‘STF avança sobre a política porque Legislativo não faz sua parte’

Corregedor-geral de Justiça de SP afirma que Judiciário ocupa vazios deixados pelos demais poderes

O presidente da Câmara, Marco Maia, à direita, critica o Supremo Tribunal Federal por ingerência no Congresso (Foto: José Cruz/ABr)

São Paulo – O protagonismo político que o Judiciário vem assumindo no país causa preocupação em diversos setores da sociedade, mas não no corregedor-geral de Justiça de São Paulo. “Não é ativismo”, argumenta José Renato Nalini. “É uma situação em que a omissão dos demais poderes da República obrigado o Judiciário a se pronunciar.” O desembargador cita a participação decisiva dos tribunais em alguns casos polêmicos, como o aborto de bebês anencéfalos, a pesquisa com células-tronco ou a união civil de pessoas do mesmo sexo. Em sua visão, era o Legislativo quem deveria ter decidido sobre todos eles. “Mas o Parlamento foge das tensões”, critica, destacando o papel central do Congresso na democracia. “O Parlamento precisa se conscientizar de que é o produtor do Direito novo, que é ele quem estalece as regras do jogo, e que não pode fugir dos problemas.”

Na visão de Nalini, é o trabalho incompleto do Legislativo na elaboração das leis que acaba dando espaço para que o juiz – que é quem aplica a lei – decida sobre aspectos não contemplados pela legislação. “As leis acabam sendo resultado de acordos possíveis firmados dentro do Parlamento, e somos obrigados a entrar nesse campo minado das leis que falam menos do que deveriam”, explica. “E o juiz não pode se recusar a decidir.” Além de corregedor-geral de Justiça, José Renato Nalini é também membro da Academia Paulista de Letras – instituição que inclusive já presidiu. Gosta de escrever e publicar o que escreve, e não apenas sobre Direito. Mantém um blogue onde emite opiniões sobre o que acontece à sua volta e não vê problema nenhum nisso. “O juiz não poderia ser privado da cidadania”, defende. “Se você pensar bem, a magistratura é uma atividade política, não no sentido partidário, mas, quando ele decide, é impossível não posicionar-se politicamente.”

Confira a segunda parte da entrevista concedida pelo desembargador à RBA pouco antes do Natal, em São Paulo. Na conversa, Nalini fala ainda sobre a “judicialização” da sociedade e a atuação dos tribunais nas ações policiais do Pinheiro, em São José dos Campos, e na cracolândia, na capital, que completam um ano em janeiro.

O Judiciário brasileiro é conservador?

Sim. A cultura jurídica é a mais anacrônica das ciências humanas. A escola de Direito tem aquela compartimentação de disciplinas, uma desligada da outra, só formalismo e burocracia, desconhece tudo o que acontece no resto do mundo. O Direito não fala com a Economia, com a Sociologia, Psicologia, História, com a Medicina: fica ensimesmado. É emblemático que a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) não queira ir pra Cidade Universitária. Como você vai conversar com outras ciências quando, pelo excesso de juridicidade, você tende a enxergar o mundo só pelas ciências jurídicas? Esse é mais ou menos o discurso que prevalece: você precisa de mais profissionais, mais estrutura, tudo tem de ser judicializado.

Será que ninguém no Brasil pensa que, se num Estado há 90 milhões de processos, como no Estado brasileiro, é porque a sociedade está enferma? Não é normal que você tenha 90 milhões de processos em curso numa população de 200 milhões de pessoas. Se você tirar as crianças, porque criança não litiga; e se você pensar que cada processo tem pelo menos duas partes; você terá quase o país inteiro litigando. Isso é normal? É um apego à forma que faz com que as pessoas, em lugar de sentarem, dialogarem, tentarem estabelecer um consenso, entenderem as razões do outro, elas preferem contratar um advogado, entrar em juízo e esperar que daqui a 15 ou 20 anos venha uma solução, porque temos quatro instâncias: juiz, Tribunal de Justiça, Superior Tribunal de Justiça e STF. Nesse percurso, há mais de 50 oportunidades pra você reapreciar sempre o mesmo tema. Então, é uma sociedade meio doente.

Na visão do senhor, isso se deve mais à estrutura jurídica ou a características da sociedade brasileira?

