Fora do tom

Relator no STJ libera paródias e contraria músicos. Julgamento é interrompido por pedido de vista

Julgamento se refere ao uso eleitoral de uma canção de Roberto e Erasmo Carlos pelo então candidato Tiririca

Reprodução Facebook
Reprodução Facebook
Paulinho Moska e Erasmo Carlos: artistas manifestam preocupação com possível uso indevido de suas obras em campanhas políticas

São Paulo – No julgamento de recurso que envolve o uso de paródias musicais, o relator na 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão, negou o pedido da gravadora EMI, mantendo assim a liberação de versões derivadas da obra original. Com pedido de vista de outro ministro, Raul Araújo, a sessão foi interrompida. A decisão provisória contraria os pedidos de centenas de músicos, que se mobilizaram nas últimas semanas para sensibilizar o tribunal.

A 2ª Seção analisa embargo de divergência no Recurso Especial 1.810.440, apresentado pela EMI Songs contra o PL e o deputado Francisco Everardo Tiririca Oliveira Silva, conhecido como Tiririca, por uso em campanha eleitoral de uma paródia da música O Portão, de Roberto e Erasmo Carlos. O parlamentar chegou a ser condenado, mas em novembro de 2019 a 3ª Turma do STJ anulou essa decisão, por entender que ele não teria de indenizar a gravadora por direitos autorais. O entendimento é que a versão questionada se encaixa no artigo 47 da Lei 6.910, de 1998: “São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito”.

Fora da curva

Mais de 300 artistas divulgaram manifesto contrário a esse entendimento sobre as paródias musicais. O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Sydney Sanches também criticou a decisão. “A interpretação do STJ é totalmente fora da curva”, declarou ao jornal O Globo o atual presidente da comissão nacional de direitos autorais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ele entende que, no caso em julgamento, não houve apenas uma paródia, mas interesses pessoais do candidato.

O próprio Erasmo Carlos, um dos autores do clássico O Portão, de 1974, manifestou preocupação com a decisão do tribunal. “Associar uma canção a uma campanha política representa atrelar o compositor à pretensão eleitoral de um político que irá se apropriar da música para benefícios eleitoreiros próprios”, afirmou.

Direito à recusa

O cantor Paulinho Moska fez coro nas redes sociais. “O autor de uma obra tem o direito de recusar qualquer uso indevido. Na política então… eu teria horror de ouvir uma canção minha servindo a fascistas, nazistas, racistas, machistas, negacionistas, armamentistas, ‘idiotistas’ etc…Pela preservação do direito autoral, por eleições limpas e pelo respeito ao compositor”, escreveu.

Advogado da EMI, Evandro Pertence salientou a emoção que as músicas provocam e falou em “centenas de artistas que se sentem vilipendiados” com a “deturpação” de suas obras para fins políticos. Segundo ele, a paródia “é um fim em si mesmo”, não vende outro produto. “A lei fala em obras derivadas em que a obra é utilizada para outros fins, mas todas essa situações garantem ao autor direito sobre sua obra” afirmou na sessão. Também lembrou que o país está dividido politicamente. Sendo assim, é preciso saber “se aspectos ideológicos do autor serão violados pelo uso político de uma música”. 

Tom humorístico

Pelo PL, o advogado Flavio Jardim disse que as paródias estão “expressamente reguladas” no artigo 47, e a própria lei já prevê limitações. “Esse tipo de conflito foi pensado pelo legislador. O tom humorístico (da paródia de Tiririca) é claro. Por isso, segundo ele, não haveria necessidade de autorização prévia.

Já o relator Salomão, em longa exposição, citou argumentos favoráveis e contrários. Ele considerou que um jingle político pode caracterizar uma paródia se observados alguns requisitos, com ausência de “efeito desabonador” e respeito à honra, intimidade e privacidade. No caso, o ministro considerou que todos os requisitos foram cumpridos e negou provimento ao embargo.  

Sessão do STJ discutiu uso de paródias musicais: julgamento vai prosseguir (Reprodução YouTube)

O mesmo STJ, em sua 3ª Turma, já chegou a decidir que o uso de paródias musicais em campanhas publicitárias com fins comerciais não viola direitos autorais. Por isso, negou provimento a recurso especial da Universal Music, que pedia a retirada de uma propaganda que usava a canção Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. No caso, para uma empresa de hortifrutigranjeiros.

Confira a íntegra do manifesto dos artistas.

MANIFESTO DA CLASSE ARTÍSTICA ACERCA DO USO DE PARÓDIAS EM  CAMPANHAS POLÍTICAS 

Os compositores e artistas que abaixo assinam vêm tornar pública sua extrema  preocupação com o julgamento do ERESP 1.810.440, em curso no Superior Tribunal  de Justiça, que irá julgar, no dia 09/02/2022, se o uso alterado de canções em  programas políticos deve ser considerado uma paródia e isento de autorização e  pagamento de direitos autorais.

A decisão se dará em processo judicial onde se discute se foi regular o material de  campanha político do candidato Tiririca, que se apropriou da famosa música “O  Portão”, de autoria de Roberto e Erasmo Carlos, para produzir o seguinte refrão: Eu  votei, de novo vou votar, Tiririca, Brasília é o seu lugar. 

Até hoje nunca houve dúvida de que o uso de obras musicais com finalidades políticas, mesmo que modificadas letras e/ou melodias, sempre dependeu de  autorização prévia do titular de direitos autorais. Ou seja, jamais cogitou-se enquadrar como paródia. Entretanto, para surpresa da classe artística, esse entendimento histórico poderá ser modificado e admitir os usos indiscriminados das obras musicais com fins eleitorais, usurpando a gestão dos autores sobre suas criações. A paródia está prevista na lei de direitos autorais, a fim de preservar a liberdade de  expressão, assegurar a livre opinião, a crítica, a sátira, o humor, a diversão, a arte, enfim, permitir a livre manifestação desde que não venha gerar prejuízo ou descrédito ao criador e sua obra. É uma exceção, de caráter efêmero, que deve ser interpretada sempre associada à circulação das ideias, conforme concebeu o legislador. No caso de prevalecer o entendimento desfavorável aos criadores haverá irreparável  lesão aos direitos pessoais e às opções ideológicas, em razão da interferência nos direitos inalienáveis dos autores, que terão suas criações artísticasverdadeira extensão de suas identidades – atreladas a valores, opções, ideologias ou governos eventualmente contrárias às suas convicções. Um verdadeiro risco à integridade do  sistema de proteção aos direitos autorais.

O uso de paródias de obras musicais em campanhas eleitorais, sem autorização  prévia, será um ilegítimo passaporte para alavancar candidaturas e interesses político partidários. Além de atingir os direitos morais dos criadores, que ficarão privados de de  fazerem suas livres escolhas políticas ou ideológicas, servirá para distorcer o processo eleitoral e enganar os eleitores, com graves reflexos na democracia brasileira. As consequências são seríssimas e a questão reclama a imediata mobilização de toda classe artística e da sociedade civil, no sentido de rogar ao STJ, que julgue na preservação dos direitos autorais dos criadores e na defesa de eleições rígidas e transparentes!