Violência escondida

Governo Bolsonaro estuda medidas para instituir assistência religiosa remota nas prisões

Departamento Penitenciário Nacional nega, mas proposta em estudo pode barrar religiosos em áreas internas. Temor é que os presos não possam comunicar violações sofridas

Arquivo/EBC
Arquivo/EBC
O relatório mostra também que houve redução da inspeção presencial, oitiva das pessoas presas e realização de exame de corpo de delito

São Paulo – O governo de Jair Bolsonaro estuda implementar mudanças na prestação de assistência religiosa à população encarcerada nas prisões do país. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, a ideia é multiplicar em “diversas vezes o número de pessoas assistidas pelas instituições religiosas em comparação com a pequena quantidade de participantes durante a visita de um religioso, geralmente nos pátios”. Para isso, considera a possibilidade de implementar sistema semelhante a uma rádio, em que o religioso envia as mensagens previamente gravadas para serem reproduzidas. Assim não haveria necessidade da entrada dos voluntários religiosos nas áreas internas dos estabelecimentos, como ocorre atualmente.

A proposta foi anunciada recentemente às entidades religiosas que prestam essa modalidade de assistência no interior das prisões brasileiras. O órgão solicita também que as lideranças façam um diagnóstico da situação atual e apresente em sugestões de ações nesse sentido que pudessem vir a ser implementadas.

O Depen, entretanto, nega que haja previsão de instituir assistência religiosa remota em substituição à assistência presencial. Por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou à RBA que a intenção é “complementar o serviço religioso no Brasil”.

Assistência religiosa

“O órgão opera com especial atenção ao fortalecimento de diversas assistências à pessoa privada de liberdade e ao egresso, tais como a assistência à saúde, assistência religiosa, o fomento de investimentos em educação, cultura, esporte, trabalho e renda, na implantação de Centrais de Alternativas Penais, entre outras, com a perspectiva de favorecer a reinserção social das pessoas privadas de liberdade e reduzir os percentuais de reincidência criminal e penal”, disse o órgão em trecho da nota.

E mencionou estratégias de fortalecimento da assistência religiosa apontadas como viáveis, que buscam ampliar o alcance da assistência religiosa nas unidades na qual tal oferta é inexistente ou deficiente. É caso de “transmissão remota de som que, além de mensagens espirituais, leva conteúdos relacionados à educação, à cultura e outros”.

“Cabe ressaltar que, no bojo da carteira de ações possíveis, a instalação de sistemas de áudio (rádiodifusão) pode servir de instrumento complementar ao serviço dos assistentes religiosos, principalmente onde exista ausência de representação religiosa ou alguma restrição de acesso ou sempre que o representante religioso achar conveniente utilizar a ferramenta, para aumentar o alcance aos seus assistidos, sem prejuízo das visitas presenciais”, disse ainda nota do Depen enviada à reportagem.

No entanto, as boas intenções do órgão federal soam como motivo de preocupação a mais de 450 entidades, incluindo pastorais, conselhos, comissões, fóruns, núcleos e coletivos do Brasil e do Exterior, das mais diversas vertentes religiosas, que militam em defesa dos direitos humanos. E também 28 bispos católicos e 369 pessoas físicas. Juntos endossam carta aberta da Pastoral Carcerária Nacional contra a proposta.

Prisões

“A troca da assistência religiosa presencial pelo dito sistema ataca a existência e a missão de qualquer religião no interior dos presídios. A presença física de representantes religiosos é fundamental para a efetivação dos dogmas estabelecidos em seus livros e rituais sagrados. Não há afeto, não há escuta, não há vida na proposta do Depen”, diz trecho da carta da Pastoral.

Em outra passagem, a instituição afirma que a proposta não é uma medida para ampliar e fomentar a assistência religiosa pelo país, como pode parecer em um primeiro momento. Tanto que em seu ofício, o Depen diz com todas as letras que “com um sistema de áudio remoto, inexistiria a necessidade da entrada de líderes religiosos nas área internas dos estabelecimentos, como ocorre hoje”.

“Da mesma forma, não é uma proposta que seria adotada exclusivamente durante a pandemia. Trata-se de uma medida duradoura, que destruirá a assistência religiosa nos presídios, substituindo a presença física de representantes religiosos pela voz unilateral da rádio’, diz outro trecho do manifesto.

“Nossa experiência mostra que propostas como essa vêm com verniz democrático, de consulta para projeto-piloto, mas acabam sendo implementados em todo o sistema. E depois criam regras nesse sentido. É mais um ataque aos direitos da pessoa presa”, disse o assessor jurídico da Pastoral Carcerária, Lucas Gonçalves.

Covid, tortura e violência

O advogado teme pelos impactos atrelados às intenções embutidas na proposta em estudo. Com mais de 6 mil agentes voluntários, conforme levantamento de 2017, a Pastoral faz um trabalho que vai além da assistência religiosa em si. Visita as celas e demais dependências, reunindo informações e observações aos relatos dos próprios presos e ainda denuncia violações. Sem a assistência presencial, fica ainda mais difícil a fiscalização e a cobrança de medidas contra a covid-19, a tortura e todo tipo de violência.

“Nesse sentido, com o fechamento do cárcere, espera-se o aumento da violência, que é omitida na versão oficial, do estado. E o que chega é a falsa informação”, disse Gonçalves.

A assistência religiosa está prevista no artigo 11 da Lei de Execução Penal (LEP), como uma das assistências ao preso e ao internado. Trata-se de dever do Estado, para prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

“Além de parecer uma violação do artigo 24 da Lei de Execuções Penais, a assistência religiosa vai para além dessa escuta e pregação. Há trabalhos com as famílias e com os presos, no interior da prisão. Então me parece muito esquisito que não haja a assistência presencial e sim implementada rádio. É muito estranho, não consigo entender o motivo real, mas parece mais um objeto de violação de direitos”, disse Marden Marques Soares Filho, membro do Observatório de Saúde Mental, Justiça e Direitos Humanos da Universidade Federal Fluminense.