Acho que é um pouco de herança lusa, que é burocratizada, e um excesso de juridicização da sociedade, tudo virou jurisdicional: o Direito não é uma ferramenta para pacificar, mas para entrar em juízo. Então, você passa a enxergar as coisas sob essa ótica judicial. E as pessoas vão replicando essa cultura de forma, dogma, repetir as verdades já estabelecidas, apego à lei, o fetiche da lei, da regulamentação. Há uma porcentagem imensa de processos judiciais que são resolvidos só processualmente, não na substância: o conflito continua lá, mas o juiz fica com a consciência tranquila porque agiu formalmente. Reconheceu inicial, inépcia da inicial, reconheceu legitimidade de parte, carência de ação, falta de pressuposto processual… há um leque imenso de atalhos para impedir que a justiça prevaleça.

Com essa judicialização cada vez maior da sociedade, o juiz acaba tomando uma série de decisões baseadas em sua própria interpretação da lei. Muitas vezes são decisões políticas, mas, ao contrário dos políticos, o magistrado não é eleito. Como o senhor vê essa questão?

Parece que você está falando em termos de legitimidade, ou seja, de que o Parlamento é eleito, o Executivo é eleito e o juiz não. Mas acho que o juiz adquire e evidencia sua legitimidade através da fundamentação, o juiz não pode falar “é assim porque eu quero”. Ele tem de fundamentar. À medida que ele fundamenta, que ele permite a qualquer pessoa que acompanhe seu raciocínio e, depois, submeta a uma outra instância superior a reapreciação do tema, ele está se legitimando. Outra forma de legitimação do juiz é o concurso público. É um concurso aberto a todas as pessoas, basta ser bacharel. E hoje, no Brasil, com três mil faculdades de Direito, quem não é bacharel? Não há um poder mais transparente que o Judiciário. Tudo o que ele faz é publicado, as audiências têm de ser realizadas de porta aberta. Então não vejo déficit de legitimidade.

Por que existe essa judicialização?

O juiz brasileiro não está entrando em áreas que são vedadas ao exercício dele. Ele é obrigado a enfrentar estas questões. Porque, se você fizer uma análise desapaixonada, verá que o Parlamento não é mais aquilo que o Montesquieu falava, uma “caixa de ressonância das aspirações populares”, ele é uma espécie de conjunto de interesses tópicos e localizados, como se fosse uma nova espécie de feudalismo: são senhores feudais, cada setor elege seu representante, este representante nem sempre está propenso a representar o bem de todos, mas sim o bem do seu setor, o setor que o elegeu. Nesse conflito de interesses, a lei nunca vai ser o fruto de uma ponderação, ou a resposta madura sobre um problema que foi enfrentado sob todos os ângulos, com uma perspectiva de permanência para o futuro, não. Ela é um fruto de compromisso possível, de um acordo muito transitório, efêmero.

Quando a lei sai, ela é o fruto desse compromisso possível. Ela está sempre imperfeita, está sempre exigindo um suprimento por parte de quem vai aplicar. Então, um juiz é obrigado a entrar nesse campo minado que é a lei que fala menos do que deveria, que não conseguiu tratar adequadamente dos temas. E o juiz não pode se recusar a decidir e falar: “ah, não sei o que deu aqui, deu empate.” Não pode. Fora que o Parlamento foge das tensões. Todos esses temas que o Supremo tem enfrentado poderiam ter sido solucionados pelo Parlamento. Por que o Legislativo não se decidiu se as células-tronco podem ser ou não objeto de pesquisa, sobre o aborto de bebês anencéfalos, sobre a relação homoafetiva? Então, o Judiciário é obrigado a falar sobre isso, e a Constituição que exige isso do Judiciário. Não é ativismo, não é excesso de protagonismo: é uma situação em que há omissão dos outros poderes.

Se o Parlamento, no lugar de legislar, passa a se apropriar de uma parcela do Judiciário, começa a fazer muita Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)… Isso é para o Judiciário fazer. Se o Executivo passa a legislar, porque, para agir, ele precisa do fetiche da lei. A administração não precisa de lei pra atuar? Então o Executivo legisla. Aí o que vai sobrar pro Judiciário? Se o Legislativo apanhou uma parte, e uma parte do Legislativo foi engolida pelo Executivo, o Judiciário vai administrar. É uma situação meio anômala. E o juiz brasileiro, de certa forma, administra. São liminares, antecipações de tutela etc. Não é porque ele quer, mas porque se viu chamado, arremessado a esse conflito.

