Chico corta clássicos, faz rap-resposta à quebrada e preserva tempo da delicadeza

Quatro anos e cinco meses depois, compositor abre temporada com algumas surpresas. Show tem samba-canção dos anos 1950 e músicas de todas as fases da carreira, desde o primeiro disco

A banda de Chico é a mesma de muitos anos, o que garante, mais do que entrosamento, cumplicidade (Foto: Tuca Vieira/Arquivo Folhapress)

Belo Horizonte –  No ano em que “descobriu” na internet gente que não gosta dele, Chico Buarque abriu neste sábado (5) sua primeira temporada em mais de quatro anos com as habituais cenas de idolatria e declarações de amor, de mulheres e homens. E reservou surpresas para o público que ocupou os 1.700 lugares do Grande Teatro do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Clássicos sempre presentes em suas apresentações foram excluídos, como “Quem te viu, quem te vê” e “João e Maria”. Entraram canções talvez menos conhecidas, como “Ana de Amsterdam” e “Baioque”, dos anos 1970, e a anunciada “Geni e o Zepelim”. Mas um dos pontos altos da apresentação foi uma espécie de rap-resposta de Chico ao rapper Criolo, que fez música inspirada em “Cálice”, parceria de Chico e Gilberto Gil em 1973 e caso único de música censurada durante um show ao vivo. Diz a letra de Criolo:

A ditadura segue meu amigo Milton
A repressão segue meu amigo Chico
Me chamam Criolo e o meu berço é o rap
Mas não existe fronteira pra minha poesia, pai

Perto do final do show, Chico Buarque lembra quando ouviu uma música parecida com “aquela cantiga antiga minha e do Gil”. E responde, usando referência de “Paratodos” (“Evoé, jovens à vista”):

 “Era como se o camarada dissesse: ‘Bem-vindo ao clube, Chicão, bem-vindo ao clube´. Valeu, Criolo doido! Evoé, jovem artista. Palmas pro refrão do rapper paulista”, canta Chico, arrematando com os versos de Criolo.

Pai, afasta de mim a biqueira
Afasta de mim as ´biate´
Afasta de mim a ´cocaine´
Pois na quebrada escorre sangue

E para acabar recitando os versos de seu próprio “Cálice”: “Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue”.

Leia mais sobre Criolo na edição de outubro da Revista do Brasil: “Existe amor em S. Paulo?”

O inesperado rap vem na sequência de “Baioque”, que é exatamente como diz o título: metade baião, metade rock. Outra criação da safra anos 1970. A propósito, “Baioque” foi a música cantada por Chico na sequência do mesmo show de 1973 em que “Cálice” foi vetada, com os microfones sendo desligados. “Vamos ao que pode”, disse Chico na ocasião.

Quatro anos, cinco meses e cinco dias depois de sua última apresentação, Chico foi buscar músicas desde seu primeiro LP, de 1966. No primeiro bis (foram dois), cantou “Sonho de um Carnaval”, primeira canção do compositor a disputar um festival (da antiga TV Excelsior, em 1965, defendida por Geraldo Vandré), citando trechos de “A Felicidade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes (“Tristeza não tem fim/ Felicidade sim”).

A primeira música da noite foi “O Velho Francisco”, de 1987. Continuou com “De Volta ao Samba” (1993), em que o compositor parece falar diretamente com o público: “Pensou que eu não vinha mais, pensou/ Cansou de esperar por mim/ Acenda o refletor/ Apure o tamborim/ Aqui é o meu lugar/ Eu vim”. Depois vêm “Desalento” (1970) e “Injuriado” (1998), até chegar a “Querido Diário”, primeira faixa do novo disco, lançado este ano.

Serão três dezenas de músicas em exatos 90 minutos. Nesse tempo, Chico pouco sai do lugar, fala apenas um “Boa noite, Belo Horizonte”, mas parece mais à vontade no palco. Brinca em dois momentos: primeiro quando apresenta o baixista Jorge Helder, seu parceiro em “Rubato”, também do novo disco: “Meu parceiro, meu comparsa nesta música, é este baixinho aqui”. E quando convida seu “personal baterista”, Wilson das Neves, para cantar – inclusive “Teresa da Praia”, composição dos anos 1950 (Tom Jobim e Billy Blanco) imortalizada por Dick Farney e Lúcio Alves.

Pré-show

A banda é a mesma de muitos anos, o que garante, mais do que entrosamento, cumplicidade. Além de Jorge Helder e Wilson das Neves, o maestro e arranjador Luiz Claudio Ramos, João Rebouças (piano e teclados), Chico Batera (percussão), Marcelo Bernardes (flautas, saxofone) e Bia Paes Leme (teclados e vocais). “Salve o samba e salve esta banda”, diz Chico, enquanto vê dançar Wilson das Neves, todo de branco, inclusive o chapéu.

 Do lado de fora, um grupo que dormiu na fila para comprar ingressos até organizou um “pré-show”, para cantar músicas enquanto o autor não aparecia no palco. Das 12 canções escolhidas, uma fez parte da apresentação de Chico (“Futuros Amantes”).

 Do lado de dentro, o público é condescendente mesmo quando Chico tropeça numa melodia: “Errei”, murmura, durante a apresentação de “Sob Medida”, uma das surpresas da noite. Nunca na história de um show musical um erro é tão aplaudido.

As músicas que antecederam “Sob Medida” foram cantadas em coro pelo público: “Bastidores” (que ganhou fama na voz de Cauby Peixoto), “Todo o Sentimento”, “O Meu Amor”, “Teresinha”, “Ana de Amsterdam” e “Anos Dourados”. Canção da peça proibida “Calabar”, feita em parceria com Ruy Guerra em 1972, “Ana…” só havia sido cantada ao vivo em show de Chico Buarque e Caetano Veloso gravado naquele ano. Também integram o repertório do show canções menos conhecidas do público, como “A Violeira” (parceria com Tom Jobim), de 1983 – gravada mais recentemente por Mônica Salmaso – e “Valsa Brasileira”, feita com Edu Lobo em 1987 para o balé “Dança da Meia-lua”.

Abertura

Perto do fim, vem a aguardada “Geni e o Zepelim” (1977/1978), composta para a peça “Ópera do Malandro” e fonte de muita polêmica em tempos de abertura política no Brasil. O show termina com a recente “Sinhá” (Chico e João Bosco), com forte trabalho de percussão de Wilson das Neves e Chico Batera. No segundo e último bis, “Na Carreira” (Edu e Chico), do “Grande Circo Místico”, de 1982. Ele parece avisar ao público:

 Hora de ir embora
Quando o corpo quer ficar
Toda alma de artista quer partir

(…)

Ir deixando a pele em cada palco
E não olhar pra trás
E nem jamais
Jamais dizer
Adeus

Chico sorri, abre os braços, agradece. Alguns esperam, em vão, para vê-lo. Em um canto próximo ao palco, jovens cantam “Apesar de Você”, única música que Chico admitiu ter sido composta em protesto direto contra a ditadura. Poderiam lembrar de outra, cantada no show, “Todo o Sentimento” (parceria de 1987 com Cristóvão Bastos), para lembrar o reencontro com o artista:

Depois de te perder
Te encontro com certeza
Talvez num tempo da delicadeza