Questões em jogo

Brasil vacina atletas para Olimpíada marcada por injustiça esportiva e preocupação para japoneses

Dúvidas sobre a realização dos Jogos de Tóquio já quase não existem, mas a volta do evento para a capital japonesa deixou de ser motivo único de comemoração para se transformar em dor de cabeça

Divulgação / Tokyo 2020
Divulgação / Tokyo 2020
Competições começam no dia 21 de julho

São Paulo – A vacinação de atletas brasileiros classificados ou com chance de classificação para a Olimpíada de Tóquio começou no último dia 14. Além deles, entraram no plano específico de imunização integrantes da delegação brasileira e jornalistas credenciados para o evento. A aplicação das doses pode ser vista como mais uma confirmação de que o evento, inicialmente marcado para 2020 e adiado para este ano por conta da pandemia, vai definitivamente ocorrer. Mesmo diante de protestos, injustiças esportivas e risco político para as lideranças do país, que outrora comemorou muito a volta da Olimpíada ao Japão após 57 anos.

O contexto imposto pela crise sanitária mundial surpreende até quem tem muita Olimpíada no sangue. O jornalista Marcelo Laguna, que assina o blog Laguna Olímpico, participou da cobertura das últimas sete edições dos Jogos – a primeira em Los Angeles (1984) – sendo as quatro mais recentes ‘in loco’. “É até chover no molhado, mas ninguém viu algo parecido. Até porque as Olimpíadas já chegaram a ser canceladas, na época das Guerras, mas esse é o diferencial. Elas foram canceladas, não adiadas. Só isso já torna essa edição (Tóquio 2020) única”, afirma. “Essa edição está ‘contaminada’, porque teremos Jogos sem que a pandemia tenha acabado e muito longe de acabar. Isso já afetou inúmeras condições, a principal é a ausência do público estrangeiro. E isso fará uma diferença enorme. Há uma ameaça bem considerável, a ser confirmada até junho, de não termos nem público japonês.”

Cancelamento

Laguna entende que os Jogos deveriam ter sido cancelados. Até com certa tristeza, pois, como relata, é o ponto alto de sua vida profissional há quase quatro décadas. Mais do que isso, a Olimpíada “era algo que eu já acompanhava de garoto, gostava demais, um evento que me mobilizava. Mas, pessoalmente, eu acho que essa edição teria de ter sido cancelada desde o ano passado”, afirma sem titubear.

E explica. Do ponto de vista da competição entende que “não há uma justiça esportiva, porque as condições de cada país são diferentes. Depende de como cada governo controlou a doença, da liberação para viagens, de onde vai competir”, argumenta. Por conta disso, há atletas e equipes, muitas de prestígio no cenário mundial, que não estão conseguindo se classificar. Cita como exemplos a seleção da Austrália de saltos ornamentais, o time de atletismo da Jamaica no revezamento 4×100 m e a seleção do Canadá de ginástica artística, todos prejudicados em eventos classificatórios. “O ponto esportivo foi perdido”, resume Laguna.

Ele opina ciente de que o cancelamento é traumático para toda uma geração de atletas, “e a gente não pode perder isso do radar”. Lembra da nadadora Maria Lenk, um dos maiores nomes da história do esporte brasileiro. Depois de ter competido nos Jogos de 1932 e 1935, ela não teve a chance de participar na edição de 1940, justamente quando estava no auge da forma, sendo inclusive recordista mundial. Naquele ano, as Olimpíadas, que concidentemente seriam em Tóquio, foram canceladas em razão da Segunda Guerra.

“Stop Tokyo Olympics”

Quando Tóquio foi escolhida para ser a sede das competições de 2020, 56 anos depois de receber os Jogos de 1964, os japoneses comemoraram bastante, lembra Laguna. “O Japão queria muito essa Olimpíada, em 2013. Mas o clima mudou e a realização do evento agora é alvo de muitos protestos. Um dos mais significativos é um abaixo-assinado organizado por Kenji Utsunomiya, advogado e ex-presidente de uma espécie de OAB japonesa. Ele lançou o Stop Tokyo Olympics em 5 de maio e menos de dez dias depois já havia conseguido 350 mil adesões vindas de mais de 130 países.

A Change.org, que abriga a petição, afirmou que a campanha de Utsunomiya é a que teve crescimento mais rápido na versão japonesa da plataforma desde que ela foi criada, em 2012. “Esse número é relevante. Acho que veremos mais protestos à medida que os jogos forem chegando, principalmente se o governo japonês não conseguir controlar a pandemia”, comenta o jornalista brasileiro.

Vale a pena seguir?

Em recente pesquisa realizada pela agência de notícias Kyodo News, seis em cada dez japoneses acreditam que os Jogos Olímpicos e Paralímpicos deveriam ser cancelados. Outros 25,2% acham que as competições deveriam ocorrer, mas sem público, e 12,6% defendem a Olimpíada com público limitado. A pesquisa mostra ainda que 87,7% dos entrevistados estão preocupados com a disseminação do vírus por conta da confluência de atletas de várias partes do mundo. Tanto que 53,9% dos entrevistados concordam que os atletas devem ter prioridade na vacinação, contra apenas 13,1% que não concordam. Cerca de 32% não souberam responder. Serão cerca de 15 mil atletas chegando ao país, número que não foi reduzido por conta da pandemia, ao contrário do total de dirigentes. Eram esperados 180 mil e, agora, a intenção é reduzir para menos de 90 mil a presença no Japão de pessoas ligadas a comitês, confederações e federações.

Laguna cita que um dos fatos que causaram revolta entre os japoneses foi a decisão de deslocar profissionais da saúde, como médicos e enfermeiros, para trabalhar nos Jogos. “Tanto que a (tenista) Naomi Osaka questiona se vale a pena seguir com os Jogos”. O jornalista critica a falta de divulgação no Brasil das manifestações contrárias às Olimpíadas. “A gente está ignorando os protestos, não sei se por que (a grande imprensa) quer fechar os olhos para valorizar a Olimpíada, não sei se por desconhecimento, ou se porque os protestos não são tão raivosos. O japonês tem um perfil mais sereno na forma de protestar, mas eles estão existindo. Por isso estou dando espaço para isso no meu blog (Laguna Olímpico), sempre registrando essas questões, porque são muito importantes.” Ele até arrisca um palpite político: “não entendo nada de política japonesa, mas acho difícil os atuais governantes, ou seus partidos, se manterem no cargo nas próximas eleições”.

Galinha dos ovos de ouro

Diante de uma mudança tão brusca da opinião pública local, riscos políticos e da notória dificuldade de manter condições iguais de competição para os atletas, porque o governo do Japão segue adiante em sua intenção de sediar os Jogos? “Dinheiro. Apenas o dinheiro, a preocupação com tudo o que investiram, com o que foi gasto. E eles até conseguiram não construir tantas instalações novas, mas tiveram de construir. Gastos com a remarcação, agora os protocolos de segurança, o prejuízo sem o torcedor estrangeiro, tendo de devolver o ingresso comprado, o impacto que vai causar na economia local, porque os atletas e jornalistas não vão poder ficar circulando nas cidades”, diz.

Não é só o Japão que está preocupado com o dinheiro. O Comitê Olímpico Internacional (COI) também. “O COI está preocupado com o produto dele, e a principal mobilização que ele fez foi a questão das vacinas. Do ponto de vista deles, estão corretos, estão preocupados com a galinha dos ovos de ouro”, diz, lembrando que, em caso de cancelamento, haveria multas a serem pagas. “Só com a NBC (o COI) tem contrato até os Jogos de 2032. Eles decidiram levar até o fim, porque não tinha a menor possibilidade de os Jogos serem cancelados.”

Superação

Pelo lado do chamado movimento olímpico, Laguna vê que essa edição terá a superação como elemento principal. “De fato não podemos negar que houve uma superação”, diz, citando o esforço que o Japão fez para que, de fato, o evento fosse realizado. “A Vila Olímpica, que vai virar um residencial (após as Olimpíadas), algumas pessoas já tinham comprado os apartamentos para entrar em novembro do ano passado e não conseguiram. Então houve um trabalho tremendo do comitê organizador japonês para conseguir manter isso de pé. O movimento olímpico vai usar a resiliência japonesa como exemplo.”

Apesar disso, o jornalista acha inevitável um clima de desconforto. “Poucas vozes falam disso, mas é inevitável. Haverá um constrangimento, um incômodo em se festejar recordes e conquistas e ter gente nos hospitais lutando pela vida. Ali mesmo, do lado, na própria cidade. Sem falar em outros países. No fundo, o movimento olímpico está dividido entre a necessidade de manter um evento dessa magnitude. É o mais importante do mundo, mas é inevitável que se crie um clima estranho diante de uma pandemia que não acaba de forma alguma.”

Vacina sim! Ou não?

A vacinação de atletas, delegação e jornalistas é um tema que já fez Laguna rever posições e, mesmo assim, não acha que esteja exatamente pacificado. “É um tema polêmico”, começa, lembrando que o primeiro a falar disso no mundo foi Dick Pound, o integrante mais antigo do COI e que chegou a afirmar que os Jogos seriam cancelados. Em janeiro, o canadense cravou que a Olimpíada dependia da vacinação.

“Eu até escrevi sobre isso. Me revoltei na época, muita gente se revoltou. O mundo mal tinha começado a vacinação, então achei um absurdo”, disse. Depois de um tempo e com o desenrolar dos acontecimentos, começou a enxergar a questão de outra maneira. “O COI colocou como condição não obrigatória, recomendou, mas não obrigou. Por isso foi criado um protocolo rígido de segurança, porque a vacina não é obrigatória. Aí veio a questão da oferta das vacinas pelo COI, uma jogada política, com viés econômico. O Comitê fez acordo com grandes indústrias farmacêuticas, a Pfizer e a Sinovac, que ofereceram doses com uma contrapartida. Para cada atleta vacinado, seriam cedidas mais duas doses para os planos de vacinação de cada país. Esse argumento, somado ao fato de você estar levando (ao Japão) pessoas vacinadas, é difícil contestar. Ninguém está furando a fila, as vacinas estão sendo doadas.”

Com ou sem Olimpíada

Ainda assim, olhando a questão de uma maneira mais ampla, não ignora a lentidão de vacinação em grande parte do mundo, como a África, América Central, América do Sul e o próprio Brasil. “A coisa está devagar, quase parando. Então é uma questão muito polêmica. Tem de analisar os dois lados quando se fala disso. Não acho que é errado alguém que vá trabalhar lá se vacinar. A pessoa está se protegendo e protegendo o outro. Mas eu questiono porque não se exigiu que doações não fossem feitas para esses continentes. Acho que é esse o ponto. Os Estados Unidos têm vacina sobrando a ponto de querer promover turismo da vacina e tem país que mal começou. Essas doações tinham de ter sido feitas com ou sem Olimpíada.”