O presidente da Câmara, Marco Maia, viu ingerência sobre o Legislativo quando o STF decidiu cassar o mandato de deputados condenados no caso do mensalão. O senhor vê um avanço do Judiciário em cima de outros poderes da República?

Eu vejo que no Brasil, que passou por um autoritarismo, se produziu uma Constituição panaceia, que cuida de tudo – foi a Constituição que mais acreditou na decisão judicial dos problemas. Ela empurrou o Judiciário para um protagonismo, que talvez seja excessivo, não em termos do avanço de tratadas matérias, mas do excesso de litígio. São litígios fabricados, não há tanto litígio assim, não há tanta controvérsia. É um período em que há uma sede de democracia. Há muito pouco tempo para assentar o convívio saudável entre os poderes. Se você pensar que o Parlamento é o produtor do Direito novo, então ele poderia ser, na concepção ideal, o poder mais importante. É o preponderante, porque ele estabelece as regras do jogo. Se administrar é cumprir a lei e julgar é aplicar a lei à controvérsia, quem tem as rédeas é o Parlamento.

Quando ele perceber que ele pode mudar as decisões judiciais, que ocuparam um vazio ou supriram a omissão dele, de repente ele retoma esse papel. Mas isso precisa de maturidade. O Parlamento precisa se conscientizar de que ele é o produtor do Direito novo, ele tem de enfrentar a população. Eu vejo que os parlamentares fogem dos problemas. Tantas questões que ele deixa de lado, tira o time de campo ou fica naquela posição de espectador, quando na verdade ele tem de ser o ator principal. A atuação mais ampla do Judiciário é um sintoma do Parlamento. Se acha que o Judiciário avançou, por que ele não legisla de forma diferente? Basta ele cumprir o papel de produzir o Direito novo. Na falta do Direito novo, o juiz não pode deixar de julgar.  Vai aplicar a lei que existe ao caso concreto.

Agora em janeiro vai se completar um ano de duas operações que foram bastante polêmicas, e que ocorreram aqui no estado de São Paulo. Uma foi a Operação Sufoco, que depois começou a se chamar Operação Centro Legal, na região da cracolândia. A outra foi a desocupação do bairro Pinheirinho, em São José dos campos. Como o senhor avalia a atuação do Judiciário nesses dois episódios? Houve respeito à Constituição nas decisões que foram tomadas?

Creio que sim. Formalmente, se a gente pensar bem, a reintegração lá já havia sido ordenada fazia tempo. O governo poderia ter solucionado o problema através de expropriações. Aquilo foi o cumprimento normal de uma ordem judicial. É lógico que houve repercussão devido ao número de pessoas, mas são situações normais que ocorrem na Justiça rotineiramente. Tem invasão, tem reintegração. Quando existe interesse social em preservar, o poder é da administração, que pode declarar de utilidade pública e expropriar. Parece correto fazer isso e não achar que o Judiciário tem de segurar aquilo que é atribuição específica. Ele praticaria prevaricação se não tivesse ordenado a desocupação.

Mas, tanto no Pinheirinho como na cracolândia, houve uma série de denúncias da Defensoria Pública e do Ministério Público sobre desrespeito de direitos básicos das pessoas.

Não sei. Nesse ponto, você veja uma coisa. Nós estamos falando da desocupação de uma área que parece lá pertenceria a um particular. Quando alguém invade uma propriedade, o Judiciário é acionado, reintegra na posse, é uma espécie de rotina isso. Nunca se questionou. Mesmo setores mais resistentes repetem aquela expressão: “ordem judicial é pra ser cumprida, não pra ser discutida”. Mas acho uma coisa estranha essa ocupação indiscriminada de propriedade pública, que é de todos. Se você olhar agora na Praça da Sé, você vê um pessoal tomando banho no chafariz, lavando roupa, dormindo. Há lugares que viraram uma mini cracolândia. E isso não causa espécie.

Ouvi esses dias alguém dizendo para o novo prefeito que a situação é normal, porque Los Angeles tem 35 mil moradores de rua, Nova York tem 21 mil, e que aqui nós com 14 mil estamos em uma situação até privilegiada. Eu acho uma coisa estranha, porque a ocupação, a invasão de uma propriedade de uma só pessoa gera imediatamente um recurso ao poder Judiciário, uma ordem de reintegração e a desocupação, com força ou não. E isso aqui é o espaço de uso comum do povo. Todos nós estamos sendo privados de usufruir da praça. E há uma espécie assim de paranoia de que não pode tirar ninguém da rua. Mas ficar na rua não é uma coisa digna.

Pelo que entendi, o senhor está fazendo uma espécie de crítica ao Judiciário brasileiro por excesso de formalismo.

Sim.

Mas perguntei ao senhor sobre o caso do Pinheirinho, e o senhor falou que foi formalmente normal.

Quando falo em formalismo, falo em burocracia, demora, procrastinação. Ou de apego maior à forma do que ao conteúdo. Quando você tem uma Constituição que coloca a propriedade como direito fundamental, embora relativizado pela função social, você não pode ignorá-la. É lógico que, se você for questionar sociologicamente… Mas o juiz vai trabalhar com a letra da Constituição, que, nesse caso, é bastante clara. Até porque ele enxerga que a solução não está nas mãos dele. Ele é refém do ordenamento, enquanto que o governo tem discricionalidade pra declarar uma propriedade como de interesse público, para expropriar e para dar a destinação que ele acha melhor. Não deve transferir a responsabilidade para o Judiciário. As políticas públicas não são responsabilidade do Judiciário. Ele intervém para corrigir, mas não pode ser o primeiro responsável.

E a função social da propriedade. O senhor acredita que o Judiciário tem feito cumprir essa função social…

Tem.

…quando ela entra em choque com a propriedade?

Tem. É lógico que você tem as pessoas [juízes] cada uma com sua formação filosófica e ideológica. Você acha que um fazendeiro – ou neto ou filho ou casado com filha de fazendeiro – olharia com benevolência a invasão de uma fazenda? Da mesma forma, um despossuído que conseguiu entrar na magistratura, será que vai trazer essa origem dele para o julgamento? A origem do juiz, a origem social do juiz, as suas circunstâncias, o fator da emoção, o fato de suas idiossincrasias, é uma coisa que tem que interessar. Isso influencia? Sim. Você pode tentar dar uma interpretação à lei de acordo com sua formação? Pode. Mas, num país que tem quatro instâncias, é muito possível seu ponto de vista ser derrubado brevemente se não se afinar com a orientação do STF.

Como o senhor avalia a ida de magistrados para a política, depois que eles saem da magistratura? O senhor tem um blogue, escreve, emite opiniões, também com bastante frequência em jornais.

Eu diria que o juiz não poderia ser privado da cidadania, ele é cidadão e paga imposto. O juiz, na verdade, se você pensar bem, está exercendo uma atividade política, não no sentido político-partidário, mas ele, quando decide, quando emite sua opinião, é impossível não se posicionar politicamente. Naquele sentido mais elevado da política – participar da coisa pública, se sentir responsável pela gestão daquilo que é de todos. E se ele não atuar politicamente, ele vai ser aquele técnico formal que dá respostas assépticas, neutrais, que não entra na coisa. Assim, não estará fazendo a melhor justiça. Agora, acho que, quando ele sai, tem todo direito de exercer aquilo que ele quiser.

Você pode fazer muitas críticas em relação ao Judiciário brasileiro, menos em relação ao preparo intelectual. Em regra, o juiz é tecnicamente um profissional bem formado, passa por um concurso severo, e no exercício da magistratura, ele se especializa. Então, um acervo, um conjunto de pessoas com esse preparo, com esse intelecto, poderia fazer mais pela nação, se se posicionasse. Não digo se se candidatar, mas ser mais crítico, mais vigilante, exigir a observância dos postulados, dos princípios da moralidade, da impessoalidade. Com isso, ele poderia fazer até a diferença. Por que não posso falar de alguma coisa que está acontecendo no país? Há uma espécie de ameaça ao juiz, por causa da Lei Orgânica da Magistratura, que não pode falar sobre o processo. Quem perde é o país, porque poderia dispor desse conjunto de cidadãos cultos, preparados, eruditos, que poderiam contribuir com outros temas, que não fazendo só sua obrigação, que é julgar.