conjuntura negativa

Ainda não é possível definir se o mundo falhou, diz Ban Ki-moon sobre refugiados

Em entrevista exclusiva, secretário-geral da ONU alertou sobre escassez de ajuda humanitária na Síria e afirmou que apoia reforma no Conselho de Segurança

Fabíola Ortiz/Opera Mundi

Para Ban Ki-moon, principal obstáculo é a resistência do governo sírio para permitir a ajuda humanitária

Opera MundiA crise humanitária que os refugiados sírios enfrentam nos últimos tempos é um dos temas mais sensíveis a Ban Ki-moon. Em entrevista exclusiva, o secretário-geral da ONU debateu sobre a atual conjuntura da guerra na Síria, a importância de reformular o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o aniversário de 70 anos da organização e a necessidade de colocar os direitos humanos sempre em primeiro lugar.

Perguntado se a comunidade internacional falhou ao lidar com a imigração em massa de milhares de sírios e se a União Europeia e os Estados Unidos não estão fazendo o suficiente para os refugiados, Ban se esquivou e apenas comentou que não é possível definir ainda se o mundo falhou. Em sua opinião, ainda há tempo para reverter a situação em que os sírios se encontram.

“Não posso pré-julgar se foi um fracasso ou um sucesso porque [a crise] ainda está em curso. O que é importante agora é que sejamos capazes de prestar ajuda humanitária, que não haja nenhum impedimento e que a assistência chegue aos sírios”, disse.

Desde 2011, 220 mil pessoas foram mortas na Síria, metade das quais, segundo a ONU, são civis. Além disso, dois terços das mortes de civis foram provocadas por forças do governo sírio. Há tempos, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha) alerta que metade do país carece de ajuda humanitária e que um em cada cinco sírios é refugiado.

Para o secretário-geral, um dos principais obstáculos é a resistência burocrática de Bashar al-Assad para permitir chegada de ajuda humanitária a milhões de sírios necessitados. Em 2014, o líder sul-coreano reclamou que nenhuma das partes em conflito estava cumprindo as exigências da ONU para o acesso de auxílio, e pediu ao Conselho de Segurança medidas em relação às violações deste direito internacional.

Pouco depois, o CS aprovou uma resolução exigindo o livre acesso humanitário na Síria. Entretanto, um ano e meio após esta resolução, Ban continua reclamando que equipes humanitárias ainda enfrentam dificuldades de acessar as localidades carentes na Síria.

“É o que venho pedindo ao governo sírio: que permitam a entrada da ONU e de todas as organizações internacionais como a Cruz Vermelha e as ONGs. Milhares de pessoas ainda não podem receber assistência”, criticou Ban Ki-moon.

Segundo o secretário-geral, há muito o Conselho de Segurança das Nações Unidas está dividido em relação à guerra na Síria, que se arrasta desde 2011, e de como combater o terrorismo e grupos radicais extremistas na região.

“O Conselho de Segurança (CS) tem se mostrado dividido há tempos sobre como resolver esta séria situação na Síria em relação às operações militares de luta contra o terrorismo e extremismo. Estão agora discutindo e fazendo consultas sobre como as operações militares podem ser melhores e mais efetivas sem causar baixas desnecessárias em alvos civis”, afirmou Ban.

No alto do 38º andar no edifício administrativo da sede da ONU em Nova York, o secretário-geral procurou evitar expressões que pudessem causar incômodo diplomático. Mesmo com um tom neutro e conciliador, o sul-coreano, que assumiu o posto em 2007 no lugar de Kofi Annan, tentou deixar seu recado para a comunidade internacional: “o princípio fundamental é o de sempre proteger as vidas humanas”.

Bombardeio da Rússia e rivalidade com EUA

Perguntado se foi pego de surpresa ao saber dos bombardeios russos na Síria, que começaram há exatamente duas semanas e apenas dois dias após o chefe do Kremlin, Vladimir Putin, ter discursado na Assembleia Geral da ONU, Ban Ki-moon não alterou o tom de voz:

“Tenho acompanhado a ocorrência de ataques aéreos em certos países e, mais recentemente, no caso da Rússia. Eu deixo claro às partes que é importante lutar contra o Estado Islâmico e o terrorismo, mas as operações militares devem ser conduzidas sob o abrigo das disposições humanitárias e de direitos humanos, sem causar nenhuma baixa às populações civis e sem impactar nenhuma instalação civil”, ressaltou.

O CS é composto por 15 membros, dos quais cinco são permanentes e têm poder de veto. Entre eles, os Estados Unidos, França, Reino Unido, China e Rússia ocupam as cadeiras permanentes.

No primeiro dia da 70ª sessão da Assembleia Geral, em 28 de setembro, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o seu colega russo, Vladimir Putin, se encontraram e, a princípio, haviam concordado em cooperar para uma solução política ao conflito sírio.

Contudo, momentos antes no plenário da Assembleia Geral, Obama chamou Assad de tirano, em seu discurso, e criticou a falta de democracia no país sírio. Mas se mostrou disposto a trabalhar com qualquer nação, incluindo Rússia e Irã para pôr fim ao conflito. Já a posição de Putin ficou clara ao afirmar ser um “enorme erro” recusar-se a cooperar com o governo de Assad e suas forças armadas.

Esta rivalidade se expressa no CS, quando a Rússia veta as resoluções contra Assad e continua a apoiar com o envio de armamentos ao Exército sírio. Ao realizar os ataques aéreos, Vladimir Putin tem argumentado que Moscou está agindo de forma preventiva atacando militantes e terroristas a pedido do próprio presidente sírio.

Reforma do Conselho de Segurança

Nesse sentido, um dos temas que Ban Ki-moon tem demonstrado apoio é a reforma do Conselho de Segurança, que herda sua estrutura da Segunda Guerra Mundial. Em 1945, quando foi criada, as Nações Unidas contavam com 51 Estados-membros e tinha o CS integrado por 11 vagas (22% da composição da organização). Atualmente, são 193 os Estados-membros para 15 postos (uma proporção de 7,7%). Os 10 assentos não permanentes são eleitos pela Assembleia Geral para mandatos de dois anos.

Este debate teve início nos anos 1990, mas ganhou força quando o Brasil juntou-se à Alemanha, Índia e Japão formando o chamado G-4, em 2004. Ban Ki-moon afirmou apoiar a expansão do CS com o ingresso de novos membros permanentes e não permanentes.

“É verdade que as negociações entre os Estados-membros sobre a reforma têm levado mais de duas décadas. Tenho visto e ouvido grandes expectativas por parte dos Estados-membros de que deveria haver mudanças na forma de trabalhar do CS e que deveria se estruturar para responder melhor e de forma mais efetiva às situações”, afirmou o secretário-geral em uma conversa privada que teve com um pequeno grupo de jornalistas estrangeiros após a exclusiva.

“Acredito que o CS deve mudar e tornar-se mais democrático, mais transparente e mais representativo. Mas tudo isso está nas mãos dos Estados-membros da ONU”, completou.

A posição do secretário-geral da organização segue a mesma linha do Brasil, que defende adaptar o Conselho para o século 21, a fim de permitir um grau maior de participação dos Estados-membros e que possa “traduzir adequadamente os interesses da comunidade internacional, sobretudo dos países em desenvolvimento, nos dias atuais” e com vistas a melhor refletir a atual realidade geopolítica, segundo o Itamaraty em comunicado.

A sucessão do líder sul-coreano no posto máximo das Nações Unidas já tem sido levantada nos corredores da organização. Ban Ki-moon é o oitavo secretário-geral e seu mandato finalizará em 31 de dezembro de 2016. Neste panorama, ele defende que seu sucessor seja agora uma figura feminina.

“Já é hora que uma mulher seja minha sucessora. Estou pessoalmente de acordo. Espero que os países-membros da ONU estejam conscientes das aspirações que existem vindas do mundo todo que uma seja uma mulher seja a próxima eleita para ocupar o cargo de secretário-geral”, afirmou.

70 anos de história

Em 2015, as Nações Unidas comemoram seus 70 anos de criação e, na opinião de Ban Ki-moon, um dos principais marcos da organização foi ter atuado no processo descolonização dos países nos continentes africano e asiático.

“A grande contribuição para a humanidade foi o processo de descolonização de muitos países que viviam sob o sistema colonial. Foi a ONU quem promoveu o rápido processo de descolonização. Vimos o surgimento de instituições e a emergência de Estados de direito, que formaram a base para os países em desenvolvimento e os africanos”, comentou.

Nesse processo, Ban saiu em defesa da democracia, mas reconheceu que ainda há um longo caminho a percorrer em relação às economias que vivem regimes não democráticos.

“Nas sociedades democráticas, as pessoas deveriam ser livres para falar o que pensam e livres para fazer o que quiserem. Este é um princípio fundamental dos direitos humanos e da dignidade humana. Todos devem ter o direito de viver com dignidade sem importar o sexo, a idade, a etnia ou de onde vem”.

No curso das últimas décadas com a independência dos países africanos, alguns tiveram uma transição “suave” rumo à democracia. Contudo, “a maioria dos países teve que vivenciar um caminho trágico e muito turbulento em direção à transição democrática” e ainda há nações que vivenciam esta realidade, admitiu.

Somente entre as décadas de 1950 e 1960, mais de quarenta novos países foram criados na África e na Ásia.

“Olhando para trás e para os 70 anos, penso qual o legado as Nações Unidas deixou. Fico orgulhoso ao ver o que a organização tem feito nas últimas sete décadas. Todos os importantes acordos sobre direitos humanos, boa governança e democracia foram assinados na ONU”, conclui Ban.

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