o momento em que a Bolívia “oficial” se parece muito mais com a Bolívia “real”, à medida que o Estado dá aval aos projetos de democracia popular, às reuniões da sociedade em sindicatos e associações de bairro. O enfraquecimento do que ele chama de “colonialismo interno” e o reconhecimento do caráter multiétnico dos bolivianos melhoram a autoestima nacional.

Com isso, o economista argumenta que o projeto crucenho se mostra inviável, não apenas pela grande força do presidente, mas por não contar com um aspecto básico das movimentações ocorridas no Ocidente: as lutas corporativas e comunitárias, abundantes no mundo andino, são escassas ou inexistentes no lado oriental. A Bolívia, portanto, parece ter escolhido seu lado na bifurcação de Linera, o da adesão ao novo modelo, e agora falta apenas superar os problemas do próprio processo de construção desse novo Estado.

O economista enxerga dois caminhos a serem seguidos. De um lado, a via mais forte, representada por Linera, propõe um Estado forte acompanhado de políticas macroeconômicas consideradas prudentes. De outro, a linha comandada pelo chanceler David Choquehuanca, que gostaria de atingir a superação do capitalismo por meio do fortalecimento do ponto de vista comunitário. O problema, assinala Stefanoni, é que não há uma discussão aberta entre estas duas matrizes ideológicas. 

Ele avalia que, apesar da retórica anticapitalista, o socialismo do século XXI sempre teve pouco espaço nas lutas abertas em 2003. “O MAS é uma espécie de partido camponês – mais que indígena – de pequenos proprietários, e tem esse nome por acaso.” Ao mesmo tempo, o “Bem viver”, um conceito andino que valoriza o respeito à natureza sobre todas as coisas, também se mostra muito mais retórico do que efetivo.

O economista pondera que se trata de uma noção bastante ampla na qual se encaixam uma série de questionamentos ao capitalismo, mas que não têm chance de reverter a base extrativista da economia boliviana. “O extrativismo na Bolívia é parte do DNA nacional. A tentativa de voltar a ser uma ‘potência mineira’ é bastante popular e no geral não há qualquer debate sobre como imaginar um país pós-extrativista.”