Na Justiça Comunitária, é conversando que as pessoas se entendem

Proposta é desenvolver a cultura da paz, estimular a comunidade a construir e a escolher seus próprios caminhos para a realização da Justiça. Cerca de 80% dos conflitos são resolvidos

São Bernardo do Campo – Fátima faz doces e salgados há 30 anos e nunca aceitou encomenda grande porque não quer abrir mão da qualidade de seus quitutes. É caprichosa mesmo. Mora na Vila Vitória e é do tipo que “ama” o que faz. Ao longo desses anos, nunca havia tomado um calote, até fechar um pedido para uma festa em 17 de dezembro passado. Aceitou o pagamento em dois cheques pré-datados, metade para fevereiro e a outra para março, mas a cliente prometeu trocá-los, pois pertenciam a uma terceira pessoa com quem tinha negócios. A festa ocorreu com sucesso. Fátima começou a tentar fazer a troca, e foi aí que viu o tamanho da encrenca. Sem conseguir o acerto com a contratante, depositou os cheques, que foram devolvidos duas vezes sem fundos. Já descrente do pagamento, ela encontrou o panfleto do Núcleo de Justiça Comunitária e descobriu que ali poderia estar a solução para seu problema.

De fato. Com a mediação do núcleo de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, ela conseguiu receber a primeira parte e esperava para estes dias a quitação da dívida. Fátima iria à Justiça, se fosse necessário, mas ficou satisfeita em resolver as coisas pacificamente. “A gente precisa ser mais humano. Por isso vim aqui sem ideia de brigar”, disse. A proposta da Justiça Comunitária é desenvolver a cultura da paz, estimular a comunidade a construir e a escolher seus próprios caminhos para a realização da justiça. O programa está ligado à Secretaria da Reforma Judiciária (SRJ), do Ministério da Justiça, e é executado pelas prefeituras por meio de convênio. 

O Justiça Comunitária, que integra o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), de políticas de prevenção e combate à violência, foi criado em 2004, como projeto-piloto do Tribunal de Justiça do Distrito federal e Territórios. Em 2007, a SRJ o transformou em política pública. Atualmente há 64 núcleos em 14 estados e no Distrito Federal. Em São Bernardo, foi criado para atender à comunidade de 50 bairros do Grande Alvarenga, que abrange 70 mil moradores. “A região foi escolhida por apresentar alto índice de criminalidade e esfacelamento de famílias com objetivo de prevenir a violência e levar cidadania”, disse a secretária adjunta de Assuntos Jurídicos e Cidadania de São Bernardo, Lilian Maria Teixeira Ferreira Boaro, responsável pelo núcleo.

O núcleo de São Bernardo, assim como os demais, é composto por uma equipe multidisciplinar formada por três profissionais – advogado, psicólogo e assistente social – gerenciados pela Secretaria de Assuntos Jurídicos. Além deles, 25 agentes de Justiça Comunitária trabalham como voluntárias, recebendo apenas auxílio-transporte no valor de R$ 190. A maioria é líder comunitária, que dissemina a proposta em todos os locais onde há movimentação da população, seja nas reuniões de pais de alunos, nas pastorais, nas feiras, nas igrejas. Foram capacitadas em curso de um mês de duração, mas recebem informações constantes para aperfeiçoamento.

Os problemas mais comuns levados para mediação referem-se a problemas com vizinhos, relações comerciais, separação de casais. “O núcleo, além de mediar conflitos, também encaminha as pessoas para os canais adequados para buscarem seus direitos, seja a Justiça, órgãos de defesa do consumidor”, disse Lilian.

Em atividade desde agosto de 2011, o núcleo conseguiu acordo para oito mediações. Em um caso não houve acerto e um outro está em andamento. Além disso, houve 57 pré-mediações, sem necessidade de continuidade. “As pessoas tentam resolver os problemas assim que recebem a carta do núcleo convidando para tratar do assunto pessoalmente”, afirmou Elisabete Sampaio, assistente social. “A ideia é que as pessoas aprendam a resolver seus problemas. O resgate da relação é a base forte do projeto. Muitas vezes pode-se evitar o caminho jurídico”, observou Lilian.

Assim foi com Cida e um vizinho do Jardim das Oliveiras, que até o final do ano passado arrastavam um problema havia sete anos. Durante esse tempo todo, ela fez várias tentativas para solucionar um vazamento na casa dele, que causava infiltração na dela. Propôs rachar as despesas, e nada. O rapaz foi inflexível até receber uma cartinha do Núcleo de Justiça Comunitária, pela qual era convidado para conversar a respeito do conflito. Passado um mês e meio desse contato, ele já havia rebocado a parede por onde a água infiltrava e pronto, ficaram até próximos. Ele é marceneiro e vai fazer um trabalho na casa de Cida. Ela começou a ser procurada por pessoas da comunidade, que queriam saber da atuação do núcleo. E começou a indicar para todos, ressaltando o sigilo guardado.

Após 18 meses, seis para estruturação e 12 para sua operação, em agosto o núcleo de São Bernardo terá de buscar parcerias na iniciativa privada para se manter. No mês que vem, quando fará um ano da inauguração da sede, os salgadinhos da festa ficarão por conta de Fátima, que também se voluntariou para dar um curso no local para ensinar seus segredos. Para Lilian, este é o espírito de coletividade proposto.

No dia 2 deste mês, o secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Flávio Crocce Caetano, disse à Agência Brasil que nos 64 núcleos já instalados em todo o país, a mediação de conflitos feita pelos próprios agentes das comunidades atinge 80% de solução.

Inscrições abertas

No dia 25 de abril, o Ministério da Justiça divulgou que estados, municípios, órgãos do poder Judiciário e Defensorias Públicas poderão apresentar projetos para receber recursos para criar Núcleos de Justiça Comunitária. O governo vai destinar R$ 3 milhões para os projetos selecionados. Outros R$ 20 milhões já foram investidos em capacitação de agentes comunitários, compra de equipamentos, contratação de profissionais e adequação de espaços físicos. Com parte dessa verba, nos últimos três anos, foram capacitados cerca de 700 mediadores para atuar nos núcleos.

As inscrições para criação de núcleos em municípios com mais de 100 mil habitantes vão até a próxima segunda-feira (14), no site do ministério (www.mj.gov.br). As propostas selecionadas serão divulgadas no dia 30 deste mês no Diário Oficial